A prefeitura entregou nesta terça-feira dia 4 de julho, com alguns dias de atraso, a proposta de Plano Estratégico para a gestão municipal 2017-2020. São quatro grandes dimensões temáticas–Economia, Social, Urbano-Ambiental e Governança–cobertas por 65 iniciativas estratégicas e 101 metas. O plano é muito mais robusto que o programa de governo do candidato Marcelo Crivella, que possuía apenas 50 metas e não mencionava a palavra “favela”, onde vive pelo menos 23% da população da cidade. No Plano, são 13 as menções, ainda que seja possível argumentar que as definições utilizadas reforcem de certa forma o estigma de favela como um problema a ser resolvido, uma abordagem que por natureza limita o potencial de deslanchar soluções baseadas no potencial destes territórios. É o caso das nomenclaturas “assentamentos informais precários” e “comunidades carentes”, e da definição de favela assumida no Plano Estratégico:
“Área predominantemente habitacional, caracterizada por ocupação clandestina e de baixa renda, precariedade da infraestrutura urbana e de serviços públicos, vias estreitas e alinhamento irregular, ausência de parcelamento formal e vínculos de propriedade e construções não licenciadas, em desacordo com os padrões legais vigentes.” (Lei complementar nº 111 de 1/2/2011)
Ainda assim, o Plano reconhece que a cidade possui “diferenças agudas de renda e qualidade de vida dentro de seus bairros, divididos entre a cidade formal e as comunidades de baixa renda”, cuja proximidade leva a um movimento duplo de convivência e segregação. Coloca, ainda, que o crescimento de favelas pode ser atribuído a “uma ausência histórica de políticas e financiamento de moradias de baixa renda” e que faltou, ao longo do tempo, vontade política para resolver questões como “a regularização fundiária e a integração social e produtiva da favela à cidade”.
O momento agora é de cidadãos, especialistas e organizações da sociedade civil discutirem as metas apresentadas no Plano e contribuírem para a sua revisão ao longo dos próximos três meses, em plataforma online ou em oficinas temáticas a serem divulgadas pela prefeitura. A seguir, buscamos trazer insumos para esses debates, ressaltando alguns pontos do Plano que trazem impactos diretos sobre as favelas, e outros nos quais o impacto sobre as favelas não foi diretamente considerado.
As favelas no Plano Estratégico
As menções aos territórios de favelas estão concentradas na dimensão urbana ambiental, especialmente no que diz respeito às três seguintes iniciativas estratégicas:
Mais Moradias
O “Mais Moradias” visará reduzir o déficit habitacional, especialmente de famílias com renda de até R$1,8 mil em áreas tidas como de risco ou extrema precariedade. Para isso, o município compromete-se a alienar terrenos municipais e produzir casas, implementar programas de incentivo à produção de Habitações de Interesse Social e fomentar a contratação de unidades do Minha Casa Minha Vida, dentre outros. Mais especificamente, compromete-se a implementar o Plano de Habitação de Interesse Social da Região do Porto (incluindo a criação de unidades habitacionais, o aluguel social e regularização fundiária) e de “produzir Unidades Habitacionais de Interesse Público na favela do Jacarezinho”. O critério de seleção do Jacarezinho não foi divulgado, tampouco o que seriam habitações de interesse público em vez de social.
Territórios Integrados
O “Territórios Integrados” compreenderá ações que contribuam para “integração urbanística, social, econômica e cultural dos moradores dos assentamentos precários informais à cidade”, incluindo a “urbanização e implantação de infraestrutura em assentamentos precários”, o desenvolvimento de “estudos visando à requalificação das comunidades de Rio das Pedras e da Maré”, a “regularização urbanística e fundiária através da aprovação de Projetos de Alinhamentos e Loteamentos e de reconhecimento de logradouros em Áreas de Especial Interesse Social (AEIS)”, a disponibilização de “informações digitais, por meio do SIURB, referentes a projetos de infraestrutura para inicialmente 50 favelas”, a “recuperação de domicílios precários e requalificação de conjuntos habitacionais”, entre outros.
Centralidades Cariocas
“Centralidades Cariocas” promoverá a contratação de novas unidades habitacionais na área central e a ocupação ou revitalização de imóveis vazios e subutilizados para fortalecer o potencial habitacional do Centro e aliviar o déficit habitacional do resto da cidade.
