Em 16 de dezembro de 2010 o Prefeito Eduardo Paes assinou o Decreto 33.280 criando o Parque Municipal Urbano da Serra da Misericórdia, na região da Leopolidina, na Zona Norte do Rio. Em 2012, o projeto recebeu um investimento R$15 milhões, dos quais cerca de R$11 milhões vieram da fundação socioambiental da Caixa Econômica Federal. No entanto, foi descoberto recentemente que o projeto foi abandonado e os fundos devolvidos.
Moradores e grupos ambientais da Zona Norte estão exigindo a resposta da prefeitura, perguntando: “Cadê o Parque Municipal da Serra da Misericórdia?”
Para mobilizar a comunidade e atrair visibilidade para a questão, nos dias 1 e 2 de agosto, a ONG Verdejar–um grupo comunitário socioambiental responsável por grande parte do reflorestamento da Serra, que opera no Complexo do Alemão desde 1997–organizou um dia de mutirão para plantio, uma caminhada, e uma tarde de música e atividades educativas. Outras organizações da comunidade colaboraram com o evento, incluindo o Centro de Integração na Serra da Misericórdia (CEM), o Barraco 55, e o Instituto Raizes em Movimento.
Serra da Misericórdia
A Serra da Misericórdia é um maciço rochoso que mede 43,9 quilômetros situado na Zona Norte do Rio de Janeiro. O nome Serra da Misericórdia está ligado a um conto popular sobre a construção da Igreja icônica da Penha.
O desenvolvimento urbano e industrial da região, no entanto, tem tido pouca misericórdia para com a Serra da Misericórdia. O posicionamento único do maciço criou tensões entre a preservação ambiental, a urbanização, o crescimento do Complexo do Alemão e atividades industriais.
Edson Gomes, co-fundador do Verdejar, explica que, devido à sua localização, a Serra da Misericórdia “ganha uma importância socioambiental muito estratégica na cidade porque é a ultima área de Mata Atlântica em toda a Zona Norte da cidade”. Localizado dentro da Área de Planejamento 3 (AP3)–uma designação de planejamento urbano que está contida a Zona Norte, a zona mais populosa do município com mais de 2,5 milhões de habitantes–a Serra da Misericórdia é o último expansivo espaço verde na região, fazendo fronteira com 27 bairros.
Edson continua: “É exatamente onde você tem uma série de direitos violados, inclusive o direito de ter um ambiente saudável, garantido pela constituição e por várias convenções internacionais. Esse direito no Brasil, como é o caso com vários outros, é desrespeitado. E não é por falta de mobilização da sociedade, não é por falta de organização da comunidade… Tem uma série de grupos que incorporaram a luta da Serra da Misericórdia nas suas causas. Esse movimento é um resultado disso, é um produto desse movimento a criação dessas leis. E aí a gente fica imaginando, por que fazer isso? Por que o poder público não chega e quando chega não reconhece o potencial ecológico-social dessa Serra?”.
Legislação e Brechas
2000: Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana
Em 2000, depois da pressão do Verdejar, de colaboradores sociais e de movimentos ambientalistas da região, o Decreto Municipal 19.144 designou a Serra da Misericórdia uma Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (APARU). Em teoria, esta legislação introduziu um amplo quadro de proteções ambientais para a área–incluindo “projetos e ações de recuperação ambiental… preserva(ção) e amplia(ção) da biodiversidade”–assim como metas de desenvolvimento urbano, incluindo a promoção da “regularização (fundiária) das favelas existentes”, e o desenvolvimento de “recreação, lazer e ecoturismo” , e a promoção do “desenvolvimento de programas de educação ambiental” a fim de “melhorar a qualidade de vida da população local”.
Um objetivo adicional previsto pela legislação é de “promover a compatibilização entre o aproveitamento do solo e a defesa do meio ambiente, mediante a revisão dos parâmetros de uso e ocupação do solo”. Este objetivo se refere à presença de pedreiras privadas localizadas dentro da Serra da Misericórdia.
