5 de fevereiro, segunda-feira
Começam as chuvas do fim do verão no Rio, sem grandes impactos estruturais. Com pouca força, a chuva é celebrada por diminuir um pouco a temperatura. Para Cecília Oliveira, jornalista e uma das coordenadoras do aplicativo Fogo Cruzado, que monitora tiroteios no Rio de Janeiro, a chuva é celebrada ainda por outro motivo:
Janeiro foi FODA. Semana passada foi só Jesus na causa. Muito, muito tiro. Muitas horas seguidas de tiroteios. Tiroteios que começavam antes das 6 horas da manhã e estendiam até o início da noite. Muita bala perdida. Muito morador em pânico. Fevereiro começou no mesmo ritmo. Insano. Esse fim de semana morreu gente pra tudo quanto é lado. Também em blocos de carnaval… O trabalho no Fogo Cruzado App foi tenso.
Mas hoje está chovendo. Aleluia! Impressionante como as balas acalmam. É foda. A Chuva é a melhor política de segurança do Rio.
14 de fevereiro, quarta-feira – 15 de fevereiro, quinta-feira
Começando na noite de quarta-feira de cinzas e continuando até as primeiras horas da manhã de quinta, chuvas e ventos muito fortes colocam a cidade em estágio de crise. Trata-se de uma das maiores chuvas já registradas pelo Centro de Operações da Prefeitura.
Noemy Farneze, moradora da Cidade de Deus e editora chefe do portal CDD na Web, diz que os relatos começaram na página do Facebook, no Whatsapp e no telefone assim que a chuva começou. “Trata-se de uma comunidade com mais de 60 mil habitantes e áreas de pobreza extrema, que foram consequentemente as áreas mais afetadas. Muita gente perdeu tudo, móveis, roupas e comidas.”
Nathan Borges, nascido e criado na comunidade, relembra aquela noite: “Eu e minha mãe estávamos assistindo a apuração, depois o jogo do Vasco. Tudo normal. Aí começou a chover. Acho que eram sete horas. Uma chuva forte, de verão. Mas normal. O rio tava cheio, mas não tinha transbordado ainda. Mas a favela tava cheia de lixo. Os garis estavam em paralisação, algo assim, por causa do carnaval. Aí, claro, alagou. Mas foi muito rápido. Muito muito rápido. Minha mãe já tinha passado pela enchente de 96 e ficou no desespero ‘Vai alagar, vai alagar, sobe as coisas’. Quando começou a entrar água ela desabou, começou a chorar”.
Ainda segundo Nathan: “Minha avó não anda, subimos com ela correndo pro segundo andar, a água já estava no segundo andar. Quando eu desci pra buscar meus documentos, a água já estava no joelho. Foi tipo um minuto e meio depois. Quando eu voltei pra desligar o disjuntor, pra ninguém levar choque [se a luz voltasse], ela tava na cintura. Dentro de casa! Na rua tava no meio da minha barriga. E olha que eu tenho 1,71! Era muito lixo. Rato, barata. Foi bem tenso.”
A preocupação com desligar o disjuntor é perversa e desnuda mais uma dimensão da desigualdade que assola a cidade–em outras partes da cidade ela não faz parte do imaginário dos moradores. “Por ‘sorte’ a luz acabou antes da enchente e evitou que houvesse energização elétrica na água”, confirma Noemy.
Às 3h da madrugada a luz retorna na maioria das casas, mas alguns lugares onde árvores caíram sobre a fiação ficaram sem luz por mais de 24 horas. E a falta de luz não é o único prejuízo que os moradores enfrentam: “No dia seguinte nós descemos pra ver. A minha casa fica um degrau pra baixo. Então a gente teve que tirar a água. Já tinha baixado a água na rua, mas tivemos que abrir a porta e tirar a água de dentro de casa [que não escoou]. Aí era um monte de lixo. Geladeira virou. Minha cama, que é de puxar, eu perdi. O guarda-roupa ficou pela metade, caindo”, completa Nathan, mas sem parecer se deixar abater.
Pelo contrário, ele demonstra uma determinação excepcional para um menino de 17 anos: “Agora tá mais tranquilo. Galera ajudou, a família e os amigos. A gente só conseguiu limpar tudo três dias depois. Conseguimos mobilizar cinco pessoas.” Mesmo diante da demanda de ajudar a família e estudar, Nathan ainda é professor de teatro na Associação Semente da Vida (ASVI) e trabalha como produtor de um DJ também da CDD.
