Esta é a segunda matéria de uma série de quatro sobre a construção social das favelas e o potencial do turismo de favela para desconstruir estereótipos negativos. Acompanhe toda segunda-feira até 12 de junho.
A primeira matéria dessa série demonstrou como os estereótipos e a descontextualização de questões sociais em filmes podem perpetuar a exclusão social na realidade. Esta segunda matéria destaca como filmes também podem contribuir para a legitimação da violência repressiva por agentes do Estado.
No artigo “Rumo à Militarização da Marginalização Urbana”, o sociólogo Loïc Wacquant argumenta que a busca constante por um inimigo interno (traficantes de drogas nas favelas) oferece uma explicação para a militarização da marginalidade urbana e sua lógica de guerra urbana. A separação constante entre ‘nós’ (moradores do asfalto) e ‘eles’ (moradores de favela)–seja na linguagem da vida cotidiana, da mídia ou do cinema–alimenta a cultura do medo, na qual moradores de favela como um todo, e não apensas os traficantes de drogas, são vistos como os inimigos internos.
Lógica da guerra urbana em meio à corrupção estrutural
Filmes como Cidade de Deus (2002), Cidade dos Homens (2007), Tropa de Elite (2007) e Tropa de Elite: O Inimigo Agora É Outro (2010) ilustram ‘a favela’ como um local extremamente desorganizado em que o espaço urbano é dominado por protagonistas homens e pela violência que governa suas vidas. Esse caos é enfatizado pelo estilo acelerado de filmagem, os cortes rápidos entre tiros e samba, trilhas sonoras com rap e rock, e o ritmo de edição como ilustrado pelo trailer de Tropa de Elite abaixo.
Apesar da descrição de favelas como locais desorganizados, estes filmes mostram uma certa organização entre as facções, variando desde processos e hierarquias do mercado de drogas (em Cidade de Deus), à organização de uma guerra territorial (em Cidade dos Homens), até a violência orquestrada por membros de facções (em Tropa de Elite). Essas representações visuais servem para legitimar a noção de que as forças da lei e do governo devem lutar contra esses grupos ‘organizados’ através da extrema repressão. O retrato do conflito e da violência nas favelas na série de filmes Tropa de Elite associa a favela a zonas de guerra, alimentando a cultura do medo através do discurso sobre ‘o inimigo’.
A lógica da guerra urbana do Rio é reforçada nos filmes Tropa de Elite pelo uso de palavras como ‘guerra’, ‘terror’ e ‘o inimigo’ pelo narrador e agente do BOPE, Capitão Nascimento. Ela também é reforçada pela escolha dos diretores ao posicionarem a câmera em helicópteros quando o BOPE faz incursões à favela. Essa estratégia associa a história com filmagens de guerras no Vietnã ou no Iraque, e ao mesmo tempo mantém uma distância entre os espectadores do filme e a ação no chão, ignorando o impacto negativo sobre os transeuntes inocentes que vivem nessas áreas.
Cidade dos Homens e Cidade de Deus tocam sutilmente na questão sobre a polícia e a corrupção policial. Em Cidade dos Homens, uma gangue caminha até a praia e o líder do grupo, Madrugadão, diz: “diga à polícia que estamos chegando”. Em Cidade de Deus, a narração explica como o mercado de drogas funciona e comenta que “a polícia recebe sua parte e não causa nenhum problema”. Contudo, ambos os filmes apresentam uma perspectiva da ‘maçã podre’, em que agentes específicos são culpados ao invés de mostrar a corrupção sistêmica e estrutural no governo e no policiamento.
A série Tropa de Elite examina o sistema corrupto mais profundamente. A respeito da Polícia Militar, cenas mostram oficiais vendendo armamento aos traficantes e grupos de agentes da lei formando milícias. Em relação à Polícia Civil, o filme mostra como policiais deslocam corpos para outros distritos, a fim de manter as estatísticas de homicídio mais baixas, para evitar ter de fazer investigações. O Coronel Íbis Silva Pereira, chefe de departamento do Comando Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro, esclarece:
“Infelizmente é verdade o que acontece nos filmes. A ficção se aproxima muito da realidade… Se você pensar em termos de guerra, e de como as políticas do governo e as ações policiais abordam as favelas, [corrupção] é compreensível e esperada e não deveria ser uma surpresa para ninguém.”
A narração de Tropa de Elite 2 descreve explicitamente o papel das milícias nas favelas:
“Qualquer comunidade pobre do Rio de Janeiro é muito mais que só um ponto de venda de drogas. Favelado gosta de assistir TV a cabo, favelado bebe água, favelado acessa a internet, favelado usa gás pra cozinhar, favelado toma empréstimo. Toda favela é um mercado poderoso de muita coisa comprada e vendida. [O líder miliciano] Rocha descobriu que era melhor arrecadar da favela inteira do que de um bando de traficantes f*didos–o pretexto? Defender a comunidade do tráfico.”
O narrador então explica como os políticos também estão envolvidos: “No Brasil, eleição é negócio e o voto é a mercadoria mais valiosa da favela. Não demorou muito pro [secretário de Segurança Pública] Guaracy, pro [deputado] Fortunato e pro [governador] Gelino perceberem que a milícia aumentava a base eleitoral do governo.”
Apesar dessa análise valiosa, o filme também enfatiza as facções locais e a favela como problemas e fontes de corrupção, o que legitima a batalha do BOPE contra os criminosos locais em vez de questionar a violência policial.
A glamourização do BOPE
Enquanto Cidade de Deus apresenta uma certa glamourização da pobreza, Tropa de Elite glamouriza o BOPE, como um batalhão de elite que luta de forma violenta contra o ‘inimigo’ da sociedade. O BOPE é retratado como uma divisão incorruptível da Polícia Militar, que luta tanto contra os traficantes quanto contra oficiais corruptos. As distinções entre essa divisão de elite e a Polícia Militar ‘regular’ são feitas através do uso de símbolos: os uniformes pretos, o visual opulento do emblema do BOPE, com uma caveira e duas pistolas cruzadas, a música tema do BOPE como trilha sonora e os oficiais que cantam o hino e gritam “Caveira!“. Essa imagem de um pelotão incorruptível, em um país onde a corrupção entre a Polícia Militar seria um segredo público, contribui para a legitimação de forças brutais apesar da proibição da tortura por lei.
Coronel Íbis aponta que, para entender essa glamourização: “Não se pode ignorar a obsessão do Brasil com a repressão, onde políticas de segurança estão centradas ao redor de guerra e confrontos. Essas políticas têm sido reduzidas a simples ação policial, em que a violência sempre foi uma regra válida, um diálogo na sociedade. E, assim, essas ações policiais são apenas baseadas em confrontos violentos com a polícia estimulados por um culto ao guerreiro”.
O filme ainda constrói simpatia pelo BOPE através da abordagem da vida de Capitão Nascimento, mostrando que ele luta para manter sua família unida, e seu pequeno apartamento com móveis velhos. Essa imagem dá ao espectador a ideia de que Nascimento realiza esses sacrifícios para lutar por uma causa maior: salvar a sociedade. E de acordo com a análise do filme pelo criminologista Thiago Araujo, essas imagens reforçam o argumento de que “não são os ricos que matam as pessoas da favela”.
Muitos brasileiros que vivem fora das favelas apoiam o BOPE. Contudo, apenas os que moram dentro das favelas são obrigados a lidar com as práticas do BOPE. E apesar da divisão ter sido estabelecida durante o regime militar como um ‘protetor do Estado’, apenas para ser empregada em casos específicos como crises com reféns e situações extremas em favelas, hoje em dia ela é usada para combater muitas ocorrências dentro das favelas, influenciando a vida cotidiana dos moradores. Juan*, morador do Chapéu-Mangueira, relembra: “Eu ensinei à minha filha desde nova: se você ver os homens de uniforme preto, vá para casa! Eles apenas entram para matar, eles são más notícias. Eu perdi 12 amigos em matanças do BOPE, a maioria deles eram inocentes”.
Cultura do guerreiro
Estudos sobre a ‘cultura do medo’ apontam que ‘os violentos’ atraem a fascinação popular de muitos. A popularidade desses filmes no Brasil pode ser atribuída à ideologia de repressão do país e a uma cultura da violência conectada à cultura do medo.
As palavras do narrador em Tropa de Elite–“violência deve ser combatida com violência”–podem ser consideradas uma reflexão de como a maioria da sociedade brasileira pensa, de acordo com a socióloga Vera Batista.
Coronel Íbis explica que um certo culto ao herói guerreiro começou a tomar forma depois dos anos 1990, quando a violência urbana se tornou mais proeminente. Apesar do protetor católico oficial do Rio ser São Sebastião, extraoficialmente, as pessoas celebram São Jorge, o guerreiro, como protetor da cidade. Em um país com um nível tão alto de desconfiança acerca da polícia, Coronel Íbis esclarece sobre quem entra para a força policial e por quê:
“Apesar de muitas pessoas [da favela] não expressarem seu desejo, por medo de retaliação pelos traficantes de drogas, a maioria dos policiais são afro-brasileiros dos subúrbios e das favelas que veem nisso uma passagem para uma classe superior. Além disso, é a mesma doutrinação de durante a ditadura: salvar a sociedade das mãos de um inimigo, à época o inimigo externo [comunismo] e agora o inimigo interno [tráfico de drogas].”
Coronel Íbis continua:
“Trata-se de ser visível, seja como um herói dos traficantes ou como um herói do departamento de polícia. Infelizmente, a resposta é que essas mortes não importam, o perfil é o mesmo para criminosos e policiais: jovens negros. E eles simplesmente não importam. É a continuação de uma sociedade escravocrata, porque isso não estaria acontecendo se todos os playboys da Zona Sul fossem policiais e sofressem assassinato.”
Esse senso de invisibilidade alimenta a guerra contra as drogas, uma vez que as pessoas não apenas entram na força policial para proteger a cidade ou ganhar dinheiro, mas também para ser alguém. Depois de o filme Tropa de Elite ter sido lançado, Coronel Íbis notou um aumento do interesse em se tornar agente do BOPE entre seus alunos. Ele chama esse fenômeno de “Bopelarização”, como resultado do filme funcionar como um anúncio de recrutamento e propaganda para o discurso do inimigo do Brasil. Ele diz que, de seus 320 alunos, um terço queria se juntar ao BOPE apenas baseados naquilo que viram no filme. Coronel Íbis reconhece com tristeza que “Tropa de Elite foi capaz de capturar o público jovem como resultado desse culto ao guerreiro”.
A teórica de cinema Nicole Rafter explica, em seu livro Criminologia Vai ao Cinema, que, por um lado, esses filmes criticam alguns aspectos da sociedade e, por outro lado, oferecem conforto ao mostrar o triunfo sobre a corrupção e a brutalidade. A aceitação dos moradores do Rio de uma cultura da violência e da glamourização do BOPE foi particularmente visível quando as pessoas aplaudiram, nos cinemas, durante as cenas de tortura do filme, de acordo com Coronel Íbis, que visitou diversos cinemas em diferentes áreas da cidade.
De acordo com o criminologista Thiago Araujo, no carnaval de 2008, após o lançamento de Tropa de Elite, o uniforme do BOPE foi a fantasia mais vendida daquele ano. “Muitas pessoas de classe média e alta estavam vestidas com roupas do BOPE, cantando a música tema sem parar e gritando ‘Caveira!’“
Reações de moradores de favela
Apesar das opiniões sobre esses filmes variarem de pessoa para pessoa, muitos moradores de favela entrevistados para este estudo expressaram ideias similares. Eles acham uma pena que os filmes destaquem apenas o lado ‘mais obscuro’ e negativo das favelas, já que a cultura da criminalidade claramente não é a principal expressão cultural das favelas. Apesar deles acreditarem que parte das representações da criminalidade na favela são reconstruídas de maneira razoável, mostram-se desapontados que essa tenha se tornado a imagem global das favelas. Mary, dona de um restaurante no Cantagalo, reflete: “eles apresentam nossas vidas, apesar de nós não darmos nossa aprovação, mas você não pode lutar contra a indústria, pode?”
Diogo, proprietário de um restaurante na Babilônia, declara que os filmes são um ponto de partida para a imagem das favelas, mas que fica a cargo das pessoas irem até a favela e desenvolverem suas próprias opiniões.
Um membro do projeto de teatro Nós do Morro, no Vidigal, Creo Kellab, interpretou um pequeno papel como líder de gangue na série de TV Cidade dos Homens. Para ele, filmes sobre favelas costumavam ser importantes porque transmitiam o dia a dia dentro das comunidades para as pessoas de fora. Era bom ter as favelas no mapa global a fim de se debater sobre suas questões. No entanto, depois de um tempo, ele acredita que tenha se tornado um vício para o Brasil enfatizar questões relativas às facções nas favelas e focar em seu lado negativo.
Luca, nascido e criado no Chapéu-Mangueira e estudante de pedagogia, compartilha dessa opinião, dizendo: “os filmes retratam um enquadramento específico por parte de um diretor sobre a cultura criminal que ocorre na favela, mas a favela não é exclusivamente essa imagem!”
Finalmente, Thiago, morador do Cantagalo, explica porque muitos moradores de favela permanecem calmos apesar do desapontamento com o foco dos filmes: “nós sempre somos representados de um ponto de vista negativo, um ou dois filmes não vão nos matar… Eu sei como nós realmente somos e nós simplesmente ajudamos uns aos outros na comunidade o máximo que podemos!”
Os moradores da favela entrevistados se mostraram, em geral, mais positivos em relação aos filmes Tropa de Elite do que a respeito de Cidade de Deus ou Cidade dos Homens. Maria, moradora da Rocinha, destaca que “pelo menos em Tropa de Elite a violência policial e um governo corrupto vindo às favelas e realizando falsas promessas é o foco, em vez de apenas questões relativas aos traficantes”.
Conclusão
A popularização e glorificação do BOPE entre as classes média e alta brasileiras ilustra que filmes podem ser vistos como projetos culturais que promovem um entendimento de questões sociais através da ideologia da sociedade dominante. Devido à cultura do medo e da violência no Brasil, esses filmes servem para legitimar a violência extrema e a repressão pelos agentes da lei. Os filmes se alimentam do discurso do inimigo já existente no Brasil, enquanto desumanizam as favelas através de uma imagética do tráfico de drogas e de zona de guerra, que implicitamente apoia o argumento de que a violência é um mal necessário para se combater o inimigo, simplisticamente visto como ‘a favela’.
Esta é a segunda matéria de uma série de quatro sobre a construção social das favelas e o potencial do turismo de favela para desconstruir estereótipos negativos.
Phie van Rompu, M.A., graduou-se em Criminologia Global na Universidade de Utrecht, na Holanda. Ela pesquisa o crime organizado de estado, a (des)criminalização, a resistência e questões relacionadas às drogas. Esta série do RioOnWatch é baseada em sua pesquisa de mestrado.
*Alguns nomes foram trocados.
Série completa: Construções Sociais da Favela
Parte 1: Estereótipos em Filmes Populares
Parte 2: Glorificação da Guerra e da Violência
Parte 3: Turismo na Favela como Resistência
Parte 4: Percepções de Turistas Antes e Depois de Tours Comunitários em Favelas