Leia a matéria original por Eduardo Porter em inglês no site do The New York Times aqui. O RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil.
Os programas sociais aliciam os pobres?
Poucas ideias estão tão profundamente arraigadas na imaginação popular americana do que a crença de que a ajuda do governo a pessoas pobres encoraja o mau comportamento.
A concepção é particularmente apreciada pelo lado conservador do cenário, articulada com vivacidade por Charles Murray, do American Enterprise Institute (Instituto Americano de Empreendimentos), que culpa os programas sociais por tudo, desde o aumento do desemprego de jovens até o aumento na “ilegitimidade”. Suas opiniões são compartilhadas em maior ou menor grau por políticos republicanos, como o candidato à presidência derrotado Mitt Romney e o Presidente do Comitê de Orçamentos do Congresso Americano (House Ways and Means Committee), Paul Ryan.
Mas mesmo Franklin Delano Roosevelt, o pai do Novo Acordo (New Deal), chamou os programas sociais de “narcóticos, destruidores sutis do espírito humano”. E foi o presidente Bill Clinton, um democrata, que pôs fim ao “estado de bem-estar social como o conhecemos”.
Hoje, quase 20 anos depois que Clinton assinou a lei que cortou o direito federal à assistência de renda para famílias de baixa renda com filhos, o argumento tem se solidificado em uma política social central e dogmática, influente não apenas nos Estados Unidos, mas também ao redor do mundo.
E ainda assim, em nível significativo, é um pensamento errado. A experiência real, desde o país mais rico do mundo até os lugares mais pobres do planeta, sugere que doações em dinheiro podem ser de enorme ajuda para os pobres. E libertando-os daquilo que o presidente Ronald Reagan memoravelmente denominou de “teia de aranha de dependência“–ou “como forçar os pobres a nadar ou afundar”–não é a cura para todos os males sociais que seus defensores afirmam.
Um bilhão de pessoas nos países em desenvolvimento participam de uma rede de segurança social. Pelo menos um tipo de assistência incondicional de renda é utilizado em 119 países. Em 52 outros países, as transferências de renda são condicionadas a partir de requisitos benignos como o papel dos pais de matricular os filhos na escola.
Abhijit Banerjee, diretor do Laboratório de Ação Contra a Pobreza no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), divulgou um documento com três colegas na semana passada que cuidadosamente avalia os efeitos de sete programas de transferência de renda no México, Marrocos, Honduras, Nicarágua, Filipinas e Indonésia. Não foi encontrada “nenhuma evidência sistemática de que os programas de transferência de renda desencorajam o trabalho”.
“A propagação da aversão aos programas sociais ao redor do mundo pode ser uma criação americana.”
Um relatório do Banco Mundial de 2014 analisou os programas de assistência de renda na África, Ásia e América Latina e encontrou, ao contrário do que diz o estereótipo popular, que o dinheiro não era tipicamente desperdiçado em coisas como o álcool e tabaco.
Ainda assim, o Professor Banerjee observou que em muitos países “nós encontramos a ideia de que doações tornam as pessoas preguiçosas”.
Professor Banerjee sugere que a propagação da aversão aos programas sociais ao redor do mundo pode ser uma criação americana. “Muitos governos têm assessores econômicos com cargos nos Estados Unidos que compartilham a mesma ideologia”, disse ele. “A ideologia é muito mais difundida do que os fatos”.
O que é mais desconcertante é que a própria experiência dos Estados Unidos tanto com os programas sociais e sua “reforma” realmente não suportou os encargos.
Um exemplo é o da gravidez de mães solteiras. Já em 1995, uma análise das taxas de natalidade entre mães solteiras feita por Hilary Hoynes, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, descobriu que os pagamentos de previdência social não aumentaram a maternidade de mãe solteira. E a experiência ao longo dos próximos 20 anos, sugeriu que o fim dos programas sociais não os reduziram.
A acusação de que tais programas se tornam um modo de vida que se reproduz ao longo das gerações também é duvidosa. Antes da reforma da previdência em 1996, cerca de quatro em cada 10 americanos incluídos nos programas de bem-estar permaneceram neles por apenas um ou dois anos. Apenas cerca de um terço permaneceu por cinco anos ou mais.
E o que dizer dos postos de trabalho? Há pouca dúvida de que programas de bem-estar social podem desencorajar o emprego, particularmente porque os destinatários perdem os benefícios rapidamente quando seus ganhos no trabalho aumentam.
Ainda assim, os efeitos são silenciados. Por exemplo, em 1983, Robert Moffitt, então na Universidade Rutgers, estimou que os programas de bem-estar reduziram o trabalho em cerca de quatro horas por semana, de um total de 25.
“Há algum efeito dissuasor consistente com a teoria, mas a magnitude econômica não é grande”, disse James P. Ziliak, chefe do Centro de Investigação da Pobreza na Universidade de Kentucky. “Muitas vezes estes efeitos de desincentivo são exagerados no discurso político”.
Por outro lado, os programas sociais proporcionam benefícios muito tangíveis. Uma nova pesquisa mostra que programas sociais de assistência de renda no início da vida de uma criança melhoram a longevidade da criança, seu nível de escolaridade, seu estado nutricional e sua renda na idade adulta.
O que os Estados Unidos alcançaram com a reforma do Estado de bem-estar social?
Seu objetivo central–colocar os pobres em postos de trabalho–foi louvável. Nos primeiros anos, os efeitos pareciam quase bons demais para acreditar. O número de famílias nos programas sociais despencou. A oferta de trabalho para mães solteiras disparou. A pobreza infantil diminuiu drasticamente.
Mas os aplausos desapareceram. Ao longo do tempo a oferta de trabalho para mães solteiras com menor escolaridade, aquelas com, no máximo, o ensino médio, retornou a seu nível anterior. A pobreza se recuperou, como também foi o caso com os nascimentos fora do casamento.
Após o fato, muitos pesquisadores independentes concluíram que a forte economia da década de 90, combinada com maiores subsídios salariais através da expansão do crédito do imposto de renda, merecia a maior parte do crédito para a melhoria. Enquanto isso, empurrar os pobres para fora do sistema de bem-estar social–substituindo o direito à assistência de renda com programas estatais limitados que drasticamente reduziram o acesso à ajuda por diversos motivos–teve custos claros, suportados pelos mais pobres entre os pobres.
“O que perdemos foi o compromisso com os pobres que enfrentam barreiras significativas para o trabalho, seja por ter de cuidar das crianças ou por deficiências físicas ou mentais”, disse Ziliak. “Nós acabamos com a assistência de renda para esse grupo, que sofreu consideravelmente.”
“As evidências não casam com a crença popular de que a reforma da previdência foi um enorme sucesso.”
Quando a Grande Recessão ocorreu, muitos dos americanos mais pobres descobriram que não havia nenhuma rede de segurança para eles. “A pobreza extrema foi mais afetada pelo choque do mercado de trabalho do que por experiências anteriores”, disse o professor Hoynes em Berkeley.
Porque é que este debate ainda é relevante hoje? As evidências não casam com a crença popular de que a reforma da previdência foi um enorme sucesso.
A velha estratégia de bem-estar social que o Sr. Murray culpou por tantos males sociais morreu há muito tempo. A sua substituição é pequena em comparação, fornecendo dinheiro para apenas cerca de um quarto das famílias pobres e, na maioria dos casos, apenas o suficiente para levá-los até um quarto do caminho para sair da pobreza.
Ainda assim, a estratégia permanece sob os holofotes. E os argumentos contra ela são praticamente os mesmos que o presidente Reagan fez há 30 anos.
O deputado Ryan vem promovendo um plano que ele elaborou no ano passado que substituiria os programas de assistência federais restantes com doações em bloco para os Estados e imporia exigências de trabalho difíceis aos beneficiários.
“Em vez de apenas tratar os sintomas da pobreza”, disse ele no mês passado, “o nosso objetivo deve ser o de ajudar as pessoas a se deslocar dos programas sociais para o trabalho e a autossuficiência”.
Antes dos Estados Unidos irem por esse caminho novamente, no entanto, pode fazer sentido reavaliar a força do argumento subjacente: que as pessoas pobres nunca vão agir de forma responsável, conseguir um emprego e ficar em uma família a menos que eles sejam jogados em uma piscina para deixarem de lutar com o pouco apoio que sobrou de nós.