Como parte de um circuito de eventos celebrando o mês da consciência negra, foi lançado na Livraria Blooks no dia 10 de novembro o livro Mulheres, Raça e Classe, da intelectual e feminista estadunidense Angela Davis. O lançamento do livro em português, 35 anos depois de ter sido escrito, marca um momento importante de reconhecimento no Brasil do nexo entre questões de raça e de classe, combinado ao feminismo, mas também para além dele. O lançamento serviu de pano de fundo para uma discussão sobre ser negra, ser mulher e ser moradora de favela no Brasil. A mesa do debate foi integrada pela jornalista, ativista e moradora do Complexo da Maré Ana Paula Lisboa, pela historiadora Jaciana Melquiades e pela socióloga Karina Vieira, ambas ativistas do coletivo Meninas Black Power, e mediada pela vereadora eleita e também moradora da Maré Marielle Franco.
A importância do lançamento desse livro hoje é tornar acessível mais um instrumento de luta e fortalecimento da resistência negra, especialmente em um ambiente branco como o acadêmico. “A maior contribuição que a Angela traz nesse momento é tirar a gente do local de objeto de pesquisa e colocar a gente como pesquisador. Eu tive dificuldade de legitimar a minha escrita acadêmica a partir de uma bibliografia 90% negra. Uma banca de mestres e doutores que não conseguia avaliar a minha monografia porque não conhecia Sueli Carneiro”, colocou Karina. E ela foi além no reconhecimento da importância da tradução do livro nesse momento: “Não tinha Angela Davis na minha bibliografia porque eu não falo inglês”. Ana Paula completou: “Quando recebi o livro, postei uma foto no Facebook e uma amiga minha americana comentou que tinha lido esse livro aos 12 anos. Fiquei um pouco frustrada, mas fiquei feliz, porque agora meninas de 12 anos vão poder ler Angela Davis (no Brasil)”.
A plateia, composta majoritariamente de negras e negros, ocupando o espaço–tanto físico quanto acadêmico–tradicionalmente branco de uma livraria na Praia de Botafogo, impressionou e foi motivo de celebração. “Mas ao mesmo tempo é uma critica que eu tenho a qualquer movimento de gênero que fica sempre falando para os mesmos. Porque falar para os mesmos não muda muita coisa. Por isso eu nunca hesitei em aceitar o convite para escrever no O Globo, porque eu queria falar para outras pessoas, porque quem está lendo não são os meus. O racismo tem que ser uma luta de todo mundo. Enquanto não for de todo mundo, a gente vai continuar reproduzindo o racismo”, disse Ana Paula, que recentemente começou a publicar uma coluna quinzenal às quartas-feiras no jornal O Globo. Alessandra, que estava na plateia, elogiou o evento e reforçou: “É sempre bom a gente fazer pretice. Mas fazer pretice na Zona Sul, em livraria, é melhor ainda”.
Essa intercessão entre raça, classe e feminismo foi tema recorrente de debates durante a noite. Jaciana iniciou sua fala afirmando que não era uma mulher feminista. “Eu não me identifico dentro dessa forma de pensamento. Eu sou uma mulher negra que quer estar no mundo como uma mulher negra”. Marcelle Decothé, ativista da Anistia Internacional, fez uma intervenção a partir da plateia: “A Angela faz um debate sobre a relação entre classe e raça. O capitalismo é um sistema feito para nos aprisionar na classe que estamos. O sistema é feito para que a gente seja a mão de obra barata. A gente saiu de escravo para a mão de obra barata. Aí as pessoas falam que nós morremos porque somos pobres, e não porque somos negros”.
A autora também traz em seu livro o viés histórico do movimento de libertação feminina. “Mas a mulher negra sempre foi historicamente excluída. Primeiro vem o homem branco, depois a mulher branca, depois o homem negro, e só depois a mulher negra. Nesses dois casos, da classe e do gênero, é preciso racializar o debate, porque o racismo está presente em todos os temas”, disse Marcelle. Karina concordou com ela sobre a importância de trazer a raça para todos os debates: “Eu prefiro descolonizar as histórias e racializar o debate. Para mim a raça chega primeiro que o gênero ou a classe”. Para elas, isso garante que a coletividade negra não se divida em bandeiras diferentes e assim se enfraqueça: “A palavra-chave é o autocuidado. Significa nos conhecer, nos reconhecer como povo potente, nos cercar dos nossos”, disse Karina.
“Para eu chegar aqui hoje, eu sofri racismo. Para eu alugar o apartamento que eu moro, eu sofri racismo. Para eu pegar o meu filho que estuda em uma escola pública, eu, mulher negra, com meu filho preto com camisa de escola pública, eu sofro racismo. O motorista foi rude comigo hoje pelo simples fato de eu ser uma mulher preta. Eu não estou com cara de quem mora na rua. Então não tem a ver com classe, não tem a ver com dinheiro, tem a ver com a cor da minha pele”, ecoou Jaciana. “Nós, mulheres negras, somos frequentemente acusadas de sermos agressivas nas nossas reivindicações. Mas não somos nós que somos agressivas, é o racismo que é agressivo, que nos chicoteia diariamente. Então às vezes não tem doçura na fala porque eu estou de saco cheio”, disse ainda Jaciana, sendo especialmente impactante vindo da dona de uma das vozes mais doces na mesa, de fala pausada.
