Durante muitos anos o grande Chico Anysio nos fez rir com o personagem “Jovem“, que era um apelido retirado do nome do próprio personagem, Jovelino Venceslau dos Santos. O personagem foi criado baseado em outro personagem interpretado pelo ator Taumaturgo Ferreira na novela Mandala, apresentada na TV Globo em 1987. Mesmo trazendo as características de um jovem branco, carioca, surfista e de classe média, era interessante perceber no personagem estereótipos bastante significativos do ponto de vista da representação desse grupo etário junto à população.
Na prática, o termo “jovem” ainda é muito novo e faz parte de um campo de disputa não só acadêmico como político, com abrangência mundial. E por conta disso, temos recortes bastante diferentes pelo mundo, inclusive no Brasil, que limita as pessoas situadas nesse grupo ora a uma idade entre 15 e 24 anos, ora entre 15 e 29 anos. No Japão, essa faixa se estende até os 35 anos, nada mal, não é mesmo? Nos anos 80, ser jovem ficou em destaque com a campanha “Se liga 16”, que levou os constituintes de 88 a aprovarem o voto facultativo para menores de idade, ao mesmo tempo que não aprovaram a diminuição da maioridade penal e vetaram até os 18 anos o direito de dirigir, fumar, fazer uso de bebida alcoólica e de poder casar sem a permissão dos responsáveis, dentre outras questões. Na mesma constituinte criou-se o ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente, considerado um dos documentos mais avançados da época.
Todavia, os grupos derrotados nunca aceitaram essas conquistas e tentam até hoje remover esses direitos, inclusive os presentes no ECA, que nunca foi posto em prática como deveria. Também por conta disso, em 2016 o Brasil despencou 64 posições no ranking do Kids Rights Index–organização voltada para o acompanhamento dos direitos da criança no mundo–passando da 43ª posição para a 107ª na avaliação. Isso fora os números alarmantes de crianças realizando trabalho infantil e os 17,3 milhões de jovens na pobreza (no caso do Norte e Nordeste, na extrema pobreza), segundo os dados da Fundação Abrinq que comparou a situação da infância no Brasil com as metas que o país assumiu nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU.
Os dados acima só reforçam o que as pesquisas vêm demonstrando em relação às mortes de jovens no país, em particular a de jovens negros. Informações apresentadas no Atlas da Violência esse ano demonstram de forma cabal que nos últimos dez anos a taxa de morte dos jovens negros aumentou em 18,2% e a de não negros diminuiu em 12,2%, que não deixa dúvidas sobre a tese de que há em curso no país um projeto de extermínio de negros pobres e jovens.
Muitos desses números já são conhecidos, mas é sempre bom reforçá-los. No entanto, gostaria de contribuir de outra forma. Penso em usar esse espaço para falarmos do que é ser jovem, principalmente na favela. Compartilhar com vocês o que os números de pobreza e violência escondem sobre essa galera. Alguns podem pensar que ao fazer isso, estaríamos contribuindo para camuflar o crime diário cometidos contra os jovens da favela. Pelo contrário, quero demonstrar o que perdemos com o assassinato de um jovem da favela. Sou fascinado pela capacidade deles de reinventar felicidades, e por como em condições tão adversas eles conseguem viver intensamente uma “vida que vai na sela dessas dores”.
No início dos anos 2000, fui convidado pela Casa da Mulher Trabalhadora, Ibase, Fundação Bento Rubião, Observatório Jovem (UFF), CEDAPS, entre outros, para criar uma rede de juventude na cidade do Rio de Janeiro. Essa experiência foi tão importante pra mim que convidei meus amigos para criarmos uma rede parecida na Maré, a Rede de Jovens da Maré – Jovens Sem Complexo. E fiquei muito impressionado com a força que criamos naquele período. Desde então, venho acompanhado essa construção e me sentindo no dever de ser cronista desse movimento.
Pensar a dinamicidade da juventude com a mesma dinamicidade política, social, econômica e cultural da favela é um grande desafio. Apenas reconhecer seus potenciais não é suficiente. Contribuir para a ampliação do olhar sobre esse grupo é minha missão e espero poder sensibilizar outras pessoas a se juntarem a mim nessa caminhada. Para mim ainda não está claro se ser jovem refere-se a um enquadramento etário (arbitrário) entre 15 e 29 anos, pois acredito que é muito difícil igualar o perfil de jovens de lugares tão distintos como os do Brasil em um recorte simples como a idade. Pois o que é ser jovem para alguém que, como eu, começou a trabalhar com nove anos e entrou para a universidade aos 29, tendo como colegas outros jovens com 17 anos que conhecem parte da Europa, falam dois idiomas estrangeiros e pretendem começar a trabalhar só depois do mestrado?
Nesse sentido, tudo que eu escrevo aqui traz em si a ideia do inacabado, da liberdade, da independência, uma combinação da emergência com a despreocupação, da alegria e tristeza com a apatia, do natural com o sobrenatural, da dor com o prazer, da curiosidade em apreender o “novo” com a experiência de que isso nem sempre será possível. Meu compromisso é com o que me faz sentir vivo, pois essa é a característica da juventude que mais me seduz. Quanto à preocupação com o que é ser jovem, prefiro pensar assim: ser jovem, “a dor e a delicia de ser o que é”, pois como diria o personagem de Chico Anysio: “jovem é atitude, jovem é transformação”, “jovem é outro papo, pô, mãe”.
Matéria escrita por Lourenço Cezar e produzida por parceria entre RioOnWatch e Fala Manguinhos!. Lourenço é morador do Complexo da Maré há 40 anos. Está fazendo o mestrado em Educação na UFRJ, é coordenador do Departamento de Geografia e Meio Ambiente da Faculdade de Caxias, e é diretor do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (CEASM) além do Museu da Maré.
Como prática de comunicação comunitária produzida por e para Manguinhos, o Fala Manguinhos! tem em sua origem a defesa dos direitos humanos e ambientais, promoção de cidadania e saúde com a participação direta dos moradores e moradoras nas decisões que envolvem a Agência de Comunicação Comunitária de Manguinhos, a partir dos encontros do grupo de comunicação do Conselho Comunitário. Siga o Fala Manguinhos pelo Facebook aqui.