Quando jornalistas estrangeiros chegam ao Rio de Janeiro com vontade de registrar notícias oriundas das favelas, logo eles se veem dependendo das mídias sociais. Muitos se surpreendem ao perceber que o Brasil, em geral, e os moradores das favelas, em específico, não só adotaram as mídias sociais, mas as usam vigorosamente para compartilhar notícias sobre suas comunidades. Como reportado no ano passado, as favelas tem um número maior de usuários de internet do que o “asfalto”. A internet nas favelas é acessada principalmente através de aparelhos celulares e wi-fi gratuito. O celular é, afirma Thamyra Thâmara do coletivo GatoMÍDIA, uma ferramenta essencial para tratar das desigualdades, em especial para os jovens da favela: “Nenhum acontecimento no seu território passa despercebido pelas lentes do seu android”.
Muitas favelas contam com membros da própria comunidade para espalhar avisos de cortes no fornecimento de energia, de atividade policial ou enchentes, e também notícias sobre a inauguração de um novo restaurante, um evento, ou protestos. Do WhatsApp, tão amado pelos brasileiros que até recebeu o carinhoso apelido de “zap zap” (e para os quais parecia que o mundo havia acabado quando os seus serviços foram paralisados no Brasil inteiro por 24 horas em dezembro) ao Twitter e Facebook (ambos contam com os brasileiros como seu segundo maior grupo de usuários) e Snapchat, alguns moradores influentes têm se tornado pilares da comunidade em que vivem e conquistado fiéis seguidores. Lembrando que os jovens brasileiros são os que, mundialmente, mais passam tempo em seus celulares.
No Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Mariluce Mariá Souza, uma artista e ativista comunitária, alcançou o número máximo de amigos permitido pelo Facebook assim que seu papel como importante fonte de notícias para a favela se tornou conhecido. Ela também administra um grupo do WhatsApp para moradores e jornalistas. Mariluce foi reconhecida por seu trabalho e teve a oportunidade de palestrar na conferência Iniciativas Educacionais e Empresariais de Apoio a Jovens em Locais de Violência, na Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Mariluce é um exemplo do movimento inspirador que está tomando conta do Rio, onde moradores estão se tornando os responsáveis por informar e compartilhar com a mídia local e internacional as notícias das favelas, antes ignoradas ou vistas como inacessíveis.
Retrospectiva das mídias sociais na favela em 2015
2015 se destacou pelos grandes avanços no papel desempenhado pelas mídias sociais de promover e compartilhar notícias populares das favelas do Rio. Jornalistas cidadãos, moradores preocupados, e grupos de ativismo há anos usam as mídias sociais para divulgar notícias do Complexo do Alemão, da Providência, do Complexo da Maré, entre outros. Entretanto, 2015 viu esse papel se intensificar tanto a ponto que as mídias sociais passaram a influenciar diretamente a mídia tradicional e internacional, extinguindo a lacuna que as separavam.
A dimensão do impacto que um cidadão comum pode causar hoje em dia na programação dos noticiários ficou evidente no caso de Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos, na Providência. Numa terça-feira, dia 29 de setembro, a polícia matou Eduardo à tiros. Uma moradora da favela flagrou com uma câmera o policial plantando uma arma no corpo de Eduardo e a disparando, deixando vestígios de pólvora para incriminá-lo. O vídeo, compartilhado no Facebook logo após o incidente, rapidamente se tornou viral. Com o grande número de comentários e compartilhamentos no Twitter, em questão de horas o vídeo e sua mensagem chegaram aos noticiários nacionais e em seguida alcançaram a a mídia internacional, através da BBC e do The Telegraph. O papel crucial das mídias sociais e do uso de celulares nesse caso foi ressaltado pela reportagem do The Guardian, que declarou que somente “quando incidentes são filmados é que a justiça é feita”.
A mulher que gravou o vídeo tem recebido ameaças da polícia, e a Divisão de Homicídios da Polícia Civil ofereceu proteção a ela. Sua destemida ação gerou consequências reais no caso de Eduardo ao levar cinco policiais a serem detidos e ao proporcionar à futuras testemunhas comunitárias coragem para continuarem documentando e compartilhando incidentes em suas favelas.
Moradores da favela não só estão usando as redes sociais extensivamente, como também estão à frente quando o assunto são as novas tendências de mídia social. 2015 viu o Periscope chegar ao mercado e logo os jornalistas mais inovadores tomaram conta do aplicativo de transmissão de vídeos em tempo real. O link automático com o Twitter permite que o Periscope se insira facilmente no fluxo diário de notícias das favelas. Isso possibilita que indivíduos como Raull Santiago e outros membros do Coletivo Papo Reto, do Complexo do Alemão, usem o aplicativo para fazer entrevistas, relatos de ações policiais e comentários de noticiários.
O Coletivo Papo Reto está sempre à frente no uso de mídias sociais, técnicas de vídeo inovadoras e organização comunitária para impactar sua comunidade. Eles foram reconhecidos internacionalmente pelo trabalho usando jornalismo colaborativo e vídeos para responsabilizar a polícia por suas ações, ganhando inclusive o Prêmio Internacional de Filantropia de 2015.
