Muitos dos crimes que levaram Maria do Nascimento a uma sala de reunião no sexto andar do Ministério Público Federal do Rio de Janeiro, em agosto, aconteceram há mais de cem anos. Maria, de 80 anos, é também conhecida como Mãe Meninazinha d´Oxum. Ela é uma das Iyalorixás de Candomblé mais conhecidas e respeitadas do Rio.
Maria esteve no Ministério Público Federal para lutar pela restituição de objetos sagrados tirados de seus antepassados durante a Primeira República (1889-1930) e a Era Vargas (1930-1945).
Embora o Brasil tenha sido declarado um país laico em 1891, o Código Penal de 1890 ainda proibia a prática da cultura e religiosidade afro-brasileira, rebaixando crenças afro-brasileiras a xamanismo e magia negra. Violações da lei eram punidas com pena de prisão de até seis meses e multa de até 500 mil réis. A polícia perseguia praticantes de religiões como a Umbanda e o Candomblé. Invadia centenas de centros espirituais, prendendo líderes religiosos, e confiscava seus objetos sagrados como prova. A lei discriminatória foi alterada com o novo Código Penal de 1940, mas era aplicada na prática até 1960.
Até os dias de hoje, mais de 200 desses objetos–incluindo imagens, instrumentos musicais, oferendas, velas e vestimentas–são mantidos em caixas e armazenados nos arquivos da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro.
Há muitos anos, Maria do Nascimento vem lutando para tirá-los de lá. Junto a outros líderes de diferentes religiões, pesquisadores, ativistas do movimento negro e organizações da sociedade civil, ela começou esse ano uma campanha chamada “Liberte Nosso Sagrado”.
Ela explica: “Para nós, não são peças arqueológicas. São peças sagradas de nossos ancestrais. Invadir o nosso sagrado, a parte mais íntima de nossa vida, é uma dos piores dores. Nosso sagrado está preso. Nós estamos presos”.
No Ministério Público Federal, Maria e outros ativistas envolvidos com a campanha apresentaram o caso para a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ. Os advogados presentes, Ana Padilha de Oliveira e Renato de Freitas Machado, asseguraram seu apoio aos ativistas e prometeram fazer contato com a Polícia Civil.
Por muitos anos, a atitude da Polícia Civil em relação ao tratamento dos objetos sagrados confiscados e seus donos tem sido desrespeitosa. Até a década de 1990 as peças estavam expostas ao público no Museu da Polícia Civil. A coleção era etiquetada pelo termo depreciativo “Magia Negra”, e os objetos colocados ao lado de armas de fogo, evidências de cenas de crime e objetos nazistas. Foram então removidos da exposição permanente e armazenados no arquivo, fechado à visitação. O título “Coleção Magia Negra” permanece até hoje. Em 2010, o museu foi fechado para obras e não voltou a abrir as portas. Desde então, o acesso aos objetos sagrados tornou-se praticamente impossível. Não há nem ar-condicionado nem outra medida para conservação dos objetos e ninguém sabe em que estado se encontram.
O produtor de cinema independente da Quiprocó Filmes, Fernando Sousa, está produzindo um documentário sobre a campanha “Liberte Nosso Sagrado”. Ele destacou como a falta de acesso impede tanto a pesquisa científica quanto o ensino da religiosidade e cultura afro-brasileira nas escolas, ainda que o último seja obrigatório. “Para a construção da sociedade democrática, o acesso é fundamental”, ele disse durante a audiência no Ministério Público.
Fernando também se referiu ao aumento dos níveis de intolerância religiosa no Brasil. De acordo com um relatório das Nações Unidas divulgado em janeiro de 2017, entre 2011 e 2015, o Rio de Janeiro teve mais registros de casos de discriminação religiosa do que qualquer outro estado brasileiro. Religiões afro-brasileiras foram os alvos mais comuns de discriminação.
Heloisa Helena Costa Berto, que também atende pelo nome espiritual Luizinha de Nanã, acredita que uma das razões pelas quais a Polícia Civil se recusa a devolver os objetos sagrados é o simples fato de que perderia grande parte de seu acervo. Heloisa Helena foi vítima de intolerância religiosa e de abuso por parte da prefeitura quando sua casa e seu centro espírita na Vila Autódromo foram demolidos para a construção do Parque Olímpico. A igreja católica da comunidade foi deixada intacta. Desde então, ela tem lutado ativamente por direitos religiosos e de moradia, sendo a luta contra o racismo religioso seu principal foco.
Para Heloisa, o conflito sobre a restituição dos objetos roubados vai muito além da religião:
“[Isso] pode representar a quebra de um período, porque esse local da Polícia Civil–aonde essas peças ficaram presas–era o local onde as pessoas eram torturadas na época da ditadura. A retenção das peças representa o racismo religioso, mas o racismo não era só em relação à religião, porque quando elas foram retiradas, eles condenavam todos os tipos de atividades relacionadas à cultura negra–a capoeira, o samba e tudo mais. Então, quando eles continuam com essa filosofia de não liberar as peças, é como se o racismo ainda persistisse.
Então a liberação destas peças representa quase um ato de liberdade, no qual a gente, ao menos, possa sair desta opressão básica–que a tanto tempo a gente vive–pelo menos uma vez. Para que a gente possa ver, que este país está tão cheio de atitudes racistas, de atitudes corruptas, mergulhado em problemas. Você nunca pode ver o amanhã. Se uma parte do povo conseguir a liberação, significa um ponto de alegria, de liberdade. É um símbolo forte.”
Os participantes da campanha já estão planejando onde guardar os objetos depois que forem resgatados. O ideal seria ter um museu dedicado à cultura negra. Roger Cipó, um fotógrafo, pesquisador e ativista candomblecista de São Paulo, propôs em seu blog que “da mesma maneira que as peças religiosas católicas estão no Museu de Arte Sacra do Rio de Janeiro, objetos sagrados judaicos encontram-se no Museu Judaico do Rio, este acervo afro-religioso deve estar em um museu que exalte e respeite o valor religioso, histórico e artístico dessas peças”.
Marcelo Chalréo, presidente da OAB, apoia a ideia de transferir as peças para um museu público, onde possam ser restauradas e expostas de forma apropriada, apesar da sua preocupação de que o novo museu não seja criado no futuro próximo.
Essa preocupação é a razão pela qual Heloisa Helena propõe a seção Africana do Museu Nacional como uma solução provisória. Ela propõe que seja estabelecido um sistema compartilhado de vigilância da exposição, a ser exercido por diferentes lideranças religiosas. Para ela e seus companheiros de campanha, uma coisa é certa: eles nunca mais deixarão seus pertences sagrados sem vigilância.