Porque Devemos Chamá-las de Favelas

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As favelas do Rio são algumas das mais comentadas, examinadas e estudadas comunidades de baixa renda no mundo. Mesmo assim, as vezes até com boas intenções, as favelas são constantemente mal representadas em inglês por opções linguísticas preguiçosas. Aqui nós desconstruímos muitas deturpações, e destacamos o porquê deveríamos deixar de lado o sensacionalismo e chamá-las simplesmente de favelas.

Providência football By Julie Ruvolo

Slum

Esta é a tradução mais comum para a palavra ‘favela’, aparecendo nas principais publicações da mídia em todo o mundo com a conotação de ‘bairro sórdido’. De acordo com a definição da ONU-HABITAT, ‘slum’ é uma área degradada de uma cidade caracterizada por moradias precárias, miséria, e falta de segurança de posse. Esta descrição não se aplica à grande maioria das favelas do Rio: as casas de alvenaria são bem construídas e feitas para durar; as condições não são miseráveis​​, pois água corrente, eletricidade, coleta de lixo e acesso à Internet, embora de baixa qualidade, alcançam a maioria das casas; sob a lei de usucapião os moradores têm o direito legal de ocupar a terra e em algumas favelas os moradores têm o título. A conotação chave da palavra ‘slum’ é miséria. A palavra ‘slum’ originou-se da frase irlandesa “S lom é” que significa “um lugar sombrio e desamparado”, e é este significado que ela carrega até hoje. Quem já visitou uma favela pode atestar que elas são, na maior parte, locais vibrantes que borbulham com vida e atividade, e sendo que os moradores das favelas do Brasil são responsáveis ​​pela geração de R$38,6 bilhões por ano em atividade comercial, e 65% deles são da classe média, é injusto e totalmente inexato considerar essas comunidades ‘slums’. Exemplos na mídia: Huffington PostTelegraphFinancial TimesExpress

Shantytown

Houses in favelas are made of brick, cement and reinforced steel ‘Shantytowns’ são comumente entendidas como assentamentos “de pessoas pobres que vivem em habitações improvisadas feitas a partir de materiais de sucata: geralmente compensado, metal corrugado e folhas de caixas de plástico e papelão”.  A definição do Oxford English Dictionary para shanty é “um pequeno barraco grosseiramente construído.” Assim, o que define uma “shantytown”, é a baixa qualidade do material de construção. Moradores de favelas investem e têm grande orgulho de suas casas, e os barracos improvisados ​​do início das comunidades foram substituídos, na maior parte, por estruturas sólidas e permanentes. Na Providência, por exemplo, a favela mais antiga do Rio de Janeiro, 98% das casas são feitas de tijolos, concreto armado, e 99% têm telhados de concreto ou de telha. Em outras palavras, categoricamente não são barracos. Exemplos na mídia: BBCThe Globe and MailAssociated PressTIME

Squatter Settlement

The Providência favela is over 115 years old Um ‘squatter settlement’ é definido como um assentamento (settlement) que se desenvolveu sem direito à terra e/ou permissão das autoridades para construir (‘squatter’ é posseiro). Favelas, de fato, começaram como assentamentos irregulares devido à ausência de habitação pública ou à preços acessíveis, e à grave desigualdade de terra no Rio no final do século 19 e ao longo do século 20, quando os brasileiros migraram do campo para as cidades devido ao acesso limitado à terra rural, seguido da abolição tardia da escravidão em 1888. Sem outras opções, os trabalhadores construíram seu próprio alojamento. Entretanto, por décadas e em alguns casos por um século de desenvolvimento estas comunidades evoluíram e impulsionaram o Brasil a implementar alguns dos direitos habitacionais mais fortes do mundo incluindo o direito constitucional, desde 1988, de usucapião. Formalmente, um ‘squatter settlement’ é definido pela ocupação de terras sem direito à tal ocupação. Moradores de favelas ocuparam a terra em suas comunidades irregularmente há décadas, porém hoje em dia o direito à terra é amplamente reconhecido, apesar de muito poucos receberem títulos. Referir-se a favela como ‘squatter settlement’ é uma deturpação pois nega o direito conquistado pelos moradores pelo usucapião, usufruto, e concessão de uso da terra e enfraquece o discurso de empoderamento dos moradores através de posse legal, pois reforça a noção de que favelas são moradias que existem fora da lei. Exemplos na mídia: NY TimesFox NewsLatin Trade

Gueto

Children in Asa Branca. Photo by Sam Faigen

O termo ‘gueto’ que tem origem no início do século 17 em Veneza era usado para descrever a parte da cidade onde os judeus estavam restritos. A palavra agora refere-se a uma área urbana ocupada ou dominada por uma minoria única ou um grupo isolado e muitas vezes marginalizado. As favelas do Rio de Janeiro, pelo contrário, são lugares heterogêneos com grupos de todo o Brasil (cada vez mais do mundo) aonde uma multiplicidade de práticas religiosas e culturais coexistem. Elas também estão localizadas em toda a paisagem urbana com os moradores trabalhando e circulando por toda a cidade. O único grupo minoritário das favelas são os moradores como um todo. Enxergar as favelas como guetos nega a sua diversidade cultural inerente como local de migração e reforça o estigma de que favelas são essencialmente diferentes da sociedade brasileira como um todo. Enquanto que, na prática, elas são amplamente reconhecidas como produtoras dominantes da cultura popular brasileira. Embora a intenção do autor em usar a palavra gueto como sinônimo de favela é de, certamente, chamar a atenção para conotações negativas associadas com guetos (por exemplo, pobreza e crime), seu uso indolente também tem a consequência não intencional de marginalizar uma parte significativa e diversificada da população do Rio puramente baseado em seu status de morador de favela. Exemplos na mídia: SpiegelNPRAOL

