Economia Solidária Parte 1: Desenvolvimento Cooperativo no Rio e Além

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Esta é a primeira matéria de nossa série de três partes sobre Economia Solidária no Brasil.

Quando se consideram as centenas de favelas do Rio de Janeiro por sua pluralidade, com uma lente de reconhecimento de seus ativos em vez de apenas destacar os problemas, um ponto em comum é claro: em face da negligência pública, os moradores das favelas são peritos em fazer as coisas por si mesmos, muitas vezes se unindo para fazê-las coletivamente. Existe até uma palavra para essa força criativa, gambiarra, uma palavra brasileira de origem tupi-guarani que significa “solução improvisada”.

Há muitos exemplos disso tanto no consumo quanto no trabalho: as favelas têm praticado o consumo coletivo desde a sua criação (e bem antes de “economia compartilhada” estar na moda); as favelas se reúnem em mutirões para melhorias de infraestrutura, tais como  a construção de sistemas de esgoto ou limpeza de terrenos baldios; e os moradores se reúnem em coletivos de trabalho, como a cooperativa de panificação e de troca de habilidades Mangarfo, destaque no curta-metragem Aqui é Meu Lugar.

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Estas práticas econômicas coletivas de base são todas exemplos da “economia solidária” que existe nas favelas e em outras comunidades por todo o Brasil e no mundo. Economia solidária tem muitas definições, mas, de forma mais ampla, é tanto um termo abrangente quanto um movimento que procura promover estruturas econômicas alternativas baseadas na propriedade coletiva e gestão horizontal em vez de propriedade privada e gestão hierarquizada. Tais estruturas incluem bancos comunitários, cooperativas de crédito, agricultura familiar, moradia cooperativa, clubes de troca, cooperativas de consumidores e cooperativas de trabalhadores ou coletivos, mais conhecidos no Brasil nas indústrias de reciclagem e artesanato. O objetivo é descentralizar a riqueza, enraizá-la nas comunidades, empoderar financeiramente e politicamente as partes interessadas que participam nessas estruturas rumo a uma outra economia, mais justa.

Grande parte da economia solidária se refere aos sete princípios do cooperativismo:

  1. Adesão livre e voluntária 
  2. Gestão democrática
  3. Participação econômica
  4. Autonomia e independência
  5. Educação, formação e informação
  6. Intercooperação
  7. Interesse pela comunidade

Empresas e Protagonistas da Economia Solidária

Os Empreendimentos Econômicos Solidários (EESs) estão no centro desse movimento. Tais iniciativas caracteristicamente combinam indivíduos excluídos do mercado de trabalho ou movidos pela ideologia das iniciativas, na busca de meios coletivos alternativos de sobrevivência.

Como disse o ex-Secretário Nacional de Economia Solidária do Brasil, Paul Singer (amplamente considerado o pai do movimento de economia solidária brasileira), em uma reunião pública em Porto Alegre, no ano passado: “Economia solidária é predominantemente propagada por mulheres, jovens, desempregados–por todas as vítimas do capitalismo”.

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A economia solidária, que combina o setor público, o setor privado e o terceiro setor (sociedade civil e filantrópica), é uma manifestação de um modelo de desenvolvimento brasileiro onde os beneficiários do desenvolvimento assumem um papel mais ativo. Um relatório da UNESCO de 2015 descreve como nas favelas do Rio há uma forte presença de organizações sociais que “atuam de baixo para cima, sem intervenções de fora, motivadas por pessoas que nasceram e continuam morando em favelas”.

De fato, uma palavra comum usada para descrever os que atuam na economia solidária brasileira é protagonistas, assumindo papéis principais em suas próprias vidas. Notavelmente, essa linguagem não é a linguagem de “autoajuda” que é comum entre muitas iniciativas de “desenvolvimento econômico comunitário” nos EUA e em lugares como a Índia, onde iniciativas–que de certa forma se assemelham à economia solidária–podem ser observadas, com uma  linguagem de enquadramento ligeiramente diferente.  

Alison Mathie e Gord Cunningham, especialistas em desenvolvimento baseado em ativos, enquadram as cooperativas de produtores como um exemplo de “capacidade de construção em grupo” que contrasta com “capacidade de construção individual”. Os projetos de desenvolvimento que focam no reforço das capacidades individuais têm como objetivo melhorar o sucesso econômico dos indivíduos (por exemplo, clientes de microfinanças), garantindo que isso conduzirá, assim, ao desenvolvimento econômico da comunidade. No entanto, a perspectiva de capacitação do grupo vê a ação coletiva como um fim em si mesmo e o desenvolvimento, portanto, como um processo endógeno. Particularmente, em tal estrutura, Alison Mathie e Gord Cunningham delimitam o papel das agências externas como um “facilitador de um processo e como um nó em uma rede crescente de conexões que a comunidade pode ter com outros atores”.