A riqueza geológica da área truoxe as empresas de mineração para desenvolverem pedreiras para produção de concreto no início dos anos 40. Atualmente, três empresas continuam a operar na região: o grupo francês Lafarge, a Sociedade Nacional de Engenharia e Construção, e a Anhanguera.
O Verdejar está farto das desculpas da prefeitura–primeiro jurídica, em seguida financeira–por não ter feito valer a proteção ambiental e a implementação de atividades sociais e educacionais na área. Edson especula que a prefeitura “deve estar buscando atender outros interesses que não são os da população. E a gente pergunta, de quem são esses interesses? Por que? Será por que a gente tem dentro da área uma empresa multinacional chamada Lafarge, que é uma parceira da Odebrecht em várias obras na cidade do Rio de Janeiro?”. Considerando o boom da construção no Rio de Janeiro impulsionado pelos Jogos Olímpicos de 2016, o interesse da prefeitura em manter os produtores locais de cimento–reduzindo significativamente os custos de transporte–não é nenhuma surpresa.
A continuidade destas atividades industriais–desinibidas pela designação APARU na qual as pedreiras operam protegidas por licenças ambientais concedidas pelo Instituto Estadual de Ambiente (INEA)–representa um enorme obstáculo para os esforços de preservação ambiental da Serra da Misericórdia.
Embora a designação de APARU rendeu, na prática, pouca proteção ambiental, ter recebido este status foi uma vitória celebrada pelo Verdejar. Edson disse: “Foi o primeiro decreto que veio, não veio garantindo [a proteção], mas foi o primeiro decreto que incluiu a Serra da Misericórdia, categorizando a Serra da Misericórdia como uma área protegida”.
2006: Parque Municipal da Serra da Misericórdia
Em 2006, o prefeito César Maia assinou o Decreto Municipal 27.469, estabelecendo a Serra da Misericórdia como Parque Municipal. Isto significa que a área está definida como parque natural, enfatizando a proteção ambiental, a conservação, a educação, o estabelecimento de áreas dedicadas à visitação pública e pesquisa, o projeto de reflorestamento e de atividades nativas de proteção das espécies, a delimitação dos limites adequados da expansão urbana e o aproveitamento do potencial da área para o estabelecimento do cultivo de energia eólica.
Semelhante à legislação de 2000, este novo decreto ofereceu o potencial para grandes avanços nos esforços ambientais, mas estes efeitos foram limitados. Edson descreve esta legislação como um processo não-participativo–a ideia do parque natural não foi discutido com os movimentos sociais ou moradores da área. A insistência do Verdejar em abrir a discussão para o público sobre os planos era indesejável para as autoridades da prefeitura e do Estado. Edson descreve: “Esse decreto de 2006, nós acreditamos que ele é resultado da [nossa] luta, mas ele surgiu descolado da luta porque foi criado do gabinete do então prefeito César Maia que nunca dialogou com a gente. Historicamente, a Secretaria de Meio Ambiente e todos do município e do Estado não vêem o Verdejar como parceiros, porque a gente é contundente radical com a questão ética da nossa luta”.
O Verdejar têm experimentado relações tensas com as autoridades da prefeitura ao longo dos anos, talvez culminando em 2012, quando a sede da organização foi demolida pela Light. A demolição foi justificada por planos para a construção de uma subestação elétrica, mas estes planos nunca foram implementados.
2010: Parque Municipal Urbano da Serra da Misericórdia, o Parque da Leopoldina
Em 2010, o prefeito Eduardo Paes assinou o Decreto Municipal 33.280, substituindo o decreto de 2006, transformando a Serra da Misericórdia em Parque Municipal Urbano. Sob o pretexto de conservação ambiental e desenvolvimento social, este novo decreto efetivamente despojou a Serra da Misericórdia das proteções ambientais estabelecidos pela legislação de 2006 e colocou a área sob a jurisdição da Fundação Municipal Parques e Jardins.
