No dia 16 de julho, ativistas e moradores do Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, participaram de uma manifestação pacífica para denunciar a violência–que se intensificou nos últimos meses, em antecipação às Olimpíadas–e para dar visibilidade à intensa presença policial e à falta de políticas públicas adequadas.
A manifestação foi organizada pelo Coletivo Papo Reto e pelo jornal Voz das Comunidades, com o apoio de outros grupos da sociedade civil e moradores do Complexo do Alemão.
O evento, que atraiu atenção significativa da mídia local e internacional, começou na base da UPP na Avenida Itaóca. Segurando uma tocha marcada com mãos vermelhas impressas, representando o sangue das vítimas de violência, Raull Santiago, do Papo Reto, dirigiu-se ao grupo:
Esta é uma ação para chamar atenção para a condição de violência que a maioria das favelas estão vivendo, e que se intensificou com a aproximação dos megaeventos no Rio. Em 2007, quando os Jogos Pan Americanos aconteceram, o Complexo do Alemão recebeu uma mega operação [policial] onde diversas pessoas foram mortas–esse foi o principal legado do Pan para o Complexo do Alemão. Na Copa do Mundo–um pouco antes, durante o processo–intervenções militares na favela foram intensificadas, e assim também as crescentes violações de direitos dentro do Complexo do Alemão. Mais uma vez, nossa ‘participação’ nos megaeventos significou receber um contingente grande da militarização do espaço. E agora, com as Olimpíadas, isso se repete.
Raull apontou a dissociação entre a retórica de união associada às Olimpíadas e a realidade do Rio pré-Olímpico para os moradores da maioria das favelas da cidade, declarando:
Esse é um símbolo–a tocha. Mas ela não é uma crítica da proposta e da ideia do que são os Jogos Olímpicos e o que significa as Olimpíadas. Para nós, significa a forma como a Prefeitura do Rio de Janeiro, o Estado, e o Brasil estão fazendo esse evento aqui na nossa cidade. Porque a ideologia da união dos povos que os Jogos propõe é brilhante. Mas a realidade da nossa cidade está ao contrário—está sendo de muita violência e muita situação de dor e há vários problemas dentro das favelas.
Quatro anos após a implementação das primeiras UPPs no Complexo do Alemão, a violência armada permanece ocorrendo quase diariamente. Até o dia 17 de julho o Voz das Comunidades contou 35 ferimentos e mortes (de civis e policiais) resultantes de trocas de tiros no complexo de favelas este ano–um número que representa uma pessoa atingida a cada cinco dias. Um tiroteio que começou às 7h na manhã da manifestação impediu que alguns moradores participassem. Por consequência, o teleférico parou de funcionar devido à preocupação com a segurança.
Destacando essa discrepância entre a hiper-presença do Estado na forma de policiamento e a ausência dele em outras áreas das políticas públicas como educação, moradia e serviços sociais, Raull descreveu:
A única política pública–e a principal participação dos moradores da favela nos Jogos Olímpicos nos últimos anos–tem sido o Estado dialogar conosco a partir da mira do fuzil do policial. Esse modus operandi durante anos, tem o mesmo padrão da lógica do chamado enfrentamento da ‘guerra às drogas’, no qual morre morador, morre policial, e nada muda. Nós continuamos morrendo… As perdas são perdas dos pobres. São perdas de jovens, quem nesta sociedade, no caminho do tráfico de drogas, pegam uma arma e começa a matar e a morrer, por conta disso. São os policiais que abandonados pelo Estado, sem salário, numa situação de violência, são jogados dentro da favela para matar e morrer… E, principalmente, nós, que estamos na mira de ambos os fuzis, nós recebemos o que eles chamam de ‘balas perdidas’ todos os dias.
Thainã de Medeiros, também do Coletivo Papo Reto, leu os nomes de vítimas de tiroteios recentes no Complexo do Alemão–tanto civis como policiais. Thainã pediu por um momento de silêncio em memória àqueles cujos nomes foram colocados em um caixão de papelão.
Os manifestantes então carregaram a tocha e o caixão enquanto caminhavam pela Estrada do Itararé, ocupando a rua. O grupo fez uma breve pausa em frente à UPA do Complexo do Alemão, geralmente o primeiro destino das vítimas de tiroteios na área.
A caminhada foi concluída na entrada da Gotra na Rua Joaquim de Queiroz, onde o grupo se reuniu próximo à feira de rua. Lana de Souza, também do Coletivo Papo Reto, leu em voz alta vários nomes de indivíduos vivos, enfatizando a urgência da situação atual, como uma forma de lembrar que qualquer um que ali compareceu poderia ser a próxima vítima da violência armada: “Nós precisamos fazer alguma coisa, ou o próximo nome poderá ser o seu”. Em seguida, Raull declamou a letra de um funk de sua autoria, convidando os moradores a dizerem “Basta!” à violência diária vivida nessa “guerra pela paz”. O espaço se abriu para que moradores falassem e compartilhassem suas experiências.
Em face à violência crescente, é essencial reconhecer formas de mobilização e resistência comunitárias. Como Thainã relatou: “As favelas estão bem vivas… quanto mais tentam silenciar, quanto mais tentam conter essas camadas sociais”. Em um caminho similar, a jornalista do Voz da Comunidades, Daiene Mendes, relembrou, em seu artigo recente, publicado na série ‘A Vista das Favelas’, do The Guardian: “Somos traficantes de cultura e informação… Nossa arma é a narrativa, nossa luta é pelo direito de viver a RUA e pela possibilidade de conviver sem tiroteios diários, sem o terror da polícia e sem medo do tráfico”. O trabalho do Papo Reto e do Voz das Comunidades atesta o poder do ativismo midiático como uma forma de resistência–trazendo visibilidade para a realidade da Cidade Olímpica vivida pelos moradores do Alemão.