Na última segunda-feira, dia 31 de julho, o Ministério Público do Rio de Janeiro realizou uma audiência pública para debater a nova crise de segurança que assola o estado e sua compatibilização com a proteção dos cidadãos. Contando com dois grupos de trabalho da própria instituição, a Assessoria de Direitos Humanos e de Minorias e o Grupo de Atuação Especializada em Segurança Pública (GAESP), a reunião, que contou com cerca de 300 pessoas, ocorreu 23 horas depois das declarações do ministro da Defesa, Raul Jungmann. No domingo, o ministro havia dito como seria conduzido o planejamento estratégico da Operação Segurança e Paz. Segundo ele, a operação utilizará um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para autorizar o emprego das forças armadas e seu forte aparato militarizado, novamente, para a realização de operações de repressão ao crime.
O economista e doutorando em sociologia, Douglas Almeida, morador de São de João de Meriti, disse que, embora o público fosse amplo e diverso, havia pouca representatividade da Baixada Fluminense e de outros municípios da Região Metropolitana, onde se concentram altos índices de violência e letalidade. “O cenário da Baixada foi apresentado em poucas falas. Pelo tempo de cada uma, o problema pode não ter ficado tão dimensionado, tendo em vista as taxas de homicídio assustadoras e o aumento da violência maior na Baixada do que na capital”, disse o economista.
Além disso, ele afirma que sentiu estranheza em função de algumas declarações. “Em alguns momentos os participantes se exaltaram com algumas falas, muitas carregadas de discurso de ódio. Num certo momento parecia, no entendimento de alguns policiais militares, que existia ali uma rixa entre a sociedade civil e os policiais. Faltou a PM fazer uma auto crítica profunda de suas ações nas incursões nas favelas. Vidas não podem ser tratadas como danos colaterais”, explica Douglas Almeida.
Para o sociólogo e coordenador do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araújo, analisando a conjuntura dos discursos no debate, o tema da segurança pública, assim como outros temas sociais discutidos no país, “está profundamente marcado por posições estabelecidas de forma previamente dicotomizada e às vezes até odiosa”. “Essa verborragia sobre a segurança, desprovida de bases factuais abrangentes, dificulta a busca de alternativas para a insegurança vivida. Algumas falas trouxeram o modelo do policial na luta do bem contra o mal, do trabalho heróico de proteção à sociedade e da negação de uma política de confronto, mas essa descrição não dá conta do aumento da letalidade da ação da polícia, nem dos confrontos diários decorrentes da política de combate às drogas e, muito menos, explica por que determinados segmentos sociais são mais vulneráveis que outros, como os moradores das favelas, periferias e jovens negros do sexo masculino”, argumenta Adriano.
Entretanto, o que mais surpreendeu Adriano Araújo foram os dizeres referentes à atuação da polícia. Alguns colocaram que a corporação não deve sofrer qualquer espécie de controle. “Isso chega a ser assustador. Lembramos que tal discurso foi proferido no espaço do Ministério Público, que tem entre suas atribuições o papel de monitorar a ação policial. Como não pensar a ação da polícia desprovida de mecanismos de controle social? Há nessa fala a incorporação da lógica militar que separa a polícia do mundo civil, daí o caráter subjacente de que a Polícia Militar não deve sofrer fiscalização e controle externo”, diz Adriano Araújo.
Para o historiador e assessor político do Centro de Direitos Humanos de Nova Iguaçu, Fransérgio Goulart, as audiências públicas têm gerado “pouco ou nenhum resultado de mudança para a vida dos violados”. Afirmou que o Ministério Público acabou conduzindo e mediando a audiência na contramão dos objetivos propostos no programa. “Em nenhum momento, a pauta descrita no edital dizia que era para discutirmos sobre o ingresso dos concursados na PM, sobre questões financeiras da polícia, sobre projetos de militarização das escolas, entre outros pontos. Acabaram sendo priorizadas as pautas trazidas pela polícia, que com esse movimento demonstrou todo o seu racismo institucional e opção pela política de confronto”, diz Fransérgio.
Mas nem só de críticas é construído o depoimento do historiador. Fransérgio Goulart reconhece que, por outro lado, muitos participantes oriundos das favelas cariocas fizeram falas criticando a política de segurança pública. “Tentaram convencer dizendo que essas comunidades são como um campo de guerra, extermina-se os jovens, sobretudo negros e pobres. Isso é um dado, vai além de uma percepção ideológica; os policiais negros matam jovens negros e vice-versa. Mas, em muitas falas de policiais ou ex-policiais, os representantes da corporação se auto intitulavam heróis ou guardiões da sociedade, tirando o caráter de diálogo, impondo psicologicamente uma suposta força”, diz Fransérgio.
Uma outra crítica feita pelos entrevistados foi a ausência de deputados estaduais, participando apenas o presidente da comissão de Direitos Humanos da ALERJ, Marcelo Freixo. O secretário de segurança, Roberto Sá, reservou um tempo considerável de sua fala sobre o controle de armas, mas também não aprofundou a questão do uso de força excessiva pela PM e generalizou a questão da corrupção, dizendo que a polícia é apenas “um reflexo da sociedade”.
O pesquisador da UERJ, Mario Brum, que estuda periferias urbanas na universidade, considerou que o Ministério Público agiu corretamente ao tentar mediar as várias visões sobre o debate da segurança, elogiou a força dos relatos de moradores que sofreram perdas familiares, mas assim como os outros entrevistados teve a impressão de que ambos os lados assumiram uma posição defensiva exacerbada. “Me preocupou a maneira como foi posta a visão de que é preciso enfrentar o crime ‘indo pra cima’ e também a maneira como qualquer defesa à vida das pessoas foi encarada como ‘defender bandidos’ ou ‘impedir a polícia de trabalhar’”, disse ele.
Matéria escrita por Fabio Leon e produzida por parceria entre RioOnWatch e o Fórum Grita Baixada. Fabio Leon é jornalista e ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada. O Fórum Grita Baixada é um fórum de pessoas e instituições articuladas em torno da Baixada Fluminense, tendo como foco o desenvolvimento de estratégias, o fomento de articulações e a incidência política no campo da segurança pública, entendida como elemento para a cidadania e efetivação do direito à cidade. Siga o Fórum Grita Baixada pelo Facebook aqui.