Um ano depois dos Jogos Olímpicos, o Rio de Janeiro está emaranhado em uma onda de violência que seria inimaginável para os milhares de turistas que chegaram na cidade em agosto do ano passado. Até o dia 2 de julho, pelo menos 632 pessoas foram atingidas por balas perdidas no Estado do Rio de Janeiro este ano, 120 mortas em latrocínios e 480 pela Polícia Militar em autos de resistência, e 90 policiais morreram em tiroteios dignos de situações de guerra. Em resposta, o governo federal acaba de ceder 8500 soldados do exército para o Rio. Histórias da devastação, em geral em áreas de baixa renda e favelas negligenciadas pelo Estado, são, infelizmente, fáceis de encontrar. O filho de Claudineia dos Santos Melo foi baleado enquanto ainda estava no útero, e nasceria com deficiência. Vanessa dos Santos, de 10 anos de idade, foi morta por uma bala perdida enquanto estava em sua própria casa. Maria Eduarda Alves da Conceição, estudante e atleta de 13 anos, foi atingida e morta dentro de sua escola em Acari, seguida de Hosana de Oliveira Sessassim, com a mesma idade e no mesmo bairro, atingida e morta apenas cinco dias depois.
A prefeitura e o governo estadual estão em estado de choque–lutando para ajustar o orçamento após perdas profundas relacionadas aos gastos com os Jogos Olímpicos–que é intensificado por uma crise econômica nacional e pelo contínuo escândalo político de corrupção. A conexão entre a queda econômica pós-Olímpica vista repetidas vezes em cidades-sede de todo o mundo e a queda do Rio é óbvia. No entanto, há muito mais atrás disso. Culpar as Olimpíadas ou mesmo a recessão econômica pelos problemas de violência no Rio é ignorar a história da cidade. A violência extrema atormenta a cidade há décadas. Embora os investimentos Olímpicos agravaram a desigualdade na cidade, as frustrações resultantes da falta de recursos públicos e a situação econômica de hoje desempenhem grandes papéis na exacerbação dos problemas enfrentados pelos moradores do Rio, e ambos têm raízes em problemas já existentes anteriormente. Quais são as tendências históricas e as decisões políticas deliberadas que levaram à violência que o Rio está experimentando hoje? Para entender verdadeiramente o atual aumento da violência no Rio, devemos olhar para as causas raiz no contexto do ambiente pós-Jogos: e existem oito delas!
8. Políticas de Policiamento Falidas
A história da Polícia Militar do Rio de Janeiro é de violência e repressão. A força policial foi originalmente criada para proteger a realeza da crescente população escrava, e muitos desses preconceitos históricos ainda são evidentes. A Polícia Militar do Rio de Janeiro, controlada pelo governo estadual, ganhou o título de “mais violenta do mundo“, com assassinatos que chegam a cerca de 1.200 pessoas por ano, segundo dados coletados até 2015. Uma estatística condenável: para cada 23 apreensões feitas, a polícia do Rio mata uma pessoa, em comparação com uma morte a cada 37 mil apreensões no caso da polícia dos Estados Unidos, por exemplo. No entanto, o Estado decidiu reformar um segmento da sua força policial antes da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, a partir do programa das UPPs, inicialmente reduzindo drasticamente essas estatísticas e alcançando elogios locais e internacionais. Independentemente de qualquer sucesso inicial, no entanto, o programa começou a apresentar problemas. Por que certas comunidades foram escolhidas para receber a UPP e outras não? Para onde os traficantes de drogas foram expulsos? Onde estão as estratégias de “policiamento comunitário” louvadas pela comunidade internacional e anunciadas pelo governo? No fim das contas, com o olhar internacional afastado, lideranças fracassadas, corrupção policial e menos aporte de dinheiro para financiar o programa e, em muitos casos, para pagar os policiais, as facções de drogas voltaram para basicamente todas as favelas onde a UPP foi implementada. Em alguns casos, como na Maré, o programa foi completamente abandonado e substituído pelas antigas táticas de incursões de estilo militar. “Quando a polícia se faz presente, o Estado, ele faz matando”, observou um morador da Maré. “Desde sempre essa população sofre essa violência que é legitimada por um Estado que realmente mata gente, todo dia”. Com o aumento da pressão, o governo começou a retomar as antigas políticas de policiamento falidas, sabendo muito bem que elas não funcionam.
