Uma avenida chamada Brasil

Durante os dias de folia, elas encarnam o papel de rainhas, princesas, passistas do samba. Símbolos da sensualidade e alegria que envolvem o Carnaval, quem são essas mulheres durante os outros 361 dias do ano? O que acontece com elas após o apagar dos holofotes da Avenida?

Elas são mães, donas de casa, esposas, profissionais liberais. Números nas estatísticas do IBGE, essas mulheres são apenas mais uma das 97.342.162 brasileiras a passarem desapercebidas pelas ruas do país. Mas com a chegada do carnaval elas aproveitam a chance de realizar um sonho, de fazer o que amam, de ganharem reconhecimento ou apenas de fazer parte de uma das mais famosas festas culturais do mundo.

Quando o espectador contempla os desfiles das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro, mal pode imaginar que aquelas passistas, em grande parte moradoras de comunidades próximas às escolas, são “mulheres comuns”. Uma prova disso foi a resposta que Lilian Brito, 28 anos, técnica de enfermagem e passista da Escola de Samba Acadêmicos do Grande Rio, de Duque de Caxias, quando telefonei propondo a entrevista. “Estou no Centro da cidade esperando o ônibus. Você pode me entrevistar mais tarde?” Não foi muito diferente com Cristiane Camargo, mais conhecida como Tiane, também passista da mesma escola. “Estou no trabalho agora, sou atendente do Detran, volto para casa às 19h”.

O cotidiano dessas mulheres se assemelha ao de tantas outras brasileiras desconhecidas que representam um número expressivo da força produtiva do Brasil. “Muitas das minhas amigas são vendedoras, costureiras. Conheço microempresárias, enfermeiras, administradoras, mulheres de todas as profissões e origens que são passistas de escolas”, afirma Tiane.

Mãe de uma menina de 8 anos, Lilian Brito divide seu amor pelo samba com o dia a dia nos hospitais. Durante o ano inteiro ela usa o jaleco, mas quando o carnaval se aproxima Lilian não esconde a ansiedade de trocar a bata pela fantasia. “Os pacientes do hospital em que trabalho não sabem que eu sou passista, mas quando a folia está chegando e eu ouço a vinheta do carnaval na televisão não consigo disfarçar, meus olhos brilham”, declara a técnica em enfermagem. Além trabalhar e cuidar da filha, ela arruma tempo para fazer o curso de Instrumentação Cirúrgica e para ir à academia. “Eu malho o ano todo porque eu gosto, mas o ritmo de malhação aumenta quando chega o carnaval” , diz a jovem mãe.

Tiane, também passista da Grande Rio, leva uma vida muito agitada. Esposa, dona-de-casa, envolvida em projetos sociais e profissional, ela gosta de separar o trabalho do samba. “No trabalho todo mundo acredita que eu sou evangélica”, brinca Tiane, que mantém um visual mais reservado quando está no Detran. “Uso cabelos presos, sapatos baixos e nada de maquiagem”, declara a dançarina, que não tem filhos.

Além de seu emprego na área de Identificação Civil do Detran, Tiane participa de outras atividades, como a ONG Diversidade Cultural, filiada ao grupo Arco-Íris, que promove ações contra a homofobia. A passista também organiza festas beneficentes, junto com um grupo de mulheres, para crianças da comunidade em que mora, em Vilar dos Teles.

A constante cobrança por um corpo sarado, com curvas perfeitas e medidas de provocar inveja em qualquer mulher, faz com que a rotina dessas passistas seja ainda mais dura à medida que o carnaval se aproxima. “Começamos os ensaios e a malhação mais intensa no meio do ano.Geralmente entre agosto e setembro. Hoje, se uma menina não tem um corpo legal, ela não consegue espaço dentro da escola”, comenta Tiane.

Com 38 anos e invejável manequim 36, Tiane dá a receita que segue para manter o corpo sarado para o carnaval. “Tenho uma rotina regrada. Não bebo álcool nem fumo. Evito refrigerante e procuro sempre beber bastante água e suco natural”. Na hora de malhar, Tiane não dispensa os exercícios localizados. “Procuro enrijecer os músculos e ganhar resistência para o desfile. Também malho bastante o bumbum e a barriga”.

Nem tudo são flores nos bastidores desse espetáculo. O brilho que cerca o carnaval ofusca as dificuldades e os problemas enfrentados por cada uma dessas mulheres diariamente, e também por toda a comunidade que luta o ano inteiro para fazer a grande festa. “Muitos acham que eu estou rica. Quando vou comprar meus sapatos de passista e fantasias, as pessoas querem cobrar mais caro. Muitas meninas são pobres e não têm condição de bancar todos os custos. Aquelas que não têm trabalho fixo acabam conseguindo ajuda na comunidade, ou fazem “bicos” dando aulas de samba em academias para poder malhar de graça”, desabafa Lilian. “Tem gente que acha que nós somos garotas de programa, mas não é nada disso”, conclui a jovem inconformada com o preconceito que existe sobre as meninas do samba.

Passista há 22 anos, Tiane diz que é difícil viver do samba. “As passistas show, como são chamadas as meninas que representam a escola em eventos, geralmente não têm emprego fixo, pois é complicado conciliar a agenda de shows com um trabalho formal. Muitas delas recebem uma ajuda da escola, já que alguns shows são feitos de graça”, explica a agente do Detran.

Apesar disso, o samba também traz retorno positivo para essas mulheres, o que dá a elas gás para seguir em frente. “As meninas da Pimpolhos – escolinha de samba da Grande Rio – olham para nós e dizem que querem ser como a gente quando crescerem. Isso é muito gratificante”, orgulhosa-se Lilian.

Apaixonadas pelo que fazem, elas não medem esforços para continuar trazendo beleza e carisma para o carnaval. Lilian conta que terminou o último relacionamento porque o namorado pediu para que ela escolhesse entre ele e o samba. “Um dia ele chegou com o ultimato: ou o samba ou eu. Fiquei com o samba, que é minha paixão”, afirma Lilian.

Depois que a festa acaba em cinzas na quarta-feira, que qualquer transeunte pode caminhar pela avenida aberta para visitação, e que o último bloco dá adeus ao carnaval , essas mulheres retornam ao seu cotidiano cuidando da casa, dos filhos, dos projetos, do corpo, da vida. Mais do que musas de uma festa que tem fim, elas representam a força e a cara de milhões de brasileiras que desfilam anonimante nas ruas.

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