Era junho de 2014, jogo Brasil x Camarões na Copa do Mundo em um restaurante na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro. Kelson, morador negro do Complexo do Alemão senta à mesa para assistir o jogo com os amigos. Na época, como ele mesmo diz, ainda era o “neguinho sofisticado” ou um “preto domesticado”, pois ainda sentia necessidade de se encaixar no “quadrado branco”. Foi então que, diante de um momento de esgotamento com o Brasil e com o momento comercial da Copa do Mundo, decidiu torcer para Camarões.
Infeliz ideia que eu tive, torcer para Camarões no meio do Nobrello […] Camarões fez um gol e eu gritei ‘Camarões!’. Eu fiz isso. E uma senhora branca loira se levantou, e ela começou a berrar uma série de coisas racistas […] metralhou uma série de comentários extremamente racistas. Foi nesse momento que eu descobri que eu era preto real, esse foi o grande momento da minha vida. Esse dia mudou a minha vida.
Kelson Succi tem 24 anos, é ator, fez escola técnica para audiovisual no Spetaculu (ONG) e ganhou bolsa no O Tablado, onde começou a estudar teatro e a atuar. Além disso, foi selecionado no ano passado para participar de um projeto de residência artística em Londres, momento importante para construir o seu projeto “Cuidado Com Neguin”.
O projeto começou com a necessidade de se construir enquanto artista, se colocando no palco e nos espaços enquanto negro e favelado. Foi então que começou a elaborar a sua primeira intervenção: um lambe-lambe que tem escrito com fonte de destaque “CUIDADO COM NEGUIN”, para acionar a primeira reação que o passante tem através do imaginário social que essas palavras, juntas, constroem. No entanto, embaixo da frase de impacto existia uma outra, que deixava claro a intenção de sua intervenção: “Cuidado com neguin, ele é realmente foda”. Ou “Cuidado com neguin, ele entrou para faculdade”. Kelson deixava claro que “não era sobre o neguinho [que] vai te assaltar”.
Foi então que decidiu levar isso para o palco como ator, construindo performances teatrais a partir de suas experiências de vida enquanto um corpo preto na cidade. Sua primeira performance se chama “Rolê Bala Perdida” e retrata a sua necessidade de falar sobre como é para esse corpo negro se deslocar e ocupar os espaços.
“Ela [a performance] tenta mostrar que a gente adoraria falar sobre outras coisas que não só sobre estatísticas, ou sobre o quanto de perrengue a gente passa no rolê. Mas que para a gente chegar e falar sobre coisas rotineiras para as pessoas, a gente tem todo esse rolê até falar disso. A gente pode falar disso, mas tem toda essa bagagem, que é o nosso rolê cotidiano”, explica Kelson.
Desde então, Kelson mergulhou no processo de perceber sensivelmente suas experiências diárias, escrever sobre elas e construir suas performances, se aperfeiçoando enquanto ator. Sua arte é política, e tem o objetivo de desnaturalizar racismos cotidianos, confrontar a realidade, questionar e assumir o seu papel de agente transformador que também se transforma com o processo artístico. Os acontecimentos e os desgastes em sua vida viram combustível para o seu poder de criação. O seu material de trabalho é o seu corpo no mundo. E não só o seu, mas os corpos negros no geral, os inúmeros “neguinhos” que existem na cidade. Dessa forma, torna sua arte uma produção coletiva, deixando de