No dia 31 de julho, o Instituto de Políticas Alternativas para o Cone Sul (Instituto PACS) lançou a sua publicação mais recente, “Rio Olímpico: qual o legado um ano depois dos Jogos?“, na Casa Pública em Botafogo. Refletindo sobre as consequências dos Jogos, o relatório esclarece a disparidade entre os benefícios prometidos e a realidade cotidiana vivida pelos moradores da cidade. O PACS convidou oradores do Horto, Complexo da Maré, Vila Autódromo e Maracanã para compartilharem as suas histórias de resistência e desafio comunitário. O evento ressaltou como as estratégias de desenvolvimento para o megaevento, especificamente, dirigiram-se às favelas do Rio através de crescentes intervenções policiais pela UPP, incidentes contínuos de remoções de favelas, exclusão do mercado e negligência pública. Seguindo os princípios fundamentais da publicação, o evento focou em duas perguntas: Qual o legado deixado? Para quem foi benéfico?
A primeira oradora, Sandra Quintela, coordenadora da plataforma da sociedade civil do PACS, explicou que as Olimpíadas deixaram um mosaico de projetos sociais e intervenções inacabadas, bem como um Rio financeiramente e socialmente endividado. Reafirmando o argumento de um movimento crescente anti-Olímpico, Sandra ressaltou como os megaeventos frequentemente impõem violência estrutural sobre os segmentos mais pobres da sociedade: “A gente sabe que a Olimpíada é uma iniciativa privada, uma iniciativa que desconsiderou a cidade e favoreceu os grandes grupos econômicos que puderam usar o Rio de Janeiro como vitrine de seus produtos”. Ela continuou: “A gente quer com esta publicação, que um bom número de pesquisadores e lutadores possam aprofundar suas pesquisas e lutas. Porque a gente quer produzir conhecimento para as lutas, neste momento dramático no estado do Rio de Janeiro”.
Maria da Penha falou no painel como líder no movimento dos moradores contra as remoções na Vila Autódromo. Vila Autódromo foi uma das muitas favelas programadas para remoção durante os preparativos para os Jogos, porém obteve atenção internacional pela sua luta contra a remoção. Maria da Penha explica que um ano após as Olimpíadas, a Vila Autódromo ainda está enfrentando muitas dificuldades, mas que a memória e as lembranças têm um poder especial: “Nossa memória é apagada muito rapidamente, e isso não pode acontecer. Por isso, é muito bom esse encontro. Nós estamos vivendo uma memória triste, mas uma memória que nos fortalece”.
Emilia Maria de Souza, moradora do Horto e representante do Museu do Horto e da Associação de Moradores do Horto, elaborou sobre esta discussão contando da luta contínua contra a remoção. O Horto é uma comunidade verde que devido à sua localização atrás do Jardim Botânico e próxima ao Parque Nacional da Tijuca, tem sido ameaçada de remoção. A história do Horto tem 200 anos, porém o recente crescimento da especulação imobiliária durante os preparativos para as Olimpíadas aumentou a pressão para remover a comunidade. A Associação de Moradores do Horto rejeita os padrões duplos dos governos municipais, estaduais e federais para justificar a remoção das favelas ao redor do Parque Nacional da Tijuca, enquanto ignoram as ricas vilas e mansões construídas mais acima nos mesmos morros. Emilia explicou qual foi a estratégia de resistência ao entregar uma proposta ao governo–sobre a solução desta questão da propriedade da terra–de acordo com o mesmo discurso legal de conservação ambiental na Lei Orgânica Municipal: “A gente propôs a retirada de todas as redes dentro da área do parque na zona da Tijuca, todas as mansões e todas as empresas públicas e privadas que estejam dentro desse perímetro. Aí, vamos conversar sobre uma proposta de realinhamento para a comunidade”.
