Após pegar um mototáxi na Praça do Rio Comprido, cheguei a um dos pontos altos do Morro do Fogueteiro, que fica no Centro da cidade do Rio de Janeiro, no bairro de Santa Tereza. Há pouco mais de dois meses, a favela foi contemplada com uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). Fui me encontrar com a líder comunitária Cintia Luna, que, com seus 33 anos de vida vividos exclusivamente no Fogueteiro, se encaixa perfeitamente no conceito gramsciano de intelectual orgânica. “Sempre morei aqui, sei de muita coisa que muita gente não sabe. Sei sobre a história do Fogueteiro mesmo”, diz ela, que sonha em colocar seu pensamento em um documentário sobre a história do lugar de que é cria.
Muito extrovertida e simpática, estava em um ritmo frenético devido às suas atividades como presidenta da AMUST (Associação de Moradores Unidos de Santa Teresa): acabara de participar de uma reunião com representantes do SESI e o simpático Capitão da Polícia Militar Elton, responsável pela interface entre a UPP e a AMUST. Cintia me apresentou a eles nas imediações da quadra do Fogueteiro, para onde a associação se transferiu desde que as chuvas de abril do ano passado obrigaram a creche na qual funciona a associação a acolher os desabrigados.
Começamos nossa conversa pelas mudanças em curso na comunidade, mas o motivo de meu encontro com Cintia foi a curiosidade que senti na minha primeira ida a esse morro (no último dia 28 de março, onde fui junto com meus companheiros do curso de jornalismo da ComCat), particularmente a “capelinha” existente na entrada do Fogueteiro. Havia naquela espécie de templo imagens de São Cosme e São Damião, santos que são celebrados pela igreja católica, candomblé, batuque, xangô do Nordeste e xambá, cujo dia é comemorado em 27 de Setembro. São Cosme e São Damião abençoam os farmacêuticos, as faculdades de medicina, barbeiros e cabeleireiros, e protegem orfanatos, creches, doceiras, filhos em casa, contra hérnia e contra a peste.
Mas o que tem isso a ver com um local que antes era dominado por facções do comércio ilícito de drogas e hoje abriga o principal projeto de segurança pública do Rio de Janeiro? Fui tentar entender a situação religiosa deste local, e apurar as eventuais mudanças em relação a este assunto polêmico. Segundo a líder comunitária, o Fogueteiro tem uma longa tradição afro-descendente, inclusive os donos da boca-de-fumo. “No inicio, os traficantes usavam os santos mais pesados em diversos terreiros, pra proteger o corpo. Em cada encruzilhada, você via o Malandro, a Maria Padilha, o Exu”, lembra ela.
Tementes a Deus
A primeira mudança no cenário religioso se deu muito antes da pacificação do Fogueteiro, com a morte dos bandidos da velha guarda e a chegada ao poder de traficantes mais ligados à igreja católica. “Eles achavam isso ‘do mau’, ainda que eles também fossem perversos. Mostravam-se tementes a Deus, e por isso começaram a seguir uma linha mais ‘tranquila’, como São Cosme e São Damião.” Cíntia Luna acha que a devoção a esses santos tão presentes no sincretismo brasileiro tem a ver com a velha preocupação dos bandidos com as crianças e mesmo com o destino deles, já que São Cosme e Damião também protegem os oprimidos. Essa situação é idêntica no vizinho Morro do Fallet, cuja população mostra sua ligação com a igreja católica por intermédio de estátuas de Nossa Senhora e de São Jorge. “Eu não sei a diferença da umbanda e do candomblé, mas o único que se liga a essas religiões afro, e que também se liga a católica, é São Cosme e Damião e São Jorge.”
A igreja evangélica tem uma forte presença no morro, mas, ao contrário do que acontece em outras comunidades populares da região metropolitana do Rio de Janeiro, ainda não conseguiu superar a influência dos católicos. “As igrejas evangélicas têm um público alvo, as pessoas dos ‘ex’: ex cara que matava, ex cara que traficava”, sintetiza Cíntia Luna, que lembra que os próprios bandidos eram vistos com frequência nas missas dominicais, fossem de manhã ou à tarde. “A missa era patrocinada pela boca, que pagava para que o padre da Capela São Jose Operário rezasse lá”. A líder comunitária acredita que os bandidos eram mais fieis do que ela, que muitas das vezes não conseguia acordar a tempo de participar do culto.
As imagens dos santos São Cosme e São Damião no Fogueteiro vivem repleta de oferendas (doces, copos de refrigerantes, brinquedos, pedidos), e há uma pessoa responsável pela limpeza e organização da “capelinha”. “Essa pessoa não é obrigatoriamente ligada à macumba”, conta ela. Na hora da entrevista, a “capelinha” estava limpa e repleta de oferendas, mas com bem menos doces do que na época dos bandidos. “Eles colocavam mais coisas”.
Além da “capelinha”, há uma igreja católica, um terreiro de candomblé e diversos templos evangélicos. A líder comunitária atribui a decadência das religiões afro-descendentes às grandes mudanças mundiais, mas segundo ela a última mãe de santo da comunidade atrai principalmente os jovens no culto mensal que organiza. Essas religiões convivem em “harmonia”, porém essa paz se deve mais à passividade dos católicos e dos espíritas, que dificilmente respondem às provocações dos quase sempre intolerantes evangélicos. Mas a própria Cíntia já teve que mediar alguns conflitos. “Uma vez, teve uma festa da galera da umbanda, interrompida pelos ‘crentes’, que disseram que ainda havia tempo para os umbandistas salvarem as suas vidas, entregando aqueles santinhos para eles. O que aconteceu? Um grande bate boca e confusão entre eles.” Uma das pessoas mais problemáticas da comunidade é um pastor evangélico que, além de “viver berrando dentro da igreja”, chegou ao ponto de pintar a própria casa com versículos da Bíblia. “A igreja dele é a ‘Evangélica Minha, Para Mim Mesmo’.”
Os líderes religiosos chegaram a usar seu capital simbólico para mediar conflitos entre o tráfico e a comunidade, como no caso de um jovem de uma família evangélica. “Na época ele foi apontado como ‘X-9’, e até queriam matá-lo. Daí chamaram o pastor, que por sua vez me chamou, sem dizer nada do que se tratava. Fomos até ao ‘movimento’ conversar com o ‘cara de frente’ daqui na época. O pastor foi incrível, e disse: ‘cara, se ele está sendo julgado por algo, ele também merece uma defesa, e estou aqui pra advogar por ele.’ Os bandidos meio que continuaram retrucando, mas com menos força. Eu falei na hora: ‘e se fosse eu, também não teria julgamento?’. Disse que esse tipo de acusação poderia acontecer com qualquer um. Enfim, após a nossa conversa, deu tudo certo, e o menino ficou vivo.” O rapaz, condenado a sair do Fogueteiro, aproveitou a UPP para voltar para a comunidade.
A pacificação da comunidade já tem reflexos na questão religiosa, que podem ser percebidos na própria “capelinha” na entrada da favela. “A ‘capelinha’ voltou a ser limpa, e vai continuar, principalmente se depender de mim, e dos outros moradores, pois isso faz parte da nossa cultura.”
Muito importante a matéria, dos pontos-de-vista geral e particular, pois moro na comunidade vizinha, Morro dos Prazeres.
Gostaria de saber, devido à brilhante apresentação, se é possível determinar a origem dos nomes destas duas Comunidades.