Edson explica: “A gente está falando do quarto maior maciço da cidade. Têm centenas de nascentes, e subdivide quatro das sub-bacias hidrográficas mais poluídas da Baia de Guanabara. É o último fragmento de Mata Atlântica de toda a Zona Norte do Rio… Então ele tem uma importância ecológica muito grande para ser considerado só um parque urbano”.
Esta parte da legislação surgiu no contexto do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), empenhado com investimentos em infraestrutura em todo o país, e no Rio enfatizando infraestrutura em algumas grandes favelas. Complementando os projetos do PAC (incluindo o teleférico do Complexo do Alemão) o renomado arquiteto argentino Jorge Mario Jauregui projetou o plano para o parque urbano municipal e uma série de corredores urbanos-ecológicos para melhorar a integração de espaços verdes na paisagem das favelas urbanas. No entanto, os eco planos de Jauregui foram abandonados: a Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (EMOP) afirmou que outras intervenções do PAC foram priorizadas.
Na perspectiva do Verdejar, dada a preocupação com a conservação ambiental, a classificação da Serra da Misericórdia como Parque Municipal Urbano sob o decreto de 2010 não é o ideal. Porém, a legislação proposta promete novas oportunidades recreativas e educativas.
No entanto, faltava o financiamento para o projeto. Edson descreve que o Verdejar organizou “uma série de mobilizações até que o Ministério do Meio Ambiente–através do Fundo Socioambiental da Caixa–liberou para a prefeitura R$11 milhões. A prefeitura iria colocar mais R$4 milhões dela exclusivamente para construir o Parque da Serra”.
O projeto, concebido pelo Darsa Arquitetura e lançado como uma iniciativa pioneira do Morar Carioca Verde—um ramo focado na sustentabilidade, do agora desmantelado programa de urbanização de favelas Morar Carioca–planejou a criação de centros de atividades sociais, incluindo seis quadras de esporte, uma ciclovia, trilhas para escaladas, equipamentos recreativos e programas de educação ambiental.
Os recursos para a construção do parque foram garantidos durante a Rio+20 Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, em 2012. Edson descreve: “A prefeitura não tinha mais desculpas. Tem a lei, tem o projeto, tem o dinheiro, tem a população organizada, e qual é a desculpe? Não tinha”.
Mas ao invés de iniciar a construção do Parque da Leopoldina, a primeira ação da prefeitura após assegurar o financiamento foi a de remover moradores da Lagoinha–uma área do Complexo do Alemão com necessidades críticas de investimento público em infraestrutura. O Verdejar questionou: “Que parque é esse que em vez de garantir a preservação da Serra da Misericórdia veio para oprimir as pessoas que já estavam oprimidas, que já estavam vulnerabilizadas?”. Em resposta ao processo da tomada de decisão, não transparente, para remover as famílias da Lagoinha, o Verdejar e outros atores da sociedade civil pediram para criar um conselho consultivo de gestão para a APARU Serra da Misericórdia. As autoridades da prefeitura não foram receptivas e não há nenhuma manifestação de um contexto para um diálogo público.
Em uma carta datada 28 de março de 2014, o prefeito Eduardo Paes e o Secretário Municipal de Habitação Pierre Batista escreveram para o superintendente regional da Caixa Tarcisio Luiz Dalvi a afirmação que o Parque Leopoldina não seria construído, justificando a promessa não cumprida, de seis centros recreativos, com a criação de um solitário parque de ciclismo. O parque urbano local foi planejado para ocupar 240 hectares; o parque de ciclismo ocupa um hectare.
Sendo assim, quinze anos depois de ganhar a designação de Área de Proteção Ambiental e Recuperação Urbana (APARU), nove anos depois da legislação para a criação de um parque ter surgido pela primeira vez, cinco anos após o projeto ter sido concebido e, três anos depois de receber o investimento público para implementar o projeto, o Verdejar quer saber: Cadê o Parque Municipal da Serra da Misericórdia?
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