Edneida Freire, ex-atleta e professora de educação física, foi coordenadora dos programas de esporte no Estádio Célio de Barros, que foi fechado no dia 9 de janeiro de 2013 e subsequentemente demolido para dar lugar ao Complexo do Maracanã. Muitas crianças e adultos das comunidades vizinhas participavam dos programas sociais e de educação física. No início esperando obter benefícios da proximidade do estádio Maracanã reformado, Eneida declarou: “A gente sempre tinha uma esperança de sobrar um pedacinho desse queijo, uma melhor arquibancada, banheiros. Mas nada disso chegou e simplesmente o parque foi fechado, sem nenhum aviso”. Não lhes foi permitido entrar no local durante seis meses, e o complexo esportivo não estava sendo usado por ninguém. Apesar da promessa de poderem voltar ao complexo, até hoje Eneida somente pode dizer coisas ‘maliciosas’ sobre as Olimpíadas: “Como um estádio dito mítico, não tem dentro dele um projeto de iniciação de atletismo?” Ela continuou, “quem mora na comunidade precisa de educação física de graça”.
Certamente o legado mais intensamente percebido deixado pelos Jogos é a crescente militarização das forças policiais e as suas operações nas favelas do Rio. Apesar da violência do Estado nas favelas não ser um fenômeno novo e ter muitas causas profundas, os incidentes de intervenções policiais violentas aumentaram significativamente durante os preparativos e após as Olimpíadas. Gizele Martins, jornalista comunitária bem conhecida e moradora da Maré, resumiu uma linha cronológica de incidentes chocantes associados à violência do Estado e negligência pública demonstrando o impacto devastador dos megaeventos como a Copa das Confederações, a Copa do Mundo e as Olimpíadas que dominaram a política pública do Rio durante uma década.
Começando a sua história em 2007, Gizele lembrou ao público as políticas segregativas por trás dos projetos de renovação urbana destes megaeventos. A construção do que chama de muro da vergonha na Linha Vermelha, uma importante rodovia Norte-Sul que se estende do Aeroporto Internacional do Rio até os bairros das praias da Zona Sul, é um exemplo disto: “Separar a Linha Vermelha e a favela da Maré, por que? Porque é a principal porta de entrada e saída do Rio de Janeiro”. Ela continuou: “Os ônibus que tínhamos para circular na cidade para trabalhar na Zona Sul foram cortados da cidade durante as Olimpíadas”.
Durante o ano das Olimpíadas, Gizele explica, as políticas excludentes alcançaram um novo nível através da crescente militarização das forças policiais na Maré: “O discurso é que nós somos inimigos da cidade. Quem mora na favela, nós favelados, não somos considerados parte da cidade. Porque se nós fossemos considerados parte da cidade, não teria um tanque de guerra na Maré na Copa do Mundo”.
Um ano após o “momento brilhante” do Rio, a desigualdade da cidade continua crescendo durante o atual estado de fracasso político e econômico. Os enormes déficits do Estado como resultado dos investimentos públicos na mega-construção dos parques Olímpicos e projetos de infraestrutura como o BRT não trouxeram as oportunidades prometidas para a cidade. Por exemplo, em Ramos, a construção da infraestrutura Olímpica do BRT resultou em uma perda significativa de espaço verde e público. As UPPs nas favelas hoje em dia estão mais associadas ao terrorismo do Estado do que à segurança pública, causando mais mortes de inocentes do que salvando vidas. Afinal, parece que os locais Olímpicos deteriorados são mais valorizados do que importantes comunidades históricas como a Aldeia Maracanã, Vila Autódromo, Maré, Horto e muitas outras que foram e ainda são menosprezadas e excluídas dos seus direitos à terra e a um ambiente seguro.
Entretanto, o legado das Olimpíadas não é apenas de dor, injustiça e exclusão. Através desta luta e daqueles que continuam compartilhando as suas histórias, como foi ressaltado por todos os oradores no evento do PACS, as Olimpíadas deixaram uma memória e aprendizado de resistência. Esta memória está sendo usada para fortalecer a resistência em outras comunidades, e pode ser vista através de uma rápida e crescente tendência na museologia social em todas as favelas do Rio, e continua inspirando uma cobertura de longo alcance, inclusive descrições cinematográficas das consequências dos Jogos como o recém-lançado documentário Favela Olímpica.