A Festa Literária das Periferias (FLUP), realizou neste ano a sua sexta edição do evento, nesta vez no Vidigal, Zona Sul, com o tema “Revolução, escolha a sua”, que busca dialogar com os 100 anos da Revolução Russa e os 50 anos de Maio de 1968. O homenageado desta edição foi o dramaturgo e ator Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, artista militante preocupado com questões sociais que teve algumas de suas obras censuradas durante a ditadura militar.
O evento, que ocorreu do dia 10 a 15 de novembro, contou com a presença de inúmeras figuras nacionais e internacionais importantes do campo artístico, acadêmico e midiático, dentre eles filósofa política, ativista e feminista Djamila Ribeiro; escritor e autor de Cidade de Deus, Paulo Lins; jornalista e cientista político Leonardo Sakamoto; a antropóloga francesa Françoise Vergés; ativista queer francês Sam Bourcier; referência mundial em poesia falada Saul Williams; e cineasta francês Laurent Cantet.
A FLUP sediou diversas atividades como o Rio Poetry Slam, competição de poesia falada; a FLUP Pensa, que busca formar autores, revelar novos talentos e publicar um livro com os melhores trabalhos; e a FLUP Parque, gincana artística e literária com as crianças.
Nesta edição, a FLUP Parque foi além e, através da “Gincana da Memória do Vidigal”–coordenada por Bárbara Nascimento–realizou diversas atividades para resgatar as memórias do Vidigal, dando protagonismo aos moradores da comunidade. Bárbara, professora e pesquisadora, foi convidada por Júlio Ludemir, idealizador da FLUP, para participar do evento e ser curadora da FLUP Parque. Dessa forma, ela pensou em articular a sua pesquisa acadêmica e pessoal sobre memória com a atividade da FLUP Parque no Vidigal.
“O primeiro desafio foi o seguinte: a FLUP Parque, que é essa modalidade da FLUP com crianças, sempre atua em escolas. É uma disputa intercolegial. No caso do Vidigal isso foi difícil, primeiro porque são poucas escolas… Aí eu falei assim, cara se não dá pra fazer uma competição intercolegial, vamos fazer uma disputa dentro do Vidigal”, conta Bárbara.
Sendo assim, Bárbara decidiu que dividiria as equipes da gincana de acordo com as áreas da favela. O Vidigal foi dividido em 5 áreas diferentes, cada uma contando com um líder e uma equipe de crianças e jovens para cumprir as tarefas de resgate da memória de cada área. Esta divisão foi feita entre a área conhecida do 314, a Pedrinha, a Principal (trecho da via principal, Avenida Presidente João Goulart), Rua Nova e Rua Três (área localizada na parte baixa) e a Área do Alto (que englobou o Arvrão, Jocabal, Alto e 25).
“E o mais bacana é que a gente, além de dividir por áreas, a gente contemplou as instituições. Instituto Todos na Luta, as escolas locais, as creches, Nós do Morro, capoeira, futebol”, conta Bárbara, e complementa: “O resultado foi incrível”.
Os líderes escolhidos para cada equipe são moradores do Vidigal, e, por isso, já apresentavam uma narrativa local que combinava com a proposta da gincana. A proposta era que cada equipe realizasse uma pesquisa–iniciada antes do evento–com os moradores de suas áreas para contar a história local. Esta apresentação deveria favorecer a narrativa dos moradores sobre as transformações urbanas, histórico de resistência dos moradores e de remoções, atrelando também a representatividade musical e artística. A gincana, que durou 3 dias, teve várias atividades: cada equipe deveria apresentar um ritmo musical de sua área, elaborar um tapete e pipas que contassem o histórico local, ter participação de cartunistas, entre outras atividades artísticas e literárias.
Cida Costa, poeta e integrante do grupo Nós do Morro, conta um pouco sobre a sua experiência na gincana: “Eu estava representando a Pedrinha. E nisso eu fiz essa parceria com esses grupos, com essas escolas, para contar essa história dessa área específica, que eu peguei desde o Favela-Bairro em 98, 99, até mais ou menos essa década”.
Moradora da Pedrinha e líder da equipe, ela comenta o quanto o resgate histórico da área a emocionou: “O histórico da Pedrinha me emocionou profundamente, e acho que não só a mim, acho que aos amigos, aos companheiros e ao Vidigal, porque é uma área que sempre foi vista como A Faixa de Gaza. E de repente, a gente para de verdade pra mergulhar em um histórico e contar a história de uma localidade”.
Durante o período de pesquisa, a sua equipe foi atrás de fotos antigas dos moradores locais que retratassem como era a Pedrinha de antigamente. Além disso, buscou retratar figuras históricas da área e o ritmo musical que marcou o histórico local: o funk.
