Coletivo de Fotógrafos ‘Imagens do Povo’ Parte 3: Resistência Através da Beleza

Crianças no Timbau, Maré. Foto por Francisco Valdean

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Este é o último artigo de uma série de três partes sobre o coletivo de fotografia Imagens do Povo.

“Eu acho que nós estamos vivendo este grande conflito: uma história única ou muitas histórias; a manutenção do status quo ou a produção de grandes transformações.”

“Se você fotografar alguém com dignidade, seja na dor ou alegria, você aproxima as pessoas. Mesmo que seja através de uma reflexão crítica, mas você aproxima as pessoas.” – João Roberto Ripper

Imagens do Povo é uma escola e um coletivo de fotografia baseado no Complexo da Maré. Foi fundado João Roberto Ripper, um célebre fotógrafo documentarista que enfatizou os princípios da dignidade e empatia. Os dois primeiros artigos desta série apresentaram dois grupos de fotógrafos do Imagens do Povo: os ‘repórteres-ativistas‘ e os ‘arquivistas-documentaristas‘. Neste artigo iremos questionar como o trabalho destes fotógrafos pode ser enquadrado dentro das discussões sobre a produção dos meios de comunicação sobre favelas, a estética das favelas, e as lutas de resistência.

Arte de rua que descreve um fotógrafo favelado jovem na Avenida Brasil, Complexo da Maré. Foto por Andrea Cangialosi
Arte de rua que exibe um fotógrafo favelado jovem na Avenida Brasil, Complexo da Maré. Foto por Andrea Cangialosi

Opressão e resistência no Complexo da Maré

De acordo com os resultados da pesquisa na qual esta série foi baseada, no caso do coletivo Imagens do Povo, a variação na forma de resistência–pelo ativismo e denúncias de violações, e por documentação de identidades, cultura e vida diária–responde à variação nas formas de opressão sofridas. Estas formas de opressão incluem estigmatização na grande mídia e no discurso do governo; criminalização dos movimentos sociais e povos não-brancos e pobres passando por intervenções militaristas; a ocupação de comunidades e a violência do exército e da polícia patrocinada pelo Estado; e ameaças da tomada de espaços públicos para o benefício de interesses privados.

O Imagens do Povo desempenha um papel fundamental na luta contra essas opressões por envolver na disputa sobre a estética, símbolos e conceitos relacionados com favelas. Suas fotografias lidam com a identidade e a representação dos moradores da Maré e o impacto da compreensão de si próprios, bem como sua relação com a favela e a cidade em geral. O fato dos moradores das favelas tomarem o controle dos meios e modos de produção e reprodução de imagens e do imaginário é revolucionário, embora não novo.

O editor associado da Revista artnet Ben Davis resume o filósofo francês Jacques Rancièrequando escreve que “a política é a luta de um não reconhecido pelo reconhecimento equitativo na ordem estabelecida”. Contra a “ordem estabelecida” das representações dominantes da favela na mídia, os fotógrafos do Imagens do Povo mostram uma perspectiva diferente, menos reconhecida, que, pela definição de Ben Davis faz sua arte inerentemente uma luta política.

Grafite com o jogo de palavras AMARÉ. Foto por Andrea Cangialosi
Grafite com o jogo de palavras AMARÉ. Foto por Andrea Cangialosi

Equilibrando as duas estéticas com a política

As abordagens do ‘reporter ativista‘ e do ‘arquivista-documentarista‘ não se encaixam em categorias opostas de arte politicamente engajada de um lado e arte autônoma e politicamente independente do outro. Em vez disso, essas duas abordagens encontram um equilíbrio entre as ideias co-existentes de Rancière da arte influenciada pela vida (e, portanto, também pela política) e da arte que resiste a interferência ou arte pela arte. Cada forma expressa e resulta em potenciais políticos e artísticos.

Os fotógrafos do Imagens do Povo mostram como este equilíbrio tenso e a coexistência entre arte e política se encontram, como escreve a historiadora de arte Sophie Berrebi, “uma forma que pode existir no meio de duas estéticas opostas”.

No caso da abordagem do ativista-repórter, o trabalho dos artistas se funde, nas palavras de Sophie Berrebi, “com outras formas de atividade e de ser”. A foto de Luiz Baltar, ‘Marcha Contra o genocídio de negros na Maré’, é um claro exemplo da fotografia imersa em eventos políticos e lutas:

Marcha contra o Genocídio de pessoas negras na Maré. Foto por Luis Baltar, 6 de setembro de 2014.
Marcha contra o genocídio negro na Maré. Foto por Luiz Baltar, 6 de setembro de 2014.

No caso da abordagem arquivista-documentarista, “o potencial político da experiência estética deriva da separação da arte de outras formas de atividade”. Há uma resistência passiva no artista dando um passo para trás em relação aos problemas da vida política e se aprofundando no domínio da estética ou da beleza. A fotografia de Ratão Diniz demonstra esse foco nas suas preocupações artísticas e seus interesses fotográficas pessoais.