Essas três iniciativas estratégicas–Mais Moradias, Territórios Integrados, e Centralidades Cariocas–estão alinhadas às seguintes metas que dizem respeito a favelas:
- M73: Beneficiar 21 favelas em Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), realizando obras de urbanização até 2020. Sua inclusão representa um avanço, mas levanta questões que não são abarcadas no Plano de como essa urbanização será feita. Ela terá participação da população no seu planejamento e execução? Será feita por meio de programas previamente estudadas e existentes, como o Morar Carioca, ou por novos programas? Envolverá parcerias público-privadas? Quais serão os critérios de escolha dessas favelas? Como foi definido esse número e qual a dimensão das favelas que serão escolhidas, em termos de famílias que serão impactadas?
- M74: Concluir os estudos para Requalificação Urbana de Rio das Pedras até 2018. Crivella anunciou ainda em campanha que iria utilizar-se de concessões e parcerias público-privadas para resolver o déficit habitacional de Rio das Pedras, apostando na verticalização. Essa estratégia já foi adotada por especuladores milicianos que construíram prédios sem licença da prefeitura. Os problemas de infraestrutura vão além da questão habitacional, incluindo problemas de saneamento, que também precisam ser abarcados pelo estudo.
- M75: Beneficiar 100.000 domicílios com procedimentos de regularização urbanística e fundiária até 2020. De forma simplificada, o debate sobre as vantagens e desvantagens da regularização fundiária nas favelas incluem, de um lado, o acesso à crédito e a possibilidade de venda no mercado formal e, do outro, o início de uma tributação proibitiva para a permanência na favela e a inserção da terra no mercado, abrindo espaço para a gentrificação. No caso específico do Rio, onde favelas tituladas como a Vila Autódromo historicamente correm o mesmo risco de remoção quanto não-tituladas, o título não é sinônimo de garantia de permanência.
- M76: Garantir que 14.204 moradias não estarão em área de alto risco geológico-geotécnico no Maciço da Tijuca até 2020. O Plano afirma que são 20.664 as famílias em áreas de risco no entorno do Maciço da Tijuca e nos Complexos do Alemão e da Penha, mas a meta se restringe ao Maciço da Tijuca. Essa meta será medida pelos “números acumulado de moradias retiradas de área de alto risco”. Isso abre espaço para duas interpretações: a retirada da categoria de risco pela realização de obras de infraestrutura que reduzam os riscos, ou a remoção das residências, o que é preocupante. Serão priorizadas as obras de infraestrutura para não desarticular o tecido social das comunidades pelo reassentamento em áreas distantes? Ou o discurso do risco será apropriado para justificar remoções violentas? É importante analisar melhor estes dados pois existe um histórico da GEO-Rio exagerando os riscos em certas favelas aparentemente para justificar a remoção forçada. É preciso ter um plano de ação claro, construído de forma participativa, e pautado na compatibilização do risco físico e da dinâmica de pertencimento dos moradores.
- M77: Contratar 20.000 Unidades Habitacionais de Interesse Social até dezembro de 2020. Faz-se necessário conhecer os critérios de distribuição geográfica dessas unidades. É desejável que estejam localizadas em áreas centrais subutilizadas, promovendo o uso misto, do que em locais distantes e desarticulados em termos de transporte, como frequentemente é o caso.
Na dimensão da Economia, algumas metas e iniciativas falam da descentralização do emprego para as Zonas Norte e Oeste, a capacitação de jovens de áreas vulneráveis e mais suscetíveis à informalidade e a priorização de compras por parte do município de atividades exercidas em regiões mais vulneráveis da cidade (que serão chamadas de Zona Franca Social). O Plano traz, ainda, uma plataforma online, chamada de Rede Comunidade Integrada, para conectar ofertas e demandas locais, cujo projeto piloto será implementado nas comunidades da Maré. Na dimensão ambiental, a “readequação ambiental dos rios próximos a comunidades carentes”, como parte do programa Rios Cariocas, poderá levar a remoções pautadas no argumento ambiental. Além disso, pode-se questionar a restrição do programa aos rios próximos a “comunidades carentes”, em vez de trazer uma justificativa ambiental como critério.
Já a dimensão Social engloba questões de saúde, segurança pública, educação, cultura, entre outros. No âmbito da saúde, prevê-se a expansão do Programa Saúde da Família, além da expansão no número de leitos, policlínicas e procedimentos cirúrgicos. Para a educação, o Plano propõe a abertura de 40.000 vagas em creche, 15.000 em pré-escolas e 45% dos alunos matriculados em tempo integral na rede pública. O plano ainda compromete-se com a reforma e reabertura de equipamentos culturais, muitos dos quais estão localizados em favelas (como a Biblioteca Parque Manguinhos, fechada no ano passado por falta de verbas) apesar de não prever a criação de novos.