Economia solidária como política pública

O movimento de economia solidária teve um alto grau de ostensivo sucesso político no Brasil, em parte por causa da onda de desemprego na década de 90, mas também por causa de um forte movimento de trabalhadores. O Brasil criou não apenas uma Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), mas também fóruns e conselhos nos níveis metropolitano, municipal, estadual e nacional. O Fórum Brasileiro de Economia Solidária (FBES) reúne estado e sociedade civil no âmbito nacional para discutir políticas públicas de apoio à economia solidária.

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No entanto, apesar das vitórias políticas aparentes, a infraestrutura política de economia solidária enfrenta muitos desafios no âmbito nacional. Em primeiro lugar, ainda é logisticamente difícil para as EESs se formalizarem no Brasil. Atualmente, as formas mais comuns são grupos informais, associações e cooperativas. A legislação cooperativa brasileira não foi criada com cooperativas de economia solidária em mente. A forma de cooperativa está sujeita a altas taxas de tributação, enquanto a forma jurídica de associação é ampla, servindo tanto para projetos sociais não geradores de receita quanto para coletivos de trabalho. Há uma campanha nacional para uma forma jurídica de economia solidária que seja baseada na lógica interna das cooperativas e coletivos que concernem à economia solidária.

A economia informal e a economia solidária não são termos intercambiáveis, porém o estado atual da economia solidária brasileira é muito informal. De todos EESs no Brasil mapeados através do projeto SIES de Mapeamento Nacional finalizado em 2013, 31% das EESs são grupos informais, 60% são associações e 9% cooperativas. No Estado do Rio de Janeiro, provavelmente devido a um cenário relativamente mais recente de economia solidária, ela é ainda mais informal: 68% dos EESs são grupos informais, 25% associações e 6% cooperativas.

No entanto, é importante distinguir a economia solidária da economia informal por alguns motivos chaves. Em primeiro lugar, ser parte da economia informal não significa que se está praticando economia solidária baseada em princípios de benefício coletivo. Em segundo lugar, o movimento de economia solidária se esforça para ter reconhecimento formal, visando aproveitar os benefícios que empresas tradicionais recebem. O reconhecimento formal não significa, puramente, a adequação das EESs na formalidade legal maximizadoras de lucro existentes, mas na criação de novas formas que melhor se ajustem à lógica das EESs, buscando torná-las rentáveis para remunerar os trabalhadores, reinvestirem nas EEEs e, sempre que possível, na comunidade.

Economia solidária do Rio de Janeiro

Desde janeiro de 2009, a Secretaria Especial de Desenvolvimento Econômico Solidário (SEDES) tem sido a primeira secretaria municipal dedicada à economia solidária no Brasil (em outras cidades brasileiras iniciativas de economia solidária são subordinadas aos departamentos de trabalho e renda). O objetivo da secretaria, de acordo com a sua Página Oficial é “formular e executar políticas públicas destinadas a alargar o mercado e democratizar o acesso à economia da cidade. Projetos de desenvolvimento local e economia solidária, com base no associativismo e no coletivismo em redes produtivas autogestionadas são o foco da SEDES “. O site SEDES passa a explicar que “redes de pequenas empresas, cooperativas, arranjos produtivos e pólos de EESs” são “vetores de uma estratégia inteligente e eficiente para enfrentar e superar a exclusão social, o desemprego e o trabalho precário nas grandes cidades do mundo”.

Uma grande parte do trabalho da SEDES tem sido trabalhar no sentido de certificar o Rio de Janeiro como a primeira capital da América Latina a ser uma Cidade Comércio JustoO Prefeito Eduardo Paes se comprometeu com cinco objetivos: Criar um comitê coordenador da campanha; declarar apoio e utilizar produtos de comércio justo no setor público, como por exemplo, comprar merenda escolar de produtores locais; apoiar a distribuição de produtos de economia solidária nos mercados locais; incentivar as empresas a apoiar e consumir estes produtos, como por exemplo, utilizar uniformes produzidos por empreendedores do comércio justo; e divulgar a campanha nos meios de comunicação.