Membro da trupe Carroça de Mamulengos de atores, músicos, contadores de histórias e palhaços. Foto por Ratão Diniz, 04 de dezembro de 2010.
Membro da trupe Carroça de Mamulengos de atores, músicos, contadores de histórias e palhaços. Foto por Ratão Diniz, 04 de dezembro de 2010.

Empatia mais do que choque

Ben Davis escreve que a estética–o conjunto de princípios relacionados com a natureza e a apreciação da beleza, gosto e arte–é a luta “sobre a imagem da sociedade–o que é permitido dizer ou mostrar”.

A pesquisadora de mídia brasileira Beatriz Jaguaribe argumenta que a estética brasileira é muitas vezes caracterizada por o que ela chama de ‘choque do real‘. A realidade, como representada na grande mídia, é retratada por meio de eventos e narrativas chocantes, que são retratadas como normais.

Em contraste, a fotografia ’empática’ do Imagens do Povo tem um foco diferente. Que lembra a ideia de Rancière de estética relacional, em que “a arte existe para trazer os laços sociais entre as pessoas”, especialmente os marginalizados pela sociedade. A imagem por Monara Barretto de um grafiteiro de uma favela de São Paulo que realizou sua arte na Maré cumpre este objetivo literalmente. Ele destaca a arte e a troca de cultura tendo lugar nas favelas, sem referenciar eventos “chocantes” como a violência e a pobreza.

Grafiteiro Bruno Smoky da favela Brasilândia em São Paulo contribui para a obra de arte na mais nova favela da Maré. Foto por Monara Barreto, 14 de março de 2014.
Grafiteiro Bruno Smoky da favela Brasilândia em São Paulo contribui para a obra de arte na mais nova favela da Maré. Foto por Monara Barreto, 14 de março de 2014.

Ao usar a empatia mais do que o choque, a fotografia do Imagens do Povo contrasta com as realidades sujas, violentas e sem esperança retratadas pela grande mídia.

Jaguaribe argumenta que as narrativas ‘chocantes’ da grande mídia e do senso comum são baseadas em suposições e preconceitos simplificados. O teórico de arte Joseph Nechvatal destaca o argumento de Ranciére que as contra-narrativas como as mostradas pelo Imagens do Povo são cada vez mais importantes hoje “para combater os efeitos de simplificação da nossa época”, que resultam “do excesso de mensagens de entretenimento orientadas para o consumidor, e propaganda política que a mídia de massa aplica para nos alimentar diariamente com interesses de lucro corporativo e manipulações psicológicas governamentais”.

Equilibrando ‘atos de existência’ e ‘vida pulsante

Em meio as significativas transformações no Rio, com o programa das UPPs, Copa do Mundo e as Olimpíadas, os fotógrafos do Imagens do Povo mostram que não há maior megaevento que a própria vida. Esta abordagem se alinha com a política da estética de Rancière, o que demanda a “honra conferida ao lugar comum, mostrando sintomas de uma época, de uma sociedade, ou de uma civilização nos detalhes minuciosos da vida comum”. O fotógrafo Francisco Valdean procura constantemente e captura a beleza em cenas comuns em favelas, como nesta foto das crianças que brincam na Maré:

Crianças no Timbau, Maré. Foto por Francisco Valdean
Crianças no Timbau, Maré. Foto por Francisco Valdean

Imagens do Povo é dedicado ao processo que Rancière descreve, de honrar e revelar. Mostrar beleza, felicidade e boa vontade, independentemente das adversidades sociais ou geográficas é a chave para a luta contra a estigmatização. Assim, cada fotografia do Imagens do Povo que contesta a interpretação dominante e que captura a vida diária está resistindo à opressão, ao mesmo tempo que fortalece as identidades e relações sociais.

Nas palavras de Ratão Diniz, um antigo fotógrafo do Imagens do Povo, seu trabalho é “denunciar [a opressão] através da beleza, a beleza das favelas!” Na verdade, o objetivo é honrar e preservar a vida pulsante das favelas: tais medidas podem vir a ser chamadas tanto de atos de existência e atos de resistência.

O sentimento de equilíbrio e de afirmação da beleza por trás da fotografia do Imagens do Povo se reflete nas palavras do poema de Shane Koyczan, “Para este dia“: “Nossas vidas só poderão sempre / Continuar a ser / Um ato de equilíbrio / Que tem menos a ver com a dor / E mais a ver com a beleza”.

Andrea Cangialosi realizou um mestrado internacional em Sociologia nas universidades de Freiburg, Buenos Aires e Bangkok. Esta série é baseada em sua pesquisa como repórter do RioOnWatch e no seu trabalho de campo para sua tese “Vida Pulsante: Rio’s Mega-Events Footprints, Oppressions and Resistances in Maré Favelas as Pictured by Imagens do Povo Photographers” (Vida Pulsante: As pegadas dos Megaeventos, Opressões e Resistências na Favela da Maré no Rio de Janeiro Retratadas pelos Fotógrafos do Imagens do Povo).