‘Sem Lei’ e Ocupada Predominantemente por Traficantes de Drogas

Photo by Luiz Baltar Invocado especialmente na cobertura das ocupações policiais e entrada das UPPs nas favelas do Rio de Janeiro é a descrição dessas comunidades como territórios ‘sem lei’ (‘lawless’). A definição do dicionário Oxford da palavra ‘lawless’ é: “não é regido por ou obediente às leis; caracterizado por falta de ordem cívica”. Apesar das favelas controladas pelo tráfico de drogas (37% das favelas em estimativas atuais) não serem diretamente regidas pelo estado, isso não significa que não há lei ou obediência das leis. A grande maioria dos moradores das favelas são cidadãos cumpridores da lei e muitos são membros de organizações da sociedade civil, tais como grupos comunitários, igrejas, e associações de moradores. Descrever seus bairros como “sem lei” denigre os moradores, e negligencia a realidade de que os traficantes impõem sua própria lei e ordem e incluem um pequeno percentual, no máximo 2%, dos moradores. A atividade criminosa que é capaz de prosperar devido a falta da presença do Estado é uma realidade diária. No entanto, isso se da por conta de negligência do Estado e não por alguma natureza das favelas como inerentemente “sem lei”. Exemplos na mídia: Global PostThe TimesAl-Jazeera Samba in Vidigal. Photo By Patrick Isensee

The Dark Side of Rio (“O Lado Escuro do Rio”)

Embora exista um crescente número de artigos focando nas favelas do Rio como atrações turísticas, ainda são publicadas reportagens mostrando as praias e caipirinhas como o lado iluminado do Rio e as favelas como o lado escuro do Rio de Janeiro. Essa atitude preguiçosa aguça a imagem prevalecente de que as favelas do Rio são lugares exclusivamente de pobreza e crime, ao invés da realidade de que elas são em sua maioria comunidades consolidadas e inovadoras, transbordando com vida e atividades culturais. Algumas das contribuições culturais mais elogiadas do Brasil para o mundo–samba, capoeira, carnaval, funk, e mais recentemente o passinho–originam-se ou foram mantidas graças às favelas. Identificar os principais bairros da cidade repletos de cultura, empreendedorismo, e soluções urbanísticas criativas como sendo o lado escuro da cidade é negar a exposição ao leitor do que elas têm para oferecer. Exemplos na mídia: The Nation ThailandSeattle TimesLiveLeak

Favela

O estigma que os moradores das favelas cariocas enfrentam afeta a sua confiança, auto-estima, e oportunidades de vida. Isto também legitima as políticas de cima para baixo de exclusão que negam a participação das comunidades nas decisões e programas que lhes dizem respeito. Este estigma é reforçado cada vez que um repórter revisita o estereótipo da mídia de favelas como lugares escuros de precariedade e de crime, e tem consequências graves. As comunidades do Rio de Janeiro devem ser reconhecidas por aquilo que são e nomeadas em conformidade. Assim sendo, devemos chamá-las de favelas, até em matérias publicadas em outras línguas. Como explica o historiador da Universidade de Georgetown, Bryan McCann, em seu livro mais recente, Hard Times in the Marvelous City (Tempos Difíceis na Cidade Maravilhosa), “O termo favela… é difícil de definir, em parte porque as favelas mudaram tão dramaticamente ao longo dos últimos trinta e cinco anos. As únicas coisas que o Vidigal de hoje tem em comum com o mesmo bairro em 1978 é a ausência do título de propriedade e a contínua discriminação contra os seus moradores, mesmo assim todos ainda o reconhecem como uma favela”. Etimologicamente, o termo favela é baseado no nome da robusta planta ‘favela’ prevalecente nas ladeiras de Canudos no Nordeste do Brasil onde soldados serviram em batalha em 1897. Após a vitória na guerra, eles se mudaram para o Rio de Janeiro para receber as terras prometidas–porém não entregues–como pagamento pelo Ministério da Guerra. Como resultado, eles estabeleceram a primeira comunidade de favela e chamaram-na de “Morro da Favela”. Essa comunidade é hoje conhecida como Morro da Providência, a favela mais histórica do Rio. Seguindo esse assentamento, todos os outros assentamentos informais no Rio começaram a ser conhecidos como favelas. O termo “favela”, assim conhecido, não possui nenhum conotação negativa, como destacado nos outros termos. Seus moradores participam em campanhas para integrar essas comunidades na cidade e orgulhosamente utilizam o termo para representar as vastas qualidades comunitárias e para insistir no reconhecimento do seu papel histórico na construção da cidade do Rio de Janeiro. Com a ONU prevendo que um terço da humanidade em 2050 (3 de 9 bilhões), morará em assentos informais (pois são nestes bairros que a população mundial está crescendo atualmente), não é possível que bairros que por definição são auto-construídos, e com isso cada um único, sejam todos nomeados iguais. É importante reconhecer a história e luta dos moradores de cada lugar.