A SEDES também estabeleceu metas para criar dois circuitos de feiras na cidade: o Circuito Carioca de Economia Solidária (Rio Ecosol) que é uma rede de feiras de artesanato, e o Circuito Carioca de Feiras Orgânicas.

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De acordo com Ana Larronda Asti, diretora de economia solidária e comércio justo na SEDES; “o circuito de feiras de artesanato de economia solidária tem um foco intencional nas mulheres que são moradoras de favelas e de comunidades de baixa renda”. O circuito  é composto por 14 feiras em torno dos grandes pólos da cidade, de modo que os empreendedores da economia solidária tenham oportunidades de comercialização durante todos os meses do ano.

Estão incluídos no Circuito Rio Ecosol as seguintes localidades: Complexo da Maré, Méier, e Manguinhos na Zona Norte; Campo Grande, Paciência, e Santa Cruz na Zona Oeste; Freguesia em Jacarepaguá e Praça Saens Peña na Tijuca; Cinelândia, Praça Mauá e São Cristóvão no Centro da cidade; e Largo do Machado, Ipanema e Leme na Zona Sul.

Em junho de 2016, havia mais de 300 EESs participando. Para participar, um grupo deve ter a forma jurídica de associação ou cooperativa popular, ser um negócio de produção ou comercialização, e ter três ou mais pessoas trabalhando. Além disso, o grupo deve ser cadastrado no Cadastro de Empreendimentos Econômicos Solidários (CADSOL), e deve confirmar que seus membros tenham participado de pelo menos quatro reuniões do fórum municipal e também tenham recebido a formação em economia solidária da SEDES. Muitos dos EESs são organizados em redes, facilitando a comercialização coletiva.

Ameaças políticas atuais e incerteza

Infelizmente, dada a crise política na esfera federal, a SEDES está em uma posição muito vulnerável. No final de maio, dois terços da equipe, de 40 pessoas, foram dispensadas e o orçamento de R$37 milhões foi cortado. A Secretaria Especial, na época estava sem um gestor e “sem direção, tanto em matéria estratégica quanto prática”.

A SEDES agora tem um novo secretário–Franklin Dias Coelho–mas o status da agência como uma Secretaria Especial foi criado por um ato do Prefeito Eduardo Paes e não pela Câmera dos Vereadores. Isto significa que o seu status de especial pode ser dissolvido pelo prefeito tão rapidamente assim como foi criado. A nível nacional, a Secretaria Nacional de Economia Solidária também está passando por mudanças que irão alterar drasticamente o seu carácter, incluindo a substituição, em junho, do secretário Paul Singer, que era uma figura chave no estabelecimento da secretaria.

Os empreendedores da economia solidária estão agora se organizando politicamente, para transformar a SEDES em uma instituição que seja permanentemente parte do governo municipal. A turbulência deste ano os deixam vulneráveis, dado que a maioria da renda dos empreendedores da economia solidária é dependente das feiras e a SEDES é responsável por ajudar a assegurar os espaços públicos onde são realizadas. Alguns empreendedores das feiras têm lutado por duas décadas por políticas públicas de apoio, tais como a Lei de Fomento à Economia Solidária de 2012, que definiu os termos para economia solidária e estabeleceu um Conselho Municipal, em adição a SEDES, para a sociedade civil e setores públicos dialogarem. Muitos atores desse movimento temem por seus meios de subsistência e preocupam-se que suas suadas vitórias possam ser desmanteladas no contexto político atual.

Com a infraestrutura política da economia solidária em risco, também estão em risco as oportunidades que as EESs oferecem aos trabalhadores de aumentar a qualidade de vida e espaços de apoio para as mulheres, e também novas formas de acesso a direitos. Esses serão os temas dos próximos dois artigos da série.

Anna Cash realizou uma pesquisa sobre a economia solidária como uma plataforma para aumentar a inclusão social, em 2015, na área metropolitana de Porto Alegre, como parte de uma bolsa Fulbright em parceria com o Grupo de Pesquisa Ecosol da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), com a orientação do Professor Luiz Inácio Gaiger. Atualmente, ela é mestranda em Planejamento Urbano e Regional pela Universidade da Califórnia em Berkeley.


Série Completa: Economia Solidária no Brazil

Parte 1: Desenvolvimento Criativo no Rio e Além
Parte 2: Mulheres Protagonistas
Parte 3: Expandindo a Cidadania nas Favelas Brasileiras