Uma questão levantada algumas vezes nas perguntas da plateia foi o que fazer para combater o racismo e como superar as pontes existentes entre negros e não negros nessa luta. Não há, de fato, uma resposta certa e trata-se de uma questão que divide opiniões. Para Jaciana, não é preciso ser negro para lutar contra o racismo: “A gente consegue sim lutar pela mesma coisa, mas não necessariamente nas mesmas frentes de batalha. Pessoas brancas, nos seus universos brancos, podem tornar o mundo mais colorido. Porque são elas que contratam os funcionários. São elas que podem escolher contratar uma pessoa negra. Se você é a chefe, questiona porque só tem pessoas brancas ocupando esse ambiente. A gente não precisa estar aqui falando sobre Angela Davis para falar de racismo. Podemos falar de racismo em todos os espaços”. Karina completou: “É preciso fazer a desconstrução do privilégio. Levanta. Se alguém te der um cargo, fala que tem uma pessoa negra que faz melhor do que você. Outra coisa que pode ser feito é no campo da linguagem. Termos como mulato, pardo, e moreninho não cabem mais”.
Jaciana associou o uso do termo “pardo” com um apagamento histórico. “Quando eu digo que uma pessoa é parda, eu estou negando a ela a oportunidade de conhecer sua história de negritude, eu estou afastando ela da história negra dela. A gente conversa com pessoas brancas que conseguem dizer o nome do navio que a linhagem da família veio para o Brasil. A gente consegue entender a sua árvore genealógica. As famílias negras não têm história. Eu não consigo dizer em que navio veio a minha família. Se eu sei que eu sou uma pessoa negra, que eu vim num navio, que eu tenho uma história, um passado, sou descendente de reis e rainhas, de povos que tinham universidade”. Ela, que trabalha com crianças, relatou a surpresa frequente delas diante dessa informação: “’A África não é um país?’, elas perguntam. Toda a história negra que as crianças conhecem é a história da escravidão. De que negros faziam batuques e apanhavam”. Karine completou: “Elas precisam entender que a gente não fala de negritude a partir do racismo ou da escravidão. A gente tem uma história anterior a isso”.
Para Jaciana, a emancipação do corpo negro passa pela mudança de referencial. “Eu quero ser uma mulher negra e quero poder pensar a partir dos referenciais que fazem sentido para mim. Meu filho essa semana viu um arco-íris e disse que Oxumarê tinha mandado um presente para ele. Ninguém entendeu nada, porque o arco-íris é dos gnomos, mas o referencial dele é um orixá. É um outro viés, é o viés da emancipação, de se ver pessoa negra com um passado, com uma história, de pessoas que se parecem com ele. Que faz com que ele crie identidades positivas”, disse ela. Assim, segundo ela, ele vai reconhecer a origem do problema do racismo na pessoa que é racista, não nele próprio por não se conformar a certos ideais: “A partir desse referencial de emancipação, o meu filho vai entender que qualquer lugar do mundo é lugar para ele”.
Karine completou: “Não é só o preço que faz com que um jovem preto e favelado não frequente um espaço. É porque o espaço é racista. E como a gente disputa esse espaço? Pela educação. A gente entra na universidade e precisa voltar para os nossos lugares e não com um olhar de soberba para os nossos. É olhar para trás e falar: ‘Caramba, ainda temos um trabalhão para fazer. Vamos fazer’. Se eu não posso favelizar os espaços, não tem emancipação”.
Outra questão que surgiu, especialmente quando se fala de negritude e de mulher, foi a da estética negra. Jaciana disse que só descobriu que era negra e bonita com 28 anos. “Como a gente faz que uma pessoa adulta se reconheça como gente? A gente só vai chegar a essa resposta pela educação. E não pela educação falida que é um projeto político para que a gente continue na subalternidade. Não essa educação, mas a educação que a gente faz, de guerrilha”, fazendo alusão aos projetos sociais dos quais participa. “A gente não aceita mais. É isso que a gente diz toda vez que pega o ônibus com dinheiro do nosso bolso para ir para uma escola lá na Baixada. A gente vai e conta a nossa história para as crianças para que elas consigam se olhar no espelho e entender que elas são gente”.
“Sempre classificam a gente como a menina negra bonita. Se a gente faz isso com uma pessoa branca gera um desconforto. ‘Como assim? Eu sou uma pessoa’. Somos todos pessoas, mas existe a beleza e a beleza negra”, afirmou Jaciana. Na opinião de Karina, para além do reconhecimento da estética negra, busca-se o reconhecimento enquanto ser negro. “A gente é mais que cabelo pro alto e batom colorido. E enquanto a gente está aqui discutindo, foram 19 mortos em São Paulo, 12 no Cabula, cinco em Costa Barros“. Essa violência é refletida na história pessoal da Ana Paula, que perdeu o irmão para a violência e arbitrariedade policial: “Eu sou uma das mulheres que ficou”.
“Agora vamos ser concisos porque está tarde e temos todos que pegar ônibus e metrô”, propôs Marielle para fechar o debate, evidenciando o desafio da mobilidade urbana no Rio de Janeiro, especialmente no que diz respeito às áreas periféricas. “A gente sai melhor e mais forte do que a gente chega aqui. É importante estarmos juntas. Uma negritude que não só descoloniza espaços, mas que ocupa espaços”. Para ela, assumir um espaço de decisão é uma forma de emancipação, assim como assumir um espaço de representatividade, como faz Ana Paula no O Globo. Marielle concluiu dizendo: “Do lugar que eu falo, espero que a gente possa construir juntas, a partir de ocupação de um espaço de representação de uma mulher negra que eu ocupo. Vamos enegrecer a Câmara, racializar o debate, contratar chefes de gabinetes negras e de favela. Eu não fiz nada na minha vida sozinha, tudo foi feito no coletivo e assim vai continuar sendo”.