Para aqueles que não tiveram a sorte de contar com a ajuda de familiares e amigos, os integrantes da CDD na Web e outros moradores se organizaram para recolher doações. “Intensificamos as ajudas para a região do Brejo, atrás do Caratê, que é a região mais precária da comunidade e lá pudemos doar não só comida, roupa e água, mas também fraldas e leite.”
Não é só na Cidade de Deus que a chuva teve consequências dramáticas. Quatro pessoas morreram e cerca de 2000 ficam desabrigadas na cidade do Rio de Janeiro. O maior número de desabrigados está no Complexo do Alemão. Só na localidade do Parque Everest, são 250 famílias atendidas pela Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos, 41 casas interditadas e um adolescente morto vítima de desabamento. Na parte baixa da comunidade, a lama transborda do Rio Faria Timbó–não pela primeira vez.
Não por coincidência, as ocorrências de famílias desalojadas segue um padrão territorial: concentram-se nas Zonas Norte e Oeste e têm maior frequência em favelas, onde a infraestrutura que deveria ser provida pelo Estado é mais frágil. Além do Alemão, são 120 famílias no Jardim Maravilha, um loteamento residencial em Campo Grande, quatro famílias no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, 16 no Jacarezinho, e 25 na Serrinha em Madureira. Colchonetes e cestas básicas estão sendo distribuídos e algumas famílias pedem acolhimento às autoridades.
Para além das famílias desalojadas, o abastecimento de luz e de água é interrompido em diversas partes da cidade. O Prefeito Marcelo Crivella, em viagem polêmica à Europa naquele momento, se disse estar acompanhando a situação à distância.
Enquanto isso, moradores se organizam para receber e entregar doações. No Jacarezinho, moradores começam a oferecer o que têm para doar em um grupo da comunidade antes mesmo de aparecerem outros moradores pedindo doações. No Alemão, integrantes do jornal Voz das Comunidades recolhem água e produtos de higiene. Em Acari, o Coletivo Fala Akari e o Centro Cultural Poeta Deley de Acari criam um Grupo de Trabalho de Emergência para recolher cestas básicas, roupas de cama e vestuário para mais de 100 famílias afetadas pela chuva. Em Manguinhos, a diretora do Colégio Clóvis Monteiro recolhe também doações.
16 de fevereiro, sexta-feira
Moradores de Muzema, na Zona Oeste, denunciam que mais de um dia depois a luz ainda não foi restabelecida: “Já são mais de 24 horas que estamos sem energia na nossa casa […]. Ninguém atende. A Light, a gente liga direto e ninguém atende”, diz um morador. Segundo a reportagem, a Light informa não ter data para corrigir os problemas. Moradores da Cidade de Deus fecham vias da Avenida Ayrton Senna em protesto contra a falta de energia.
A prefeitura estima que 100.000 pessoas ainda estejam sem luz. A seletividade da empresa Light fica clara na rapidez com que o serviço é retomado em bairros da Zona Sul, em comparação com os das Zonas Norte e Oeste.
Moradores da Vila Kennedy ocupam trechos da Avenida Brasil em protesto devido ao não restabelecimento da energia. Outros continuam desabrigados. As denúncias do descaso da Light e da falta de preparo da cidade para lidar com os efeitos da chuva, no entanto, dão lugar nos jornais ao anúncio da intervenção militar federal.
17 de fevereiro, sábado
Crivella volta de viagem e diz que o Rio de Janeiro reagiu bem às chuvas. Diante do silêncio dos jornais para além da declaração de Crivella, Luiz Baltar, fotógrafo e integrante do coletivo Favela em Foco, posta em seu Facebook:
Não está na mídia, por isso não é pauta das postagens do Facebook, mas existem centenas de famílias atingidas pelo temporal, que perderam tudo e ainda estão sem luz.
Diversas comunidades e favelas do Rio estão sofrendo com a tragédia provocada pelas chuvas da madrugada de quinta-feira. Alemão, Manguinhos, Jacaré, ruas próximas a Avenida dos Democráticos e todo entorno do Rio Faria Timbó foram atingidos, são centenas de famílias que perderam tudo. Em alguns pontos a água passou dos 2 metros, derrubando muros e paredes. Muita lama e lixo acumulado nas ruas esperando a ação das poucas equipes da Comlurb. A imprensa não está dando a devida atenção para essa tragédia e os atingidos continuam desamparados contando apenas com a solidariedade da sociedade organizada. Existem diversos locais que estão recebendo doações.