As favelas fora do plano
Consideramos que alguns pontos levantados no Plano deveriam ter sido trazidos em sua dimensão territorializada, pelo impacto que têm sobre as favelas. Eles incluem, mas não se limitam às seguintes iniciativas:
Rio de Janeiro a Janeiro
A iniciativa “Rio de Janeiro a Janeiro” visa a promoção de eventos culturais e artísticos, além do incentivo ao turismo, mas não menciona em nenhum momento atividades culturais e turísticas desenvolvidas em favelas. Essas atividades geram emprego e renda dentro da comunidade, além de reforçarem a segurança e estimularem a autoestima, mas ao não reconhecer essas manifestações, tampouco a necessidade de incentivá-las, o Plano não fornece garantia contra as barreiras que têm sido postas ao seu acontecimento pelos comandos das UPPs, entre outros.
Segurança Cidadã / Políticas de Incentivo e Programa Presente
As iniciativas de segurança pública do Plano não fazem menção a políticas e ações voltadas para favelas, onde se concentra a maior letalidade do município. Poderia-se atribuir isso à atuação limitada da prefeitura sobre o tema devido a sua não ingerência sobre a Polícia Militar, mas há uma meta que versa sobre a redução dos crimes de baixa letalidade na orla da cidade, levantando o questionamento de onde estariam as metas para o resto da cidade, não turística e menos abastada.
Além disso, tais iniciativas tratam da requalificação do trabalho da Guarda Municipal e do incremento do programa de guarda de proximidade. O trabalho da Guarda será pautado em um “policiamento comunitário e de vigilância ostensiva”, por meio de uma atuação mais “proativa”, o que levanta preocupações em termos de quem será protegido e contra quem, ainda mais com a intenção atual da prefeitura de armar a Guarda. Assim, colocam-se duas importantes perguntas: quais serão as áreas da cidade que contarão com esse policiamento, e contra quem essa vigilância ostensiva será feita?
É previsto ainda “o pagamento de bonificação aos agentes da segurança pública estadual e municipal”, o que incluiria a Polícia Militar, ainda que não seja do escopo da prefeitura. O incentivo a uma vigilância dita “ostensiva” e a remuneração por metas de “redução da criminalidade” não definidas de forma bastante precisa arriscam levar à autorização de práticas já comuns de truculência e de atuação racista das forças de segurança.
Metas vinculadas:
- M43: Reduzir em 50% os índices criminais de baixa letalidade na orla da cidade do Rio de Janeiro, até 2020.
- M44: Manter 80% dos guardas municipais do efetivo disponível em policiamento comunitário e vigilância ostensiva da cidade (extramuros) diariamente, até 2020.
- M46: Criar o Fundo Especial de Ordem Pública (FEOP), até 2018, para incrementar a Política da Guarda de Proximidade na cidade do Rio de Janeiro.
Pelos Direitos Humanos
A iniciativa visa a criação de núcleos de Direitos Humanos em cada uma das 5 áreas de planejamento, “que promovam o diálogo permanente sobre Direitos Humanos, propiciando uma análise da realidade local à luz dos temas preconizados”. Apesar da dimensão territorial trazida, falta uma menção mais específica às favelas, tanto em termos de atuação territorial desses núcleos, quanto das temáticas abordadas. Como falar de direitos humanos no Rio de Janeiro sem mencionar violações que incluem remoções, invasões de domicílio, cárcere privado, violência policial desproporcional e enviesada?
Expansão do Saneamento
A iniciativa foca somente na expansão de saneamento na AP4 (Barra da Tijuca e Jacarepaguá), que será feito por meio de concessões privadas, não levando em consideração que essa infraestrutura é a maior demanda em territórios de favela por toda a cidade.
E agora?
Na dimensão da governança, o próprio Plano já afirma que visa promover a transparência e a participação da população nas políticas públicas, buscando uma governança descentralizada mais próxima da população, de forma a reduzir as desigualdades regionais. Para isso, a prefeitura comprometeu-se em divulgar as datas das oficinas para consulta acerca do Plano, além de uma plataforma online para onde contribuições poderão ser enviadas. Depois de consolidado, a prefeitura comprometeu-se com a disponibilização de relatórios semestrais e anuais para avaliar o andamento do Plano, além de plataformas de monitoramento e controle social.
Agora cabe à população avaliar a adequação das metas colocadas e o que falta ser abrangido pelo Plano para propor mudanças ou inclusões e, posteriormente o monitoramento das metas e a cobrança de suas implementações, para além dos canais fornecidos pela prefeitura. Divulgaremos em nossa página a agenda de consultas e os canais disponíveis para a participação.