Quarenta e três estudantes, moradores de favelas, pesquisadores e outros interessados participaram do curso “Histórias Vivas – O histórico de resistência das favelas“, organizado por Gizele Martins e Anderson Caboi como parte da exposição cultural e interdisciplinar “Que legado“. Professores, líderes comunitários e estudantes da edição do ano passado ajudaram na promoção do curso, que aconteceu durante três sábados no Castelinho, no bairro do Flamengo, na Zona Sul.
Abrangendo uma variedade de tópicos, como o surgimento das favelas, o seu desenvolvimento ao longo do tempo, saneamento, educação, habitação, segurança pública, mídia comunitária e cultura da favela, o curso forneceu uma plataforma para moradores de favela e acadêmicos contarem a história da resistência das favelas a partir de múltiplas perspectivas.
O primeiro sábado, 25 de março, iniciou com a apresentação do professor da PUC e advogado Rafael Soares Gonçalves. Ao discutir a história da emergência e desenvolvimento das favelas, ele buscou descrever e destacar a conexão entre situações passadas e atuais. Rafael desconstruiu ideias comuns persistentes, como por exemplo, mostrando que as favelas nunca foram realmente marcadas por uma completa ausência do estado. Pelo contrário, o estado tem tentado, ao longo da história, regular as favelas.
No entanto, Rafael destacou a resistência constante e as demandas de moradores de favelas, o que acabou gerando uma mudança na abordagem, do foco em remoções (até os anos 80) para o foco na urbanização, com o surgimento de programas como o Proface (instalação de infraestrutura sanitária), projetos para aumentar a cobertura de energia elétrica nas favelas, o maior programa de urbanização conhecido como Favela-Bairro na década de 1990, o PAC e Morar Carioca.
No entanto, as remoções nunca desapareceram no Rio: Sandra Maria, da Vila Autódromo na Zona Oeste da cidade, mostrou como as remoções ainda são uma realidade cruel para muitas favelas. Desde 1992, a tranquila favela com aproximadamente 700 famílias em 2013, lutou contra inúmeras tentativas de remoção, sob vários pretextos, principalmente os Jogos Olímpicos, que foi na verdade uma remoção para atender interesses imobiliários por uma paisagem livre de favelas na região. Sandra argumentou que “os megaeventos são as armas mais poderosas que o capitalismo tem hoje” para remoções, acrescentando que o argumento de que as favelas são perigos ambientais é falso, porque “eles ocupam estas áreas, desmatam e destroem” depois que os moradores são removidos, impondo danos muito maiores ao meio ambiente. A sua apresentação destacou particularmente a violência utilizada pela polícia para combater a resistência pacífica dos moradores, o uso de pressão psicológica e a forte organização interna da Vila Autódromo.
Esta primeira sessão do curso foi encerrada por uma atividade de chuva de ideias, liderada pelo morador da Providência, ativista e guia turístico de favelas Cosme Felippsen, sobre o que “favela” significa para cada um dos participantes. A atividade destacou a complexidade e a multiplicidade que as favelas representam hoje, com: “resiliência”, “favela como solução“, “cultura“, “resistência“, “luta”, “união” e “casa” entre as características mais mencionadas.
A aula seguinte aconteceu depois de uma semana de crescente violência e assassinatos em favelas do Rio. Gizele Martins, que falou do “grande massacre” em sua comunidade, a Maré, compartilhou algumas observações sobre a atual situação alarmante nas favelas, onde “mais de 20 mortes ocorreram em apenas uma semana e 200 pessoas foram assassinadas dentro de três meses no Rio de Janeiro”.
Mario Brum, professor da UERJ, traçou o desenvolvimento de políticas de remoções, destacando a contínua estigmatização das favelas e referindo-se à atual onda de violência contra os moradores. Similar ao caso da Vila Autódromo explicado anteriormente por Sandra, Mario salientou que desastres ambientais e megaeventos são freqüentemente usados como justificativas para remoções.
Em seguida, Lu Brasil, do Coletivo Voz Urbana, focou sua aula na densamente povoada Baixada Fluminense. Com base no censo de 2010 do IBGE, destacou que 70% dos moradores de favelas na Baixada vivem em apenas três de seus municípios, cujas favelas acolhem mais de 200.000 pessoas. Lu reside numa das mais populosas favelas da região, a Vila Operária (cerca de 9000 habitantes), considerada um modelo de urbanização comunitária devido ao seu bom acesso a água, eletricidade, coleta de lixo, estradas pavimentadas, um elevado número de escolas, cursos gratuitos de treinamento e certificação, entre outros. Em 2006, esta favela recebeu mais atenção do público devido à emergência e promoção do “Meeting of Favela” (MoF), um grupo de graffiti baseado na Vila Operária que “visa aumentar a visibilidade social e cultural e transformar a favela em uma galeria de arte a céu aberto”.
A palestrante seguinte, Glaucia Marinho, da Justiça Global, mudou o foco da Vila Operária para o Centro do Rio e o programa de revitalização Porto Maravilha. Muitos dos inúmeros edifícios abandonados na região portuária da cidade eram “estruturas prontas para a habitação” e tinham sido oficialmente ocupados por famílias a partir de 2004. A ocupação oficial de edifícios nesta área “trouxe a memória negra” da cidade, de acordo com Glaucia. Pouco tempo depois, foi projetado e implementado o projeto Porto Maravilha, destinado a revitalizar a área, incluindo a eliminação dessas ocupações e a remoção das famílias que ali residiam. Como criticado por Glaucia, em muitos casos “não teve nenhuma comunicação de um representante oficial [com os moradores que] souberam a respeito [das remoções planejadas] através do jornal“.
Durante a última aula, os participantes do curso exploraram o tema da segurança pública em favelas através de apresentações do professor Mauro Amoroso da UERJ, Fransérgio Goulart (Centro de Direitos Humanos da Diocese de Nova Iguaçu) e Carlos Gonçalves, morador da Maré. Ao relatar histórias da Polícia Militar em favelas, Mauro trouxe à classe uma discussão sobre o significado do espaço urbano, o impacto das ações da Polícia Militar sobre a cidade e os processos de segregação urbana, onde as pessoas das favelas são constantemente vistas como “outros“. Fransérgio acrescentou, dizendo que a Polícia Militar segue frequentemente um processo sistemático de “intervenção, estabilização e, por fim, normalização”.
Para encerrar o curso com uma experiência de aprendizado mais prática, no dia 15 de abril os participantes do curso interessados e o público em geral tiveram a oportunidade de participar de um passeio pela primeira favela do Brasil, o Morro da Providência, guiado por Cosme Felippsen. Cosme explicou os quase 120 anos de resistência desta favela, que tem sido afetada pelo projeto Porto Maravilha. Esta parte final do curso “Histórias Vivas” contou também com a participação de Gizele e Humberto Salustriano, um historiador e ativista Maré.