À luz das crescentes tensões nas favelas do Rio de Janeiro–como Complexo da Maré, Jacarezinho e Complexo do Alemão–a mídia brasileira e mundial está cada vez mais descrevendo a situação da cidade em estado de “guerra”. No dia 2 de setembro, a Casa Pública sediou uma discussão sobre segurança pública e o uso da palavra “guerra” na cobertura das favelas do Rio. O foco da discussão foram as implicações dessa linguagem tanto para as pessoas que vivem em favelas quanto para as que vivem na cidade formal. O jornalista Rogério Daflon moderou a discussão entre a jornalista do El País María Martín, a jornalista e pesquisadora Cecília Olliveira, o ex-comandante da Polícia Militar Coronel Íbis Pereira, e Lidiane Malanquini, da Redes de Desenvolvimento da Maré.
O evento começou com uma exibição do documentário de curta metragem “Bala Perdida“, da Agência Pública, antes que o Coronel Ibis Pereira abrisse a discussão, lembrando ao público que o Brasil engloba muitas das cidades mais perigosas do mundo (19 cidades brasileiras estavam em uma lista de 2016 das 50 cidades mais violentas do mundo). Dessas cidades, disse ele, o Rio de Janeiro tem o maior número anual de mortes violentas de pessoas com idade entre 15 e 29 anos. O coronel argumentou que é importante ver a violência como decorrente da falta de boas políticas de segurança pública: “A gente precisa resistir à tentação de utilizar essa denominação [guerra] e me parece que a gente precisa começar a falar de política pública”.
Lidiane afirmou que o discurso de “guerra” apaga a responsabilidade do governo de desenvolver uma política de segurança pública. Essa narrativa de “guerra”, disse ela, cria uma situação em que “a gente está falando muito de dados, mas a gente tem que falar mais de sentimentos. Como é que você vai quantificar os números de famílias que estão desestabilizadas e desestruturadas por esse processo, como você vai quantificar o sentimento de toda uma rua que vê um jovem morto? Então eu acho que os dados são muito importantes, mas a gente tem que olhar para os dados e pensar o que está por trás dos dados”. Falar sobre a situação atual no Complexo da Maré em termos de “guerra”, continuou Lidiane, legitima as mortes diárias e a violência que ocorrem devido a conflitos armados com a polícia. A experiência diária de violência dos moradores é, supostamente, devido à “guerra às drogas“, que o governo afirma que trará segurança para a população da cidade, mas para quem é essa segurança?
Todos os palestrantes sublinharam o quão crucial é compreender as consequências da linguagem utilizada nas reportagens. Cecília sugeriu que as pessoas costumam usar palavras fortes sem considerar o peso de seu significado, e que “na realidade, a palavra guerra é uma palavra muito entranhada na nossa realidade, principalmente de quem mora no Rio”. Ela explicou que palavras como “heroísmo” e “conquista” derivam de relatos policiais e do vocabulário de guerra dos militares, e foram absorvidos ao longo dos anos na linguagem dos jornalistas e do público em geral: “Então a sociedade fala como o jornal fala, que fala igual como a polícia fala, e vira um círculo”. Cecília disse que os jornais que usam a linguagem de “guerra” estão legitimando os comportamentos de guerra.
Cecília também relatou como é difícil, como repórter, encontrar, através da polícia, o número real de vítimas e tiroteios na cidade. Trabalhando com o projeto Fogo Cruzado, que monitora os confrontos armados e as mortes resultantes, Cecília tem de triangular informações coletadas de três fontes: usuários do aplicativo, jornais e forças armadas. Ela disse que, mesmo dentro da polícia, a informação é descentralizada, resultando em dados contraditórios, que tornam difícil quantificar as repercussões das intervenções policiais nas favelas. Além disso, a desinformação dentro das próprias forças armadas cria uma situação em que até mesmo os policiais frequentemente não possuem informações completas sobre suas missões; Cecília disse que muitas vezes eles não têm uma ideia clara do propósito de suas ações além de “matar o inimigo”.
