Os blocos de apartamentos que alojarão jornalistas durante os Jogos Olímpicos de 2016 foram construídos usando “trabalho em condições análogas à escravidão” e foram erguidos em um cemitério de escravos em um terreno reivindicado por um quilombo reconhecido pelo governo federal.
O complexo de apartamentos, chamado oficialmente de Barra Media Village 3 (Vila da Mídia 3), foi construído no Quilombo do Camorim, uma comunidade perto de várias instalações olímpicas na Zona Oeste do Rio. A comunidade foi fundada no século 19, quando a área ainda não fazia parte da cidade do Rio. Era uma comunidade rural periférica.
O projeto de construção pela incorporadora Cyrela se destina inicialmente a alojar jornalistas internacionais durante os Jogos no próximo mês e é a fonte de uma série de controvérsias, que incluem pessoas trabalhando em “condições análogas à escravidão“; construção em um terreno reivindicado pela comunidade do Quilombo do Camorim–onde está sendo realizado sobre um cemitério coletivo de escravos e em uma área de preservação ambiental; a remoção de mais de 1.000 árvores nativas e instalações comunitárias, afetando drasticamente o abastecimento de água da região.
Moradores resistiram fortemente à construção do complexo de apartamentos e atualmente estão em campanha para construir um centro comunitário em uma parte adjacente ao terreno, pouco urbanizada, que foi doada pela Cyrela para a Prefeitura.
O centro comunitário pretende fornecer não somente uma área de lazer, mas também se propõe a ajudar a preservar a rica herança ambiental e histórica da região transmitida por afro-brasileiros.
“Eu falo de coração, eu sou quilombola e tenho muito orgulho”, disse Adilson Almeida, líder comunitário do Quilombo do Camorim. “A escravidão foi uma época de grande sofrimento para os nossos antepassados, mas nós lembramos deles não pelo sofrimento, e sim pela luta e resistência que eles atravessaram para erguer este país”.
Trabalhadores em “condições análogas à escravidão”
Em novembro de 2015, o Ministério Público do Trabalho do Rio resgatou 11 trabalhadores que trabalhavam na construção da Vila da Mídia, trabalhando em condições degradantes, as quais de acordo com o código penal brasileiro são classificadas como “trabalho análogo à escravidão”.
O alojamento fornecido para os 11 trabalhadores não tinha água potável, estava coberto de baratas e mofo, no único banheiro não havia chuveiro e tinha um vaso sanitário que não funcionava.
Cyrela “terceirizou e até quarteirizou as atividades principais da empresa, de forma irregular, com o objetivo de sonegar direitos trabalhistas para baratear os custos com mão de obra”, de acordo com a promotora Guadalupe Couto.
As empresas de construção que trabalham na Vila da Mídia tiveram de pagar R$20.000 de indenização para cada um dos 11 trabalhadores, além de outras multas. O Ministério Público também indicou que abriria um processo judicial contra a incorporadora para “exigir danos morais coletivos por danos causados à sociedade pelo uso de trabalho escravo”.
Reivindicação de terras do Quilombo do Camorim
Camorim, que é oficialmente reconhecido pelo governo federal como um quilombo, há vários anos fez a requisição de um título de posse coletivo do local, de uma antiga fazenda de cana de açúcar, um importante marco da história da escravidão na região. O quilombo queria preservar as características históricas e ambientais da área e construir um centro comunitário para atividades culturais.
Em 2004, a comunidade enviou um requerimento ao governo federal para adquirir a posse da terra que inclui o local da Vila da Mídia; porém, devido a dificuldades burocráticas, o processo ainda está em curso.
No começo de 2013, a Cyrela adquiriu a terra reivindicada pelo quilombo, removeu os campos de futebol da comunidade, desmatou a área e começou a construção do complexo de apartamentos.
“Nós sofremos muito com isso”, disse Hérick Santos, um jardineiro e morador do Quilombo do Camorim. “A gente jogava futebol, nadava no rio e brincava [na floresta]. Era a a nossa infância”.
Um relatório do INCRA de 2009 delineou a extensa história de escravos da região e indicou que os moradores de quilombos “em princípio reivindicam um terreno que fica ao lado da praça da capela, para finalidades culturais”. Este foi o terreno usado para a construção da Vila da Mídia, de acordo com moradores.
“Há dez anos a comunidade vem pleiteando um espaço para desenvolvimento cultural das nossas tradições exatamente onde ocorreu a devastação das árvores pelas empreiteiras”, de acordo com uma postagem em um blog escrito por moradores do Camorim em março de 2014. “Percebemos que a derrubada parou bem próximo à Igreja.”
A Cyrela concluiu recentemente a construção e entregou o prédio ao Comitê Olímpico Brasileiro. A Vila da Mídia foi aberta para jornalistas em 5 de julho, de acordo com o Guia de Alojamento da Imprensa – Rio 2016.
Destruição ambiental
O complexo de apartamentos foi construído em uma zona neutra de proteção ambiental que rodeia o Parque Estadual da Pedra Branca, a maior floresta urbana do mundo, de acordo com um plano de gestão do Parque Estadual. Nesta área, licenças especiais baseadas em estudos de impacto ambiental são necessárias para que projetos de construção prossigam.
A Cyrela cortou mais de 1.000 árvores nativas no local para abrir caminho para a Vila da Mídia.
“Um domingo de manhã uma motosserra veio e devastou tudo. Eram árvores centenárias”, disse Adilson Almeida.
O complexo de apartamentos também foi construído em uma Área de Especial Interesse Ambiental, que foi criada por decreto municipal em novembro de 2013 para proteger os ecossistemas naturais e infraestrutura precária da região. O decreto congelou as concessões de licenças ou projetos de construção no Camorim e em outros bairros ao redor do Parque Estadual da Pedra Branca. No entanto, ele continha uma brecha isentando todos os projetos de construção direta ou indiretamente relacionados com os Jogos Olímpicos.
A Cyrela afirmou que eles tinham todas as licenças necessárias para a construção.
Destruição arqueológica do cemitério de escravos de Camorim
Adilson Almeida estava particularmente aborrecido pela localização da Vila da Mídia porque ele diz que foi construída no local de um grande cemitério de escravos.
“Para mim é sagrado porque é um solo aonde foram enterrados os meus antepassados”, disse Adilson Almeida. “Qualquer terreno onde é possível encontrar artefatos, vestígios de ossos humanos ou mesmo animais pré-históricos torna-se um solo sagrado e deve ser protegido pela lei.”
Adilson Almeida lembra que por volta de 1990 era possível ver ossos no chão depois de períodos de chuva forte. “Vimos adolescentes e crianças pegarem os ossos… e enterrá-los novamente”, disse ele.
A construção também destruiu o que restava da casa do senhor de escravos e o antigo engenho de açúcar da época da escravatura, de acordo com Adilson Almeida.
Durante uma escavação do terreno da igreja de Camorim em 2000, um grande número de ossos humanos foi descoberto, os quais se acreditava serem de escravos.
Rogério Ribeiro de Oliveira, professor de geografia da PUC do Rio de Janeiro, que publicou um livro sobre a história da região, criticou o projeto de construção por não conduzir um estudo arqueológico no local. Ele argumenta que é muito provável que escravos estivessem enterrados lá por causa da proximidade com a igreja.
“Geralmente os escravos eram enterrados nas proximidades da igreja; portanto, a chance é alta de que houvesse um cemitério no atual condomínio [Vila da Mídia]”, disse Oliveira. “É muito grande a chance de ter havido a destruição de vestígios [arqueológicos], não só do período do engenho de açúcar, mas também de antes, do período pré-colonial”.
Desvio de água
A construção do complexo de apartamentos desviou a água da comunidade do Quilombo do Camorim, deixando os moradores com acesso extremamente restrito à água encanada.
“Antes nunca faltou água aqui”, disse Hérick Santos. “Depois que eles começaram as obras, eles desviaram a água que vinha para cá para lá [o terreno da Vila da Mídia]. Nós ficamos sem água e temos de ligar as bombas de água de madrugada, porque durante o dia não tem água.”
Os moradores dizem que, enquanto eles sofrem uma escassez severa de água, o condomínio tem acesso a água 24 horas por dia.
“Nós achamos estranho que [aqueles que trabalham na Vila da Mídia] tenham água 24 horas por dia, enquanto só temos água depois das duas da manhã”, acrescentou Santos. “Isso causou um impacto enorme”.
A Cyrela é uma das principais doadoras para a campanha do Prefeito Eduardo Paes
Cyrela, a incorporadora responsável pelo projeto, foi uma das principais doadoras para a campanha de reeleição de Paes. Em 2012, a empresa doou R$500.000 para seu partido político, dos quais 75% foram para a campanha do prefeito.
Este não é o primeiro projeto de construção controverso da Olimpíada envolvendo a Cyrela e a Prefeitura. Em dezembro de 2012, Paes fez um acordo controverso com a Cyrela para construir um campo de golfe olímpico em uma reserva ambiental protegida. A Prefeitura da cidade forneceu à Cyrela amplos direitos para construir 23 novos condomínios de alto luxo no local, em troca de arcar com os custos do campo de golfe.
Campanha para construir um centro comunitário
Os moradores do Quilombo do Camorim resistiram fortemente à construção do complexo de apartamentos, que agora está completa. No entanto, o quilombo continua determinado a defender sua visão de construir um centro comunitário.
A Cyrela doou um pedaço de terra não urbanizada adjacente à Vila da Mídia para a Prefeitura e o quilombo está em forte campanha para que uma parte desse terreno seja reservada para um centro comunitário.
Quando o Prefeito Eduardo Paes visitou o bairro no início de 2014, ele “falou que teria como intervir com a Cyrela para que uma parte [do terreno] fosse doada ao Quilombo do Camorim para fins sociais”, segundo Adilson Almeida. Poucos dias depois, Adilson enviou um ofício para o prefeito, solicitando que uma parte do terreno fosse utilizada para o centro comunitário. O quilombo nunca recebeu uma resposta.
O dano causado pela construção só reforçou a determinação da comunidade em preservar o rico patrimônio histórico e ambiental da área. No entanto, ela é impedida pelo fato de não ter um espaço dedicado a isto. O quilombo organiza atividades para preservar a floresta do entorno e celebrar o mosaico de música, dança, artes marciais e religião que foi transmitido de seus antepassados escravizados.
Quilombos são uma lembrança viva do capítulo longo e sombrio da história do país que muitos gostariam de esquecer. No entanto, para os membros do Quilombo do Camorim, a conexão com seus antepassados é uma fonte de força e inspiração.
“Queremos manter viva a memória dos nossos antepassados, porque eles ainda existem em espírito, olhando e orientando todos nós”, disse Adilson Almeida. “Não quero que o sangue deles tenha sido derramado em vão. Queremos lutar pelo nosso espaço, nossos direitos e nossas tradições, de forma que os nossos antepassados lá de trás, possam olhar e ver que hoje estamos vivendo em um lugar melhor.”