7. Falta de Nuance, Análise e Equilíbrio na Cobertura da Mídia
Salvo algumas organizações independentes de jornalismo, a mídia do Rio de Janeiro geralmente ignora os problemas enfrentados pelos moradores de favelas. Ao mesmo tempo que a Globo, um dos maiores conglomerados de mídia do mundo e uma força monopolista na mídia brasileira, publicou recentemente uma matéria detalhando os perfis das vítimas de bala perdida, ela também lançou recentemente um vídeo intitulado “Tiroteio Assusta Moradores de Copacabana”, que em vez de se concentrar na violência e nas questões enfrentadas pelas pessoas que vivem no Pavão-Pavãozinho, local onde o tiroteio ocorreu, o canal decidiu se concentrar nos moradores mais ricos, que estão embaixo da favela. Esse comportamento não é apenas visto na mídia nacional. Durante a Copa do Mundo e nos Jogos Olímpicos, muitos meios de comunicação internacionais de fato focaram nas favelas, porém poucos foram capazes de compreender e retratar autenticamente as nuances das vidas dos moradores de favelas e as questões que eles enfrentam. Reportagens irresponsáveis e sensacionalistas, sejam nacionais ou internacionais, geralmente sugerem que o aumento dos níveis de violência deve ser resolvido através de um maior nível de investimento em forças de segurança, ou solidificam pontos de vista ignorantes e racistas sobre moradores de favelas. Enquanto muitos moradores do Rio apoiam a presença da Polícia Militar, a diretora executiva da Anistia Internacional Brasil afirma: “O levantamento conduzido pelo CESeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) no Rio mostra que 92% acha que a polícia não tem direito de matar ninguém… A gente precisa contestar a perspectiva e relação entre a segurança pública e a guerra às drogas. Todo mundo sabe que uma guerra produz mortes, mata muito… O Brasil precisa reconhecer o protocolo internacional para proteger as vidas das pessoas. Se números demonstram que a polícia está matando, essa força precisa ser desarmada”. Para aprofundar a compreensão deste tema entre o público, moradores da Zona Sul e transeuntes foram recentemente convidados a identificar a localização de sons de guerra gravados e reproduzidos como parte de uma campanha do jornal comunitário Voz das Comunidades. A maioria dos participantes pensou em lugares como a Síria, o Afeganistão ou a África, quando na verdade o som que eles estavam ouvindo foi gravado no Complexo do Alemão.
6. Desigualdade Arraigada
De porto de entrada do maior número de escravos na história mundial, ao papel de lar da primeira favela do Brasil, a Providência, o Rio é um estudo de caso sobre a desigualdade histórica. No Rio, não são apenas as estatísticas que levantam o problema, mas também a paisagem física da cidade. Olhando para os mapas raciais do Rio de Janeiro, torna-se ainda mais claro que grandes populações de moradores de baixa renda e negros estão sujeitas a condições que seus vizinhos mais ricos e claros não estão. Um morador da Rocinha observa: “Essa diferença vem dos tempos da abolição. Os negros viviam nos morros (que eram terras públicas, e, portanto, mais fáceis de ocupar). Então, negros e pobres não eram valorizados e não receberam apoio do governo. Sem saneamento básico, estradas pavimentadas. A política e o governo não chegavam lá”. Ou seja, muitos moradores do Rio, incluindo pessoas em posições altamente poderosas, vivem com os moradores da favela fora de seu alcance de visão e fora de seus pensamentos. Um rico morador da Barra lembrou que “sempre ouviu duas histórias: ou de ‘traficantes e violência’, ou ‘das boas pessoas sempre tentando encontrar um sorriso”. Enquanto a violência é exibida nos noticiários noturnos, a triste verdade é que a desigualdade e o privilégio–consagrados mesmo no código tributário altamente regressivo do país–impedem o sistema de acabar com a negligência e a repressão.
