Professora de design Adriana Kertzer nasceu de uma mãe americana e um pai brasileiro. Sem ser vista totalmente como brasileira ou americana, o senso de deslocamento de Adriana faz dela especialmente sensível a linguagem nacionalista, e consequentemente cética em relação a generalizações sobre o que é “brasileiro”. Seu livro Favelization (Favelização) explora o processo pelo qual as favelas têm se tornado sinônimo de Brasil, inclusive utilizadas para fazer o branding de artigos de luxo como “brasileiros”, para o público estrangeiro.
Favelização mostra, com sucesso, como o aumento global–e consequentemente, local–do interesse em favelas é de fato um interesse em uma imagem mistificada e imaginada sobre “a favela”. Na realidade, a imagem produzida da “favela” tem pouca semelhança com as favelas reais, e nenhuma interação relevante ocorre entre os moradores de favelas, os produtores de artigos de luxo que fazem referência as favelas, e os consumidores desses produtos.
Como as favelas são mistificadas e alterizadas
É difícil mistificar ou alterar o que é invisível. Adriana Kertzer acredita que o aumento de visibilidade global das favelas foi crucial para a criação da ideia de favela. É através do acesso visual que as favelas foram desmistificadas e depois mistificadas novamente, sendo que no processo acabaram se tornando exóticas, misteriosas e cheias de segredos.
Estrangeiros comumente citam o filme Cidade de Deus de 2002 como o meio pelo qual conheceram as favelas. Entretanto, filmes são uma representação da realidade e não a realidade propriamente dita. Adriana Kertzer discute em detalhes o processo de interpretação e transcendência dos filmes internacionalmente aclamados, Cidade de Deus e o documentário Lixo Extraordinário de 2010. Ela aponta o preconceito dos diretores e produtores dos filmes, e como os seus conhecimentos de percepção global do Brasil e do mercado mundial deve ter influenciado as lentes pelas quais eles representaram as favelas. Entretanto, através do uso de técnicas de filme de documentário (mesmo que Cidade de Deus seja uma ficção) os filmes dão a ilusão de realidade. Adriana faz um paralelo entre isso e o New Deal photography (Fotagrafia do New Deal) dos Estados Unidos de 1930. Para a maioria dos espectadores, a dramatização exagerada da vida nas favelas e a simplificação exagerada dos seus problemas, nesses filmes, são indetectáveis. O resultado é uma representação exótica e vulgarizada.
Como as favelas se tornaram uma marca brasileira
O sucesso dos filmes trouxe mais atenção para as favelas. Embora comunidades informais não sejam um fenômeno exclusivo do Brasil, Adriana Kertzer diz que “A permeabilidade da identidade significa que quando um aspecto particular da sociedade brasileira que normalmente não é considerado ‘desejável’ se torna popular fora do Brasil, essa atenção externa muitas vezes resulta em uma reformulação das atitudes dentro do país. Tal como no caso das favelas”.
Através da favelização as favelas foram aceitas como parte do que faz do Brasil o Brasil, como Copacabana e o samba. As favelas se tornaram um “produto” local que pode ser comercializado e usado globalmente. No processo, segundo o livro, cada favela perde sua individualidade para a generalidade e toda (não) representatividade da “Favela”. Isso então levou ao fenômeno do “favela chique”, tours nas favelas, e um aumento do apelo de produtos de luxo ligados de alguma forma as favelas.
Adriana usa a “Cadeira Favela” pelos designers brasileiros irmãos Campana, para mostrar como referencias as favelas são usadas para comercializar itens de luxo como “brasileiros” e por extensão “exóticos”, quando na realidade esses itens não são nem um pouco relacionados as favelas ou seus moradores ou até mesmo ao Brasil. Os irmãos Campana são muito examinados no livro Favelização por conta de sua recepção mundial como designers brasileiros especificamente inspirados pelo Brasil, e por conta de sua influência em jovens designers como Brunno Jahara e David Elia. Tanto Brunno Jahara e David Elia possuem coleções inspiradas nas favelas, e ambos viveram parte de suas vidas fora do Brasil, entendendo durante o processo a demanda internacional por itens relacionados de alguma maneira com “o outro”. Como os irmãos Campana, Brunno Jahara e David Elia fazem referência as favelas nos seus trabalhos, “misturando estrategicamente referências da pobreza do Brasil com a fantasia e o desejo a serviço do comércio”.
A desconexão da favelização
Seguindo blogs e textos em uma das coleções de Brunno Jahara, a Neorustica, Adriana Kertzer descobriu que a maior parte da cobertura simplesmente parafraseou informações do site de Brunno Jahara. Isso é problemático porque os designers brasileiros e estrangeiros, marqueteiros e cineastas “interpretam e adaptam as favelas, comumente produzindo algo híbrido, algo que levemente toca na realidade mas não a reproduz”. A aceitação do que é produzido e sua disseminação cega combinada com a falta de responsabilidade globaliza mais a linguagem e a imagem da favelização, e propaga ainda mais as apropriações indevidas de favelas.
Produtores de artigos de luxo ocasionalmente interagem com moradores de favelas, como no caso da Lacoste e da cooperativa Coopa-Roca na Rocinha, na Zona Sul do Rio. A Lacoste formou um time com os irmãos Campana para produzir uma edição limitada de camisas com o jacaré da Lacoste costurados por mulheres da cooperativa Coopa-Roca. A companhia pagou a Coopa-Roca pelo serviço, nada mais. Ainda assim, no seu material publicitário e nas subsequentes entrevistas, foi sugerido que a utilização da Coopa-Roca foi caridade, implicando que por consequência ao comprar uma camisa da Lacoste o consumidor estaria fazendo uma compra com responsabilidade social, devido ao benefício que isso traria para mulheres na Rocinha. Na realidade, isso foi uma investida de negócios feita para ser vista como caridade através do processo de favelização.
Ao examinar esses casos de apropriação da estética da favela no design de luxo, o livro Favelização provê um olhar crítico necessário para o modo que as favelas são alterizadas e exoticadas para o consumo. Adriana Kertzer de forma assertiva argumenta que pela exploração da imagem internacional de marca das favelas, os designers estão incentivando um processo de “interpretação, transcendência e dominação” da real experiência de vida e cultura dessas comunidades.