Celebrando a literatura das favelas e comunidades do Rio, a anual Festa Literária das Periferias, ou FLUPP, retornou para sua quinta edição esse mês. O evento deste ano aconteceu entre 8 e 13 de novembro na Cidade de Deus, reunindo autores aclamados, músicos e artistas do Brasil e do mundo para a realização de oficinas, palestras e rodas de conversa na comunidade. O festival também realizou seu terceiro campeonato internacional de poesia falada, bem como uma feira de livros gratuitos.
Os autores brasileiros Julio Ludemir e Écio Salles fundaram o festival em 2012. O nome FLUPP se refere à Festa Literária das UPPs. Embora a ideia tenha sido inicialmente concebida como um espaço para fomentar a criatividade e mostrar a literatura advindas das favelas que experimentaram o programa de pacificação, os fundadores estenderam o festival a outras favelas que não receberam as UPPs. O nome do festival também remete à FLIP, a anual e internacionalmente reconhecida Festa Literária Internacional de Paraty.
A ideia de “periferia” neste festival se estende para além do contexto geográfico para abarcar comunidades e identidades marginalizadas na sociedade. Os temas das atividades variam do racismo, homofobia e sexismo, dos legados do colonialismo ao empoderamento e autodeterminação.
Além do evento anual, o festival inclui mais dois componentes que acontecem durante o ano. O primeiro é o FLUPP Pensa, um programa de seis meses até o festival, no qual experientes escritores visitam escolas públicas e oferecem oficinas para os jovens das favelas. O segundo é o FLUPP Parque, um concurso para jovens escritores. O festival também homenageia um autor todos os anos. Este ano, o homenageado foi Caiu Fernando Abreu, um autor do Rio Grande do Sul que faleceu em decorrência da AIDS vinte anos atrás.
Cada ano o festival acontece em uma favela diferente. Edições passadas ocorreram no Morro dos Prazeres, Vigário Geral, Mangueira e Chapéu Mangueira. Este ano, a realização do festival na Cidade de Deus coincidiu com o 50º aniversário da comunidade.
Um novo e emocionante componente foi adicionado ao programa este ano: o primeiro Concurso de Quadrinhos, onde as histórias dos moradores mais antigos das comunidades–chamados de “moradores fundadores”–foram escritas em forma de história em quadrinhos. O vencedor deste concurso terá o seu trabalho publicado, e será premiado com ingressos para o Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, que acontece em 2017 na França.
Mais de 100 autores e artistas representando 20 países se apresentaram na FLUPP este ano, incluindo Akwaeke Emezi da Nigeria, o brasileiro Haroldo Costa, Guy Deslauriers da Martinica, Antônio Paciencia de Angola, Nadifa Mohamed da Somália/UK, e o brasileiro BNegão. As atividades incluíram a exibição de filmes, uma performance teatral do Grupo Nós do Morro do Vidigal, e mesas redondas que discutiram os seguintes temas: O Nomadismo na Literatura, Que Histórias Nós Contamos Sobre Nós?, Sendo Trans e Criativo, A Militância é um Movimento das Mulheres, e Literatura de Quilombo. Um painel intitulado A Estética das Ocupações contou com a presença de Maria da Penha da Vila Autódromo e Diana Bogado do Museu das Remoções.
Outras atividades incluíram a contação de história para crianças e oficinas de pinturas. Os finalistas para a competição de Poesia Falada do Rio, este ano, foram Edmee DiosaLoca, do México, Mel Duarte, de São Paulo, Chris Tse do Canadá e o italiano Sergio Garau.
Para os participantes Matheus, 19 anos, e Daniel, 17 anos, a FLUPP é uma ocasião que traz entusiasmo para desenvolver a habilidade da escrita, para produzir novos trabalhos e por conhecer novas pessoas de todas as idades e de todos os cantos da cidade. Daniel é de Freguesia, na Zona Oeste. Ele conheceu a FLUPP em 2014, a partir de uma oficina realizada em sua escola. Este ano, ele conheceu Matheus no CEFET onde os dois estudam juntos. Quando Daniel leu as poesias de Matheus pela primeira vez, ele imediatamente o encorajou para participar das oficinas da FLUPP, que acontecem mensalmente e acolhem jovens escritores da cidade.
Matheus é morador do Complexo da Maré, na Zona Norte, e seu primeiro evento da FLUPP foi uma oficina na Vila Autódromo, que aconteceu em junho. O movimento de resistência da comunidade despertou seu interesse no projeto e o inspirou a continuar. A partir da FLUPP, Matheus pôde conhecer a região metropolitana e outras comunidades que não conhecia anteriormente, como São Gonçalo, Vila Kennedy e agora, a Cidade de Deus.
A ideia do festival é reconhecer e validar a produção cultural em espaços que geralmente são ignorados pela sociedade e, especialmente, pelo mundo das artes. Como Matheus explica, “a FLUPP revela que mesmo que esses lugares não tenham acesso, eles já têm sua cultura, ela só não foi revelada. Isso é exatamente o que acontece com quem participa do processo de formação. Foi o que aconteceu comigo: eu escrevia, mas não me considerava um poeta. Mas eu comecei a ver que isso pertencia a mim também, eu percebi que nós também temos cultura aqui. O que a FLUPP propõe para a região é exatamente o que ela propõe para os jovens escritores e participantes do projeto”.
Estes dois jovens participantes são mais que apenas espectadores do festival: são também artistas, escritores e produtores de conteúdo do programa da FLUPP, e eles se sentem realmente envolvidos no projeto: “Era para eu estar aqui desde cedo, mas cheguei aqui quase às 15h, por causa do tiroteio que estava tendo lá no outro extremo, na Maré. Não foi a primeira vez e nem vai ser a última, infelizmente. Eu estava me arrumando, todo assustado, sentado no chão da sala, esperando o tiroteio passar para poder vir pra FLUPP. Agora estou sorrindo fazendo essa entrevista: não há nada que descreva isso aqui, é imensurável, só é preciso sentir”, afirma Matheus.
Daniel concorda, dizendo que: “[A FLUPP] é a renovação da esperança. É uma orientação de luta e uma renovação do espírito. Não é um feira literária, é uma festa!”.
Ambos, Matheus e Daniel, dizem se sentir felizes ao ver pessoas mais jovens ao seu redor animadas com os livros gratuitos. Até crianças que não conseguem ler estão ansiosas para começar, dizendo: “Eu quero e eu posso!”.
Para ver o programa completo e a gravação do evento, confira a página da FLUPP no Facebook e o website oficial.