5. Falta de Pensamento e Integração Abrangente e Regional
Uma vez que muita atenção foi dada ao Rio de Janeiro e à Zona Sul, muitos esqueceram os milhões de cidadãos que vivem nas áreas periféricas da cidade e na região metropolitana. Alguns dos bairros de renda mais baixa ficam no norte e oeste do Rio, e a integração regional foi muito negligenciada, problema que foi potencializado pelos investimentos Olímpicos mais pesados nas áreas centrais. Como os traficantes de drogas foram inicialmente empurrados para fora de favelas situadas em áreas centrais devido às UPPs, eles proliferaram em comunidades mais distantes, e desde então têm havido um crescimento dos índices de violência nestas comunidades, o que não acontecia antes. A Baixada Fluminense, ao norte e nordeste do Rio, recebeu um pouco desse fluxo, e já tinha maior taxa de violência histórica do que o próprio Rio. Muitas comunidades da Baixada são controladas por milícias. Vendidos como proteção contra as facções de drogas, as milícias despejam sua própria dose letal de violência muitas vezes elogiada por políticos locais. Para piorar as coisas, as Olimpíadas serviram como uma maneira de remover cerca de 80 mil habitantes, a maioria dos quais foram reassentados na Zona Oeste do Rio, que é cronicamente negligenciada, distante das oportunidades e também administrada por milícias que não permitem que os moradores falem em público sobre seus problemas. “Em 2013, derrubaram minha casa. Deram uma compensação, mas a casa valia mais”, lamentou um ex-morador da Praça Seca, “Eu tinha um projeto social no terraço da minha casa. O BRT passou, terminou tudo”. Anunciado como uma tentativa de “conectar” os cidadãos da grande área metropolitana, grande parte do “legado” de transporte Olímpico na verdade encorajou menos conectividade e mais violência.
4. Políticas como Instrumento de Marketing (e Não de Desenvolvimento)
Desde os tempos da escravidão, o termo “para inglês ver” tem sido uma maneira de descrever as pessoas no poder que anunciam (sem necessariamente implementarem) estratégias superficiais ou de curta duração a fim de criar a aparência de que estão resolvendo problemas de longo prazo. O legado dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo foi repleto de projetos do tipo. Quando perguntado sobre o programa UPP Social, braço da política de policiamento da UPP que deveria trazer todos os outros serviços que faltavam para além da segurança, um morador do Cerro-Corá respondeu: “Eu não acho que eles estão interessados na opinião dos moradores de favelas. Eles perguntam porque eles tinham que perguntar, para poderem dizer que perguntaram”. O programa nunca trouxe a infraestrutura que deveria fornecer. As táticas do tipo “para inglês ver” continuam até hoje. Recentemente, o novo prefeito do Rio divulgou seu plano para a cidade. Para enfrentar a crescente violência, seus objetivos de segurança foram focados em reduzir a violência não letal na orla. Embora talvez beneficie os turistas e uma pequena parte da elite do Rio, esse objetivo de curto prazo não faz nada para resolver as causas profundas da violência do Rio. No entanto, cria uma ilusão para aqueles que visitam o Rio de Janeiro, e estabelece um caminho fácil para o ganho político.
3. Serviços Sociais de Baixa Qualidade e Insuficientes
Saúde, educação e saneamento são constantemente as principais prioridades de infraestrutura entre os moradores de favela em toda a cidade, e são os tipos de investimentos mais propensos a diminuir a violência. No entanto, esses serviços são cronicamente insuficientes, de baixa qualidade, mal mantidos e subfinanciados, problema que se torna ainda mais terrível devido à implementação de medidas de austeridade pela atual administração federal. “Por que não tem escola técnica e nem universidade na favela se tem dinheiro para operação policial?”, perguntou um morador de Acari. As estatísticas de saúde e educação também são bastante desiguais quando se considera a geografia da cidade. As taxas de analfabetismo em alguns bairros são o dobro das da Zona Sul. Como resultado, os jovens vivenciam uma via direta “escola-prisão” semelhante ao dos Estados Unidos. Tudo isso é potencializado pela violência diária vivenciada, que chegou a fechar escolas e estabelecimentos de saúde locais. “A gente tá passando por várias situações difíceis”, diz um agente de saúde da Maré, “até fecharam o posto de saúde por causa da violência. A unidade fecha, as escolas fecham, tudo fecha”. Esse foi o caso quando milhares de estudantes no Complexo do Alemão tiveram seus primeiros dias de escola cancelados devido a uma operação policial, e muitos foram notificados apenas minutos antes do início do tiroteio. Lamentavelmente, o aviso nem sempre acontece, como no caso de Maria Eduarda, que morreu por uma bala perdida enquanto estava em aula.
