Esta é a segunda matéria de uma série de cinco intitulada Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional. Esperamos que essa série apoie debates sobre habitação e urbanização nas favelas, e que o novo prefeito, Marcelo Crivella, crie políticas voltadas aos desafios que as favelas enfrentam, enquanto reconhecendo e fortalecendo seus atributos positivos, através do engajamento ativo dos moradores na criação e implementação de tais políticas.
Lição 3: Relacionamentos nas comunidades se baseiam em um senso de ação coletiva
As favelas nasceram de uma tradição de mutirão, ou ação coletiva, que remonta à escravidão. Embora a estrutura das favelas tenha se transformado e mudado ao longo do século passado, compreender e reconhecer sua natureza coletiva é fundamental para elaborar políticas que as governem.
“Aqui, na verdade, as pessoas se conhecem muito na rua. Se você vai na padaria comprar um pão, alguém vai puxar assunto com você. Ou se você gosta de beber uma cerveja e vai no bar, já vai fazer mil amizades.” – Cabritos, Zona Sul
Muitos moradores das favelas referem-se a interações entre vizinhos na comunidade como familiares, dando uma noção de que há uma ligação especial que é formada entre os moradores. Considerando que as pessoas na cidade formal frequentemente vivem isoladas dos vizinhos, as pessoas nas favelas se conhecem através de interações freqüentes em espaços públicos e lojas da comunidade, por meio de redes familiares ou de amigos de longa data, e confiam no apoio mútuo.
“A coisa mais legal que a gente tem na favela é o coletivo.” – Cidade de Deus, Zona Oeste
A promulgação de políticas coletivas, como a titulação coletiva, enfatizando a participação e fortalecimento da rede de associações de moradores, proporcionaria uma ligação entre as instituições governamentais formais e informais. Essas políticas poderiam preservar a identidade local e se edificar sobre a natureza coletiva dessas comunidades, reduzindo custos e aumentando a acessibilidade, e, consequentemente, impulsionando a capacidade dos moradores de sair da pobreza.
Lição 4: Políticas não fornecem os serviços prometidos
Marcado como um programa abrangente de melhoramento das favelas, com o objetivo declarado de urbanizar todas as favelas até 2020, a entrega efetiva do Morar Carioca foi insignificante. Alguns acadêmicos dizem que “você pode contar nos dedos as favelas que têm Morar Carioca” e líderes comunitários chamam o projeto de “vergonhoso”.
“[Morar Carioca] é uma vergonha. E esse projeto ganhar esses prêmios é mais vergonhoso ainda. A realidade é que não há diálogo algum. Eles mudaram o projeto várias vezes. Quando você vai fazer qualquer tipo de mudança num projeto, você tem que perguntar novamente aos moradores. Nada disso foi feito. Nada disso foi realizado. Como tudo do Estado que chega aqui, vem de cima para baixo.” – Babilônia, Zona Sul
As soluções de políticas que serão bem sucedidas na urbanização de favelas são aquelas que envolvem não só a entrega completa da infraestrutura, mas também medidas de participação consistentes e significativas. Embora tais medidas já sejam obrigatórias nas políticas atuais, elas não são implementadas. A próxima administração da prefeitura deve realizar melhorias com forte participação das comunidades, para compensar a profunda desconfiança entre as mesmas e a prefeitura.
“Você tem que ter políticas públicas que o estado e a prefeitura executem no território para que ele se torne uma comunidade. Ter escola para todos, hospital para atender as pessoas, transporte público, saneamento básico. Isso é uma comunidade. Nós ainda nos consideramos favela porque não existe política pública aqui, nem para metade dos moradores. Eles contam os moradores de forma errada. Eles fazem uma contagem superficial que eles imaginam, e não vão de porta em porta fazer um censo para saber se aquele número de pessoas está correto. Aqui na nossa comunidade falta tudo, principalmente escolas.” – Complexo do Alemão, Zona Norte
A participação significativa na concepção de tais políticas é crucial para o seu sucesso. Moradores entendem quando os mecanismos de participação são adicionados a um projeto para “marcar como feito”. No entanto, os moradores também sabem que a prefeitura precisa estar envolvida no planejamento, regulação, suporte técnico, bem como ajuda financeira para projetos.
“Primeiro a prefeitura anunciou, como parte das Olimpíadas, um plano de urbanização para 100% das favelas do Rio de Janeiro. Você sabia que ele sumiu? O primeiro plano apresentado pela prefeitura nem sequer entrou e o Morar Carioca praticamente desapareceu. Você pode contar nos dedos as favelas que têm Morar Carioca.” – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (UFRJ / IPPUR)
Educação, serviços de saúde, acesso ao transporte, espaços de lazer e particularmente saneamento são questões tão importantes quanto habitação. Na verdade, embora os moradores tenham falado com facilidade sobre as dificuldades e obstáculos da construção de casas, quando se tratava de políticas, as respostas eram principalmente sobre a falta de serviços integrados.
