De acordo com a Autoridade Pública Olímpica: “Legado é um conjunto de obras de infraestrutura (incluindo esportiva) e políticas públicas nas áreas de mobilidade, meio ambiente, urbanização, educação e cultura que estão em andamento e foram aceleradas e/ou viabilizadas pelo fato de a cidade do Rio de Janeiro sediar os Jogos Rio 2016”.
Exatamente um ano antes dos Jogos Olímpicos começarem, o então prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, esteve em Guadalupe, Zona Norte da cidade. O motivo da visita foi um debate promovido pelo Ponto Cine para discutir junto aos moradores o tal legado para a região. A sala de cinema com 73 lugares estava tomada por pessoas que naquele momento já esperavam por dias melhores. A ida do prefeito era fundamental para esclarecermos as dúvidas relacionadas ao mega projeto que prometia uma série de mudanças positivas na vida do suburbano. Cansados da violência local, dos ônibus lotados e em péssimas condições, diante de inúmeros problemas, os moradores viram naquele bate papo, uma luz no fim do túnel.
Em sua explanação o prefeito afirmou: “Os Jogos Olímpicos e Paralímpicos Rio 2016 são a oportunidade para que esta cidade se transforme”. Se conseguiu? Bem, depende do ponto de vista. De fato, houve uma transformação no Rio e isso é inegável. A pergunta é… Para quem?
Em Deodoro, onde foram construídos o Parque Radical e a Arena da Juventude, a mudança não veio. Com mais de 500 mil metros quadrados o Parque Radical–que teve orçamento perto de 700 milhões de reais–abrigou as competições de BMX, canoagem slalon e mountain bike e apesar de ser um dos legados, o local permanece deteriorado e fechado, desde o fim de 2016. Existe uma promessa da atual gestão para a reabertura, mas que vem se prolongando desde fevereiro. Já a Arena foi construída estrategicamente na região com objetivo de ampliar a participação esportiva entre os jovens de comunidades locais, o que não ocorreu até o momento.
Em agosto de 2015, quando houve o encontro, essa região já era apontada como uma das mais perigosas da cidade. Claro que havia uma preocupação quanto a isso. Nenhum dos organizadores queria que um membro da chamada “Família Olímpica” presenciasse um assalto com dez ou quinze homens (quando não menores) armados de fuzis, em plena Avenida Brasil. Ou pior, que fossem eles os vitimados. Diversas operações foram montadas na tentativa de aumentar a sensação de segurança. Aquele ano, um dado recorde chamou a atenção na “cidade maravilhosa”. A apreensão de adolescentes apresentou o maior número desde 2005. Segundo o levantamento do ISP-RJ, foram mais de 10.000 adolescentes encaminhados ao sistema socioeducacional. Naquele ano, o roubo a cargas já era um grande problema e, apesar das medidas, os números continuavam a dar sinais de que as coisas tendiam a piorar. Não deu outra.
Já em 2016 ou “ano Olímpico”, terminou como recordista no número de roubos de cargas. Foram registrados 9.870 casos no total, maior índice em 24 anos. Os dados são do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro.
A violência–consequência da falta de segurança nessa região aliada à falta de investimentos–é frequente. Não à toa, temos sempre os piores números. Assim como os atletas que buscam a quebra de recordes, o Rio de Janeiro parece fazer quase a mesma coisa. A diferença fica nos recordes negativos. De legado talvez, tenhamos apenas isso.
O dia 21 de agosto de 2017, por exemplo, ficou marcado como aquele que teve o maior número de alunos com aulas canceladas. De acordo com a Secretaria Municipal de Educação, 27.000 crianças e adolescentes foram prejudicados. O triste número foi resultado de uma megaoperação policial que contou inclusive com as forças armadas e aconteceu em sete favelas da Zona Norte. Pelo menos 20% destes alunos estavam nas regiões de Costa Barros e Guadalupe. Os números são aterrorizantes. Ainda segundo as informações obtidas junto à secretaria, dos 107 dias letivos este ano, somente por oito dias as escolas funcionaram normalmente. No total, 381 escolas ficaram fechadas pelo menos um dia, afetando 129.165 estudantes.
São crianças e jovens que deveriam ocupar o Parque e as arenas, construídos ali do lado de suas casas. Adolescentes que deveriam estar praticando esportes e usufruindo daquilo que seus pais, trabalhadores incansáveis, custearam com muito sacrifício. Alunos que deveriam estar se preparando nas arenas para conquistar medalhas. Mais do que isso, deveriam estar se tornando pessoas honradas e preocupadas com seu entorno. Não como esses políticos que nos afastam de uma sociedade melhor.
Ainda bem que na Zona Norte aprendemos (na marra), a criar nossas próprias ferramentas de transformação sociocultural. Caso do Ponto Cine, o cinema que organizou o debate com Eduardo Paes. Este cinema sim, segue na mesma via dos atletas Olímpicos. Que dão sangue. Lutam com garra e determinação. No final a medalha é o sorriso no rosto das crianças e jovens que frequentam o espaço. Aliás, é bom que se saiba que o Ponto Cine é recordista mundial no número de exibições nacionais. Não há no planeta um cinema que tenha exibido mais produções brasileiras que este. Isso apenas para citar um de seus incríveis feitos.
Convidado à participar da mesa junto ao prefeito e demais colegas, cheguei a questionar a criação de projetos culturais que pudessem dialogar com os jovens da região. Ouvimos de Eduardo Paes que um projeto de cinema (ao qual sugeri) não seria a solução para os altos índices de criminalidade. De pronto concordei, pois não cabe a qualquer projeto social, criar barreiras de fiscalização que coíbam a entrada de armas e drogas nas favelas. Isso é papel do Estado. A nós, cabe o difícil papel de reduzir o dano causado pela falha deixada por quem governa.
Com argumentos de que não se trata apenas de um problema da cidade, mas de todo o país, Eduardo Paes disse que seria necessário entender a “raiz do problema” antes de se assumir o desafio de enfrentá-lo e que existem questões sociais que precisam ser discutidas. Em relação ao seu governo, o prefeito disse que acreditava que com a implantação de escolas em turno único, os alunos passariam o dia inteiro na escola, envolvidos em diversas atividades, de educação, esportes e lazer.
Renan Schuindt é nascido em Costa Barros, Zona Norte do Rio de Janeiro. Jornalista, trabalhou como produtor da TV Band e como repórter da Rádio BandNews FM. Além de ser coordenador do Cine Costa Barros, também é diretor da Outro Lado Produções, onde realiza trabalhos audiovisuais com foco em culturas periféricas.