2. Criminalização da Pobreza
O Brasil tem uma profunda história de criminalização da pobreza. Os mais pobres do Rio, particularmente quando são negros, estão imediatamente em desvantagem legal e econômica por causa do racismo institucionalizado e de ideias preconceituosas em geral, que nunca foram sistematicamente enfrentadas pela sociedade como um todo. Os empregadores discriminam frequentemente com base no tom de pele e endereço, tornando difícil para muitos moradores de favela encontrar empregos formais. Isso piora devido à crise financeira atual do país. A taxa de desemprego do Brasil aumentou de 6,2% em dezembro de 2013 para 13,7% em maio de 2017, mais que o dobro em apenas três anos. Jovens e negros são os mais prejudicados por essa estatística. O especialista em conflito urbano Betinho Casas Novas do Complexo do Alemão disse: “Eu represento a estatística de quem não entrou no tráfico, mas cresci com muitas pessoas que entraram. Faltam aulas, recursos, serviços para os jovens. Eu acho que existe um preconceito que acha que todos os jovens da favela vão ser vendedores ou empregados, mas eles podem ser atletas, jornalistas, professores”. Na guerra contra as drogas, moradores de favela são tratados como alvos de forma desproporcional, quer estejam envolvidos no tráfico ou não. Na verdade, apenas 1% dos moradores das favelas estão diretamente envolvidos no tráfico de drogas, mas comunidades inteiras são tratadas como criminosas, enquanto os produtores, consumidores e financiadores têm reinado livre. Talvez não seja surpreendente que, entre os jovens, os negros são, por sua vez, os mais prováveis de serem mortos pela polícia e irem para a prisão. No final, isso não serve apenas para fortalecer estereótipos, como também encoraja a guerra em comunidades do Rio.
1. Falta de Esperança
Por fim, há desesperança. O que o levaria a cometer um crime? Não se fazer essa simples pergunta, à medida que buscamos soluções, é conseqüência da visão “do outro” como não humano. A Copa do Mundo e as Olimpíadas trouxeram, no início, um sentimento positivo; os cariocas ouviram seus representantes promovendo grandes projetos que estavam empreendendo e a comunidade internacional estava chegando para assistir. Entre 2008 e 2010, foram anunciados pelo menos cinco grandes programas que poderiam ter melhorado drasticamente a vida de cariocas de baixa renda e moradores de favela em toda a cidade se tivessem sido implementados de acordo com seus princípios norteadores: do governo federal, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e o Minha Casa Minha Vida (MCMV); do Estado, os programas UPP e UPP Social (que depois passou para o município); e o programa municipal Morar Carioca. Este último programa foi promovido pelo então prefeito Eduardo Paes em seu TED Talk, prometendo elevar os padrões de todas as favelas do Rio até 2020, mas no fim das contas foi abandonado, usado só por fins eleitoreiros. As cinco políticas deixaram, inicialmente, moradores de favelas visivelmente esperançosos, que finalmente investimentos fundamentais viriam. Esperança também vinha através do crescimento econômico deste período e do Bolsa Família, que removeu o Brasil do mapa mundial da fome, e que levou o país da posição de mais desigual do mundo para o 21º mais desigual, em uma período de só 15 anos. Tudo aparentava estar melhorando até 2013, quando centenas de milhares de manifestantes tomaram as ruas do Rio e milhões de outros fizeram o mesmo por todo o Brasil. No entanto, infelizmente, os megaeventos chegaram e passaram e os cidadãos de baixa renda, há muito tempo desatendidos e marginalizados, ficaram com até menos oportunidades do que antes. Todas as cinco políticas tinham sido uma fachada. Agora, em 2017, em meio a crises econômicas e políticas, e à tentativa de desvencilhar a mobilidade social ascendente recentemente vivida por milhões de brasileiros em todo o país, não há mais uma estrela brilhando a distância prometendo uma vida melhor.
Voltando à experiência de moradores de favelas com tráfico de drogas… Como disse um morador de Acari: “Todo mundo que mora aqui já viu uma poça de sangue ou um corpo caído. Venda e consumo de droga tem na Barra, no Leblon. Mas é aqui que tem tiro, morte. A gente às vezes se convence que a guerra é normal, mas ela é parte de um sistema que tá botando dinheiro no bolso de alguém, e não é no nosso”. Não é de se admirar que o crime e a violência estejam no auge. E, infelizmente, não há chance de mudar isso sem empreender o trabalho duro das mudanças reais, que significa enfrentar as causas raiz da violência.