19 de fevereiro, segunda-feira
A organização Meu Rio lança campanha “Chuva de Solidariedade” para arrecadar doações de alimentos, água e móveis para famílias que perderam móveis e casas nas favelas de Acari, Alemão, Cidade de Deus e Manguinhos. Além de arrecadar doações, a campanha visa conectar pessoas que pudessem recebê-las e levá-las para as comunidades. O Meu Rio promete, ainda, continuar acompanhando os investimentos da prefeitura em obras de contenção de tragédias.
20 de fevereiro, terça-feira
A vereadora Marielle Franco faz seu último discurso na Câmara dos Vereadores do Rio questionando a intervenção militar. Além de demonstrar preocupação sobre “para onde a ponta do fuzil vai estar apontada”, ela também critica a incapacidade de priorizar esforços por parte do governo em relação às consequências das chuvas: “Eu quero saber qual é a responsabilidade dos legisladores, e que não estão atentando para a gravidade do momento, que se fala na intervenção federal, na intervenção militar–mas a gente não passou agora por um problema que deveria ter tido uma intervenção direta nessa situação na cidade do Rio de Janeiro com a última chuva de quinta-feira?! A situação de calamidade, aonde se apresenta que no último ano não ocorreu a intervenção [de investimentos em mitigação de risco] que deveria ter sido feita!”.
21 de fevereiro, quarta-feira
Novas chuvas castigam o Rio. Novamente, Crivella encontra-se fora da cidade. Está em Brasília pedindo recursos para “realização de projetos sociais em áreas conflagradas pelo crime organizado“, argumentando que a intervenção militar não era suficiente, mas era preciso investir também na área social. Até o momento, não se viu investimentos nas áreas que ele considera “conflagradas pelo crime organizado”, sejam eles sociais ou de infraestrutura para conter os efeitos das chuvas.
Diante das novas chuvas, o prefeito faz até piada: “Lá em São Paulo também tem enchente. Vão até lançar um programa novo: o Balsa Família!”.
4 de abril, quarta-feira
Sete semanas depois do desastre, a prefeitura do Rio libera aluguel social para 270 famílias no Complexo do Alemão, em sua maioria do Parque Everest, resultado da luta da Comissão de Moradia da comunidade, que articula a demanda pelos alugueis desde a época das obras do PAC. “Nossa luta maior é contra o governo do Estado. Mas aí teve a chuva do dia 15 e o Parque Everest foi muito atingido. Essas famílias estão sendo removidas pela prefeitura”, diz Camila Santos, moradora do Alemão e integrante da Comissão que foi removida da Favelinha da Skol por conta das obras do PAC.
“O Parque Everest existe há 25 anos e há 25 anos sofre com as enchentes. Eu morei lá durante algum tempo. As famílias não querem ser removidas, porque têm uma história de vida ali. Mas são 25 anos perdendo tudo. A demanda é por moradia digna. A prefeitura diz que vai construir apartamentos aqui mesmo ao longo da Avenida Itaoca. Mas enquanto eles são construídos o povo precisa ser incluído no aluguel social. Assim podem escolher onde morar”, diz Camila.
O pagamento será feito em conta do Banco do Brasil e não da Caixa Econômica, como é feito das famílias que já recebiam o benefício, criando um obstáculo burocrático ao acesso ao dinheiro até essas pessoas terem tempo disponível para abrir a conta. “É um processo. Não cadastra a pessoa e no mesmo dia chega o aluguel, mesmo se a casa tiver desabado. Só começa a receber meses depois. A Defesa Civil veio, deu laudo de interdição para todo mundo. Aí o Crivella viu que não tinha jeito. No dia 6 de março ele anunciou que ia remover a comunidade. Aí a SMH [Secretaria Municipal de Habitação] veio na comunidade para começar a cadastrar [para receber o aluguel social]. Não é simples, tem que ir de casa em casa, tem que ter todos os documentos, se for casado tem que ter os documentos do companheiro ou companheira também. Tem que tirar foto, medir a casa. Demora muito. Parece que tudo é feito para atrasar, porque é pra pobre”, coloca Camila.
Até o momento de publicação da matéria, as famílias atingidas do Parque Everest ainda não tinham recebido o benefício. A maioria está em casa de familiares. Na casa de Nathan, só uma lembrança: “Tá com marca d’água na parede ainda, tem que pintar”. A temporada das grandes chuvas passou, mas sem obras públicas de contenção de encostas e drenagem, coleta de lixo regular, mecanismos de resposta rápida eficientes, entre outros, os mesmos efeitos são esperados nas próximas chuvas, como ocorreram nos anos anteriores.