A ideia de uma guerra na mente das forças armadas e nas páginas dos jornais, continuou o coronel Ibis Pereira, também cria um perfil de pessoas que podem ser mortas na guerra. Ele explicou que as pessoas envolvidas no narcotráfico são consideradas “matáveis”, porque todas elas são parte do crime que essa “guerra” combate. Suas mortes tornam-se justificadas e aceitas publicamente. Ibis Pereira disse que a linguagem centrada na guerra deriva da militarização da polícia na ditadura do Brasil, fenômeno que ainda não foi desmantelado. “Por isso eu acho muito importante mudar esses termos em que essas situações são reportadas”.
Lidiane acrescentou que a palavra “guerra” também vem junto com palavras como “danos colaterais”: “Se uma criança morre dentro de uma escola, é um efeito colateral dessa guerra. Se a gente fala guerra, a gente legitima práticas cotidianas de violação”.
Cecília enfatizou que os jornalistas precisam fazer mais para humanizar as pessoas que vivem em áreas afetadas pela violência: “É realmente como as pessoas são educadas. Então é assim, as pessoas realmente não se importam. As famílias das pessoas que morrem, estão morrendo junto…a mãe de um deles [uma vítima] tentou o suicídio, o irmão dele tentou o suicídio, então é assim, essas coisas ninguém está vendo… a gente tem que parar de contar pessoas como ‘morreu uma pessoa’. Que pessoa? De onde vem? Para onde vai? Quantos anos? E a família? Então é importante humanizar esses números”. Cecília reconheceu as dificuldades enfrentadas pelos repórteres que ficam limitados, pois precisam resumir o mínimo de informações para criar notícias rápidas, o que aumenta o processo de desumanização. Ela disse que uma importante tarefa dos jornalistas é tentar não cair nessa armadilha.
Uma pessoa do público perguntou como essas representações na mídia afetam a sociedade, especificamente as pessoas que vivem nas favelas. Cecília ponderou que muitas vezes os moradores das favelas desistem de falar com a imprensa, pois suas palavras são frequentemente relatadas erroneamente ou inseridas num contexto que contradiz suas opiniões. Ela disse que “você [jornalista] tem que se importar com essa pessoa de fato”. Para combater os preconceitos percebidos, Lidiane explicou que as pessoas na Maré começaram a enviar relatos aos jornais que incluíam informações sobre as conseqüências das operações realizadas pela polícia–como o número de escolas e lojas fechadas–para dar uma imagem diferente e mais completa do conflito armado e das áreas afetadas.
Outra pessoa do público perguntou qual o tipo de linguagem que a mídia deveria usar para evitar o reforço das imagens de “guerra” e “vítimas da guerra”. Lidiane respondeu: “Eu acho que o primeiro passo é que a gente precisa falar da periferia para além das questões de violência”, tais como iniciativas comunitárias e o potencial da população jovem. Ela acredita que, ao se concentrar no tema da violência, os jornalistas reforçam automaticamente o discurso de guerra. Isso fez eco ao argumento de Cecília, segundo o qual os jornais devem cooperar mais com os repórteres das favelas, pois há muitos jornalistas comunitários relatando um tipo completamente diferente de notícias, com o potencial de criar uma imagem diferente das periferias. Ela contou que Michel Silva, jornalista comunitário da Rocinha, disse que, se os jornais tivessem mais repórteres das favelas, eles saberiam que a situação atual não é guerra, e eles entenderiam melhor a dinâmica política.
Ao oferecer uma reflexão final para encerrar o evento, o Coronel Ibis Pereira enfatizou o desafio e a importância para os jornalistas de tentarem transmitir a humanidade junto com a notícia da violência, a fim de afetar emocionalmente o público, em vez de deixá-lo indiferente.