“Principalmente na Pedrinha, porque o baile funk na época era no Largo do Santinho, por isso que ela ficou com o ritmo funk”, conta Bárbara. Cida complementa dizendo que “o Largo do Santinho é a boca da entrada da Pedrinha. E esse baile funk era muito, muito famoso… Subia gente de fora pra curtir o baile do Largo do Santinho. E aquela galera em peso da Pedrinha se preparava a semana inteira”.
Sérgio Henrique, integrante do grupo Nós do Morro e realizador de trabalhos sociais ligados à cultura, e Robert Pacheco, professor da escolinha de futebol feminino no Vidigal, foram os líderes da equipe que representou a área do alto do Vidigal. Para eles, a atividade foi importante para resgatar e descobrir histórias da área, integrar os moradores e servir como base para lutas e atividades futuras.
“E aí nessa pesquisa de correr atrás da comunidade, bater de porta em porta, até mesmo nós que fomos criados aqui no Vidigal, descobrimos diversas coisas: que tinha uma nascente do lado da nossa casa, que o povo não tinha encanamento e ia para uma nascente lá em cima, carregava baldes no cabo de vassoura e ia passando, revezando sabe, fazia aquela fila de balde em balde de água”, conta Sérgio.
Além disso, a pesquisa levantou dois acontecimentos marcantes para os moradores da região: um deslizamento de terra em 1996 que matou 21 pessoas e o rolamento de uma pedra que matou moradores na área da 25. As famílias atingidas não foram remuneradas e não tiveram ajuda do poder público para reconstruir suas vidas. A construção da Vila Olímpica, um dos principais locais do Vidigal para atividades esportivas e comunitárias, e a criação do Sitiê, um antigo lixão que foi transformado em parque ecológico local por moradores, também foram retratados na pesquisa realizada pela equipe. Em relação aos acontecimentos mais recentes, esta equipe também retratou o processo de gentrificação do Vidigal, com o aumento do custo de vida, aumento do preço dos imóveis, chegada de novos moradores e saída de moradores antigos que atinge principalmente essa localidade.
Já Ninho de Paula, professor de capoeira, ficou encarregado de liderar a equipe que deveria resgatar a história da área do 314. “Eu falei sobre o 314, uma área simbólica nesse processo dos 40 anos de resistência contra a remoção”, comenta Ninho.
A localidade é bastante importante por ter sido por onde começaram as ocupações do Vidigal. Além disso, foi a área visitada pelo Papa na década de 80 e onde se encontram importantes lideranças históricas locais das lutas contra as remoções. Para representar a visita do Papa, momento importante para o Vidigal e para o 314, foi elaborada uma encenação da visita por uma criança junto com Armando, liderança da Associação de Moradores na luta contra as remoções no passado, que cantou uma música.
Enquanto isso, a área da Principal foi representada pela equipe liderada por Júlia Giglio, advogada e treinadora na ONG Todos na Luta, que retratou principalmente a década de 80.
“Foi a época que tiveram muitos mutirões, que chegou a água, projetos de infraestrutura. E como lá no projeto [Todos na Luta] também a gente já fez vários mutirões agora nos anos 10, então a gente fez uma associação de uma coisa com a outra… Principalmente pra dizer que a união foi importante nos anos 80, a solidariedade foi importante, e ela continua sendo importante… Porque acho que é tempo de resgatar união, né?”, comenta Júlia.
A pesquisa histórica da área também atrelou a atuação da ONG Todos na Luta com o histórico da área. Criada por seu pai, Raff Giglio, o Instituto Todos na Luta busca a prática da educação através do esporte para as crianças da favela, e já revelou talentos locais promissores. Além disso, a equipe de Júlia escolheu o Black Music como ritmo musical, representado através de uma coreografia apresentada pelas crianças da equipe.
“É a primeira vez, em 39 anos trabalhando com arte, que eu vi o Vidigal sendo contado dessa maneira com todas as áreas… Essa separação dividida por área que nós chamamos de gincana literária, fez com que mobilizasse toda a comunidade, porque nós fizemos um evento transversal, não só com as escolas mas com todas as instituições”, resume Ninho.
Para toda a equipe, o evento foi importante para resgatar histórias, laços comunitários e para inspirar projetos futuros de educação e cultura no Vidigal.
“Todos nós vencemos nessa gincana, nessa parceria com a FLUP, nesse trabalho de memória, nesse trabalho de pesquisa. Daqui desse trabalho estamos tendo várias ideias–nas nossas cabeças que estão fervilhando–da ramificação que a gente pode fazer desse trabalho”, comenta Cida Costa.
“Que as crianças, hoje em dia, elas possam ter um olhar melhor sobre o Vidigal. Um aprendizado para o futuro delas”, deseja Robert Pacheco, e complementa: “Tomara que daqui saiam grandes escritores, poetas”.