Em 2015 os cidadãos cariocas intensificaram ainda mais o uso do WhatsApp ao criarem diversos grupos onde compartilham notícias em tempo real. A função de grupos do aplicativo permite que os moradores das favelas compartilhem gratuitamente notícias diretamente com outros membros da comunidade e também com uma ampla rede de apoiadores. Alguns moradores também usam o WhatsApp para se conectar com jornalistas e correspondentes locais e garantir que as notícias sejam selecionadas instantaneamente. O aplicativo é uma ferramenta tão aceita no Rio que o jornal O Dia tem usado o WhatsApp desde 2014 para receber sugestões e notícias. Em 2015 o RJTV, da Rede Globo, aderiu à ideia oferecendo à seus leitores a chance de enviar fotos e vídeos através do WhatsApp e do Viber, outro aplicativo menos usado.
Em 2015 também vimos um aumento na organização de eventos e campanhas através das mídias sociais pelo uso de hastags, incluindo a campanha e o protesto do Coletivo Papo Reto #TáTudoErrado, a campanha para financiamento coletivo do Complexo do Alemão #TodosPeloAlemão, e as campanhas da Vila Autódromo #VivaVilaAutódromo, #RioSemRemoções e o evento #OcupaVilaAutodromo. Essas hashtags efetivamente mobilizaram os moradores por suas respectivas causas, assim como trouxeram o suporte de outras favelas, de amplos movimentos da sociedade civil e da mídia local e internacional.
O que pode acontecer em 2016
2016 oferece um enorme potencial para mudanças no Rio. Com as Olímpidas e os Jogos Paraolímpicos se aproximando, os moradores das favelas têm uma grande oportunidade de chamar a atenção dos noticiários internacionais. Entretanto, as ameaças também aumentam, com as remoções e a violência policial se intensificando com a chegada do megaevento.
No mundo da mídia social, novos aplicativos e funções serão de grande utilidade para os moradores das favelas. O Blab, um aplicativo de conversa por vídeo que permite interações em tempo real em grupos de até quatro pessoas, poderá ser uma ferramenta interessante para mobilizadores locais das favelas. Em 2015 vimos vários exemplos de comunidades dando suporte umas as outras nas redes sociais através de compartilhamento e eventos de debates. Tal aplicativo poderá permitir que diferentes comunidades que compartilhem das mesmas preocupações trabalhem juntas e publiquem vídeos coletivos nas mídias sociais. Em geral, a transmissão de vídeos ao vivo apenas aumentará e terá sua qualidade aperfeiçoada em 2016. Isto é algo que tem se tornado tão comum que o o Facebook começou a testar no início de dezembro sua própria ferramenta de transmissão de vídeo em tempo real.
O uso de celulares para filmar e documentar incidentes, especialmente casos de violência policial e remoções, foi reconhecido internacionalmente como um importante movimento em 2015 e continuará a crescer em 2016. Uma iniciativa entre o Witness, Coletivo Papo Reto e importantes programadores de Nova Iorque espera lançar um novo aplicativo ainda este ano, o CameraV. O aplicativo está disponível na versão beta para testes e tem como objetivo possibilitar que usuários filmem qualquer incidente de forma segura. O aplicativo irá embutir um sensor de dados do smartphone nos pixels da imagem ou vídeo capturado, proporcionando novos padrões de prova e autenticação. Isso poderá significar o fortalecimento do uso de filmes gravados por cidadãos como evidência em procedimentos criminais, levando testemunhas a se sentirem mais seguras ao coletar e compartilhar suas evidências em vídeo.
Ao mesmo tempo, o poder da mídia social é cada vez mais visto como uma ameaça pelo governo. No dia 17 de dezembro o WhatsApp foi bloqueado, uma interrupção inicialmente planejada para durar 48 horas mas que durou 24 horas devido a indignação a nível nacional. Essa jogada drástica por parte da Justiça parece ter sido uma resposta à recusa do aplicativo de disponibilizar dados pessoais de usuários investigados pela Polícia Federal. Em um país com 100 milhões de usuários do WhatsApp, a medida foi forte e gerou preocupações sobre a futura estabilidade das contas em mídias sociais em que muitos confiam.
Nos últimos meses, começando com o TechCrunch e mais recentemente o TIME, notícias têm circulado internacionalmente sobre o plano do Congresso Nacional de reverter algumas medidas do celebrado Marco Civil da Internet de 2014, que inclui os direitos dos usuários de internet. As mudanças propostas incluem exigir que todos os sites armazenem os dados dos usuários por até três anos e que forneçam acesso à polícia. Esse tipo de acesso “big brother” teria grandes consequências no uso de mídias sociais, no jornalismo cidadão e na posição do Brasil como líder no uso de internet. Considerando que os analistas de mídia social esperam que o WhatsApp, o YouTube e o Facebook continuem crescendo no Brasil, essa será uma grande questão para se ficar de olho em 2016, com a situação se intensificando a medida que os políticos, preocupados com a crescente reação negativa, lutam para limitar as companhias transnacionais de internet e os direitos de usuários.
Independente do que 2016 possa trazer, os moradores das favelas com certeza irão continuar usando a mídia social para notícias, para proteção e organização, e para compartilhar suas histórias com o mundo.