A jornalista brasileira Juliana Barbassa apresenta um perfil impressionante da cidade paradoxalmente linda que é o Rio de Janeiro em seu primeiro livro, Dancing with the Devil in the City of God (Dançando com o Diabo na Cidade de Deus). O livro, publicado em 2015, começa quando Juliana retorna ao Rio em 2010, após 21 anos vivendo no exterior, trazendo uma combinação da perspectiva estrangeira e local. A autora trabalhava para a Associated Press enquanto morava nos Estados Unidos quando voltou para o Brasil e começou a trabalhar como correspondente estrangeira da AP no Rio.
O livro combina o contexto histórico com entrevistas pessoais, criando um retrato do Rio que destaca as atrações da cidade sem esconder seus defeitos. A maioria do desenvolvimento social, político e econômico mencionado no livro acontece nas preparações do Rio para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Megaeventos esportivos costumam encher os bolsos de poucos às custas de muitos, e, como a Juliana descobre, as favelas da cidade sofreram muito. Remoções, policiamento agressivo e promessas vazias são apenas alguns dos problemas que os moradores de favelas enfrentam. Os desafios coletivos compõem parte significativa do livro.
Ocupações policiais e UPPs
Um dos primeiros momentos de choque cultural da autora no Brasil ocorre durante sua narração da invasão policial na Vila Cruzeiro, uma favela nos limites do Complexo do Alemão, na Zona Norte. Ao ver os sacos de corpos saindo, a autora pergunta a um policial quantas pessoas morreram, ao que ele responde, “ninguém morreu… Só bandidos”. Juliana mostra que essa polarização constante de “nós contra eles” é reforçada com uma das muitas contradições do Rio–pela lei, não há pena de morte, mas “parecer com um bandido” é suficiente para que um policial justifique um assassinato.
Uma entrevista durante a mesma invasão da Vila Cruzeiro apresenta um homem que foi atingido na perna por uma bala perdida, abandonado na rua sem um telefone, dinheiro ou como subir o morro de volta para a casa da sua família. Ele foi atendido e enfaixado no hospital, mas a bala ainda estava na sua panturrilha. A divergência dos propósitos declarados das políticas na teoria e na prática é um tema frequente na narrativa da Juliana. As UPPs deveriam acabar com o controle do tráfico para tornar as comunidades mais seguras; porém, quem mais sofre geralmente não é a polícia e nem os traficantes.
Para explorar o efeito completo das UPPs no Rio, o livro foca na favela Santa Marta na Zona Sul, a primeira comunidade “pacificada”. A líder da associação comercial local, Andréia Roberto, explica que, sem o controle do tráfico, empresas podem se registrar com a Prefeitura, permitindo que os caminhões de frete levem produtos até a frente da loja e não apenas até a subida do morro. O barbeiro José do Carmo ficou conhecido na vizinhança como o “Eike do Santa Marta”, uma referência ao bilionário Eike Batista, pela maneira como aproveitou as oportunidades de empreendedorismo após a instalação da UPP e legalizou seu negócio. Mas Leidemar Barreto, mãe de seis, viu seu aluguel aumentar de R$90 para R$180, deixando-a completamente dependente do Bolsa Família.
As histórias mostram a disposição do Estado em oferecer uma certa versão de segurança às comunidades, enquanto ao mesmo tempo não faz esforço nenhum para fornecer o acesso a recursos básicos como água, eletricidade, transporte de qualidade, entre outros. Juliana expõe essa contradição e rejeita as medidas unidimensionais frequentemente utilizadas pelos formuladores de políticas públicas para ocultar a realidade na favela–como uma “definição de classe puramente econômica” usada para provar que as favelas com UPP receberam uma “qualidade de vida de classe média”.
Remoções
Juliana conta detalhadamente casos de resistência comunitária às remoções forçadas face ao empreendimento imobiliário, uma grande preocupação para muitas favelas com a vinda das Olimpíadas. A Favela do Metrô, a Aldeia Maracanã (não uma favela, mas uma ocupação indígena) e a Vila Autódromo são alguns dos principais exemplos neste segmento. O tom da própria narrativa do livro captura a sensação inicial de otimismo ingênuo em relação às Olimpíadas como um possível “catalisador de mudanças”, uma atitude que lentamente se transforma em decepção. Da mesma maneira, muitas favelas estavam otimistas sobre os planos ambiciosos de urbanizações da Prefeitura até que “a verba simplesmente não apareceu” e essas promessas foram todas rompidas.
Ideias promissoras, como o programa de urbanização das favelas Morar Carioca ou as propostas comunitárias de alternativas à remoção, acabaram sendo infrutíferas nas mãos da Prefeitura do Rio e seu “estado de exceção”. Por outro lado, o poder da solidariedade comunitária surgiu para combater o tratamento ilícito da Prefeitura. As histórias de Juliana de propostas e contrapropostas, ordens de remoção e justificativas vazias, demonstram um padrão cíclico. Quando o cumprimento de prazos para as Olimpíadas se intensificaram, as remoções começaram a acontecer com mais frequência e rapidez. Algumas histórias têm um final dolorosamente injusto, mas a Vila Autódromo oferece um precedente poderoso com sua retaliação e organização social. A luta de décadas da Vila Autódromo para permanecer continua até hoje e ainda é um exemplo de sucesso excepcional contra as empreiteiras.
A desigualdade continua
A Copa do Mundo e as Olimpíadas criaram uma oportunidade para que o Rio resolvesse inúmeros problemas sociais e econômicos que vêm atormentando a cidade por gerações. Quando a Copa do Mundo chegou ao fim, o Brasil não só falhou no campo de futebol, mas também na resolução destes problemas, que continuam aguardando o reconhecimento de um Brasil derrotado. O capítulo final do livro de Juliana descreve uma crise de identidade nacional após a derrota de 7×1 para a Alemanha, que fez com que os brasileiros questionassem sua reputação como o país do futebol. Quando o livro termina em 2014, e até os dias de hoje, duas semanas antes das Olimpíadas, as mesmas perguntas sobre desigualdade continuam pertinentes.
Em uma entrevista de junho deste ano, Juliana descreve a cidade como “mais desigual do que a cidade que tínhamos antes desses megaeventos”. Mas essas situações difíceis estão incitando a sociedade civil, de cidadãos comuns a organizações–incluindo os moradores de favelas em toda a cidade–a lutar por transformações mais positivas, exigindo seus direitos básicos.
Juliana Barbassa está atualmente no Rio de Janeiro observando o impacto dos Jogos Olímpicos e escrevendo para várias publicações até setembro. No Brasil, Dancing with the Devil in the City of God está disponível nas Livrarias Saraiva.