Esta é a última matéria de uma série de três sobre conexões entre as favelas cariocas e os caniços maputenses que enfocam história, regularização e cultura.
Na primeira matéria da série, traçou-se uma paralelo entre as favelas cariocas e os caniços maputenses em termos do seu surgimento e de seu papel em uma cidade partida, seguido na segunda matéria pelos desafios comuns enfrentados por essas comunidades. Mas apesar dos desafios, assim como as favelas, os caniços são um espaço de intensa atividade cultural e imenso potencial criativo. Assim como o funk é o carro chefe cultural das favelas, a marrabenta é um ritmo tipicamente urbano comumente associado com essas comunidades. Mas elas vão muito além disso: também são o espaço da kizomba–dança em pares de Angola e em Cabo Verde, mas amplamente consumida no país, na qual se move também para frente e para trás além de um lado para o outro–e danças que se desenvolveram como formas de resistência colonial e que foram trazidas de diversas partes do país, assim como as favelas são também o espaço do samba, do rap, do jongo–também danças e práticas de resistência e que conjugam saberes vindos de diversas partes no fluxo para a cidade grande.
A Mafalala, a mais célebre das comunidades de Maputo, é um dos berços da marrabenta, e é também fortemente associada com o carnaval: no último final de semana de fevereiro, enquanto era carnaval no Rio de Janeiro, acontecia o desfile do bloco Chapa 100 na Mafalala, acompanhado por grupos de dança locais e diversas formas de manifestação cultural. A relação com o carnaval não é o único ponto de contato: assim como as nossas favelas, a Mafalala também é berço de jogadores de futebol, de escritores, de músicos. Para cada Eusébio, jogador da seleção portuguesa nascido na Mafalala e considerado um dos melhores de todos os tempos, temos um Adriano Imperador, nascido na Vila Cruzeiro; para cada José Craveirinha e Noémia de Sousa, maiores poetas moçambicanos e também vindos da Mafalala, temos Carolina de Jesus, grande escritora brasileira que cresceu em uma favela de São Paulo. A Mafalala funciona ainda como espaço de resistência e contestação política: foi o palco das principais articulações na luta anti-colonial, abrigando dois líderes revolucionários proeminentes que vieram a se tornar presidentes após a independência: Samora Machel (que inclusive dá nome a uma das comunidades do Complexo de Manguinhos e a uma escola na Maré, que pegou fogo no último dia 19) e Joaquim Chissano.
As semelhanças não param por aí: a ONG IVERCA, nascida na Mafalala, encontrou uma forma de resgatar a história da região, recuperar a autoestima dos moradores e gerar renda localmente na forma de visitas guiadas à comunidade, de forma parecida com que fazem Cosme Felippsen e Gizele Martins, moradores da Providência e da Maré, respectivamente, e idealizadores do Rolé dos Favelados. Ambas as iniciativas têm em comum o objetivo de mudar a percepção negativa que envolve o local, reafirmar a sua importância histórica e valorizar as experiências pessoais dos moradores em detrimento de tours do tipo safari. Esses tipos de tours visam reafirmar as favelas e os caniços como soluções e como resistência.
Além dos tours, a IVERCA promove atividades esportivas com a comunidade, festivais culturais e administra uma biblioteca comunitária (à semelhança de bibliotecas comunitárias como a do Salgueiro e do Alemão). Também está desenvolvendo atualmente atividades de pesquisa e documentação do patrimônio cultural local para a construção do Museu Comunitário da Mafalala. A preservação da história e memória do local e dos moradores está presente de maneira semelhante na idealização de museus como o Sankofa na Rocinha, o Museu das Remoções na Vila Autódromo, o Museu de Favela no Cantagalo e Pavão-Pavãozinho, e o Museu da Maré.
Em entrevista para O Globo, Ivan Laranjeiras, fundador da ONG, resumiu a origem provável de tantas semelhanças: “A história cultural e política comum aos países de colonização portuguesa se cristalizou na memória e na identidade de certos lugares. Podemos falar da Mafalala como quem fala de bairros de Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde e até do Brasil”. Analogamente, podemos falar de Maputo como quem fala do Rio de Janeiro, seja em termos de patrimônios e potencialidades culturais, seja em termos de desafios (e soluções) de urbanização e regulamentação territorial.
Esta é a última matéria de uma série de três sobre conexões entre as favelas cariocas e os caniços maputenses que enfocam história, regularização e cultura.