“Há toda essa questão no Minha Casa Minha Vida, quando esses apartamentos são construídos, eles são construídos sem planejamento. Acho que é porque eles pensam: ‘vamos dar a casa, é só disso que eles precisam’.” – Cabritos, Zona Sul
Após monitorar coletivamente o lançamento e declínio do Morar Carioca no RioOnWatch, tornou-se claro que o programa muito bem escrito foi mal administrado para obter ganhos políticos. Na Babilônia, visto como um modelo para a implementação do Morar Carioca, líderes comunitários hoje vêem a política com desdém. Em Pica-Pau, na Zona Norte, os moradores receberam a promessa de projetos do Morar Carioca quase cinco anos atrás, em 2011, no entanto, só foi lançado, aparentemente com fins eleitoreiros, em 2016.
Este tipo de manobra política não é nova nas favelas do Rio e tem sido comum há décadas, mas medidas de responsabilização devem ser tomadas para garantir que as futuras políticas de urbanização das favelas sejam executadas corretamente. A concepção de políticas de habitação e urbanização deve ser flexível e considerar as diferenças importantes entre as favelas. Moradores e líderes comunitários sabem que as necessidades de uma comunidade serão diferentes em relação a outra.
“O Alemão é do mesmo tamanho que a Cidade de Deus? Não, é muito maior. Então as políticas não podem ser pensadas da mesma forma. Essas coisas são pensadas como se você fosse comprar uma camisa P para usar numa pessoa tamanho G. Tem que caber. E aí eles chegam na metade das favelas e não terminam o restante. Assim, um tem um pouquinho e outro não tem nada.” – Cidade de Deus, Zona Oeste
A localização da comunidade dentro da cidade é crucial para determinar o nível de serviços que ainda pode precisar. Comunidades na Zona Sul têm maior acesso a empregos e infraestrutura formal, ao passo que as comunidades na Zona Oeste são mais novas e não têm acesso a canais formais de infraestrutura.
“Nós conhecemos as nossas necessidades. Como nós conhecemos as nossas necessidades, os projetos sociais teriam que ser das próprias comunidades. Porque cada comunidade tem características diferentes. Então, eu sei o que nós precisamos para o Vidigal, bem, não só eu, a associação sabe o que o Vidigal precisa, e em outras comunidades é a mesma coisa. Os projetos têm de ser do interior para o exterior, não do exterior para o interior. Isso seria um grande avanço.” – Vidigal, Zona Sul
Tamanho também é outro fator que afeta as necessidades de uma comunidade. Comunidades menores como Asa Branca ou Cabritos podem ter uma maior concentração de relacionamentos dinâmicos, onde todo mundo se conhece. Estes poderiam ser utilizados para auxiliar o processo de planejamento e participação da comunidade. No entanto, comunidades maiores como a Rocinha, que têm inúmeras associações, e o Complexo do Alemão, que é composto por 13 comunidades, têm seus diferentes desafios de diversas categorias.
Muitas das comunidades da turística Zona Sul estão em morros íngremes com vistas maravilhosas, o que influencia na dificuldade de construir nessas comunidades. Isso também significa que as comunidades são sensíveis à especulação imobiliária. Comunidades das Zonas Oeste e Norte, no entanto, podem ser mais planas, ter menos problemas com construção e podem considerar a titulação formal de terras como uma melhoria em sua segurança de habitação ou de um maior acesso ao crédito.
“Nós fazemos coisas que nem sequer pensávamos que era possível porque sabemos que é um coletivo. Eu posso fazer um pouco, outro grupo pode fazer um pouco. E daí vem a história da favela. Acho que a grande dificuldade é a falta de fortalecimento das instituições de base comunitária.” – Cidade de Deus, Zona Oeste
Para ter sucesso, uma política deve ser capaz de se adaptar a essas diferenças. Para conseguir essa flexibilidade, os moradores, com a ajuda da prefeitura, devem mapear os ativos da favela, o que faz com que as prescrições de políticas sejam mais claras. Ao reconhecer primeiramente o que cada comunidade já tem, as políticas podem ser adaptadas para enfrentar os desafios de cada comunidade, preservando e fortalecendo ativos, assim resultando no empoderamento como parte do processo. Os cidadãos dessas comunidades devem desempenhar um papel de liderança ativa na elaboração dessas políticas.
Série Completa: Lições das Favelas Cariocas para a Política Habitacional
Parte 1: Construção e Comunidade
Parte 2: Ação Coletiva e Necessidades Diversas
Parte 3: Desconfiança, Titulação e Gentrificação
Parte 4: Habitação Pública
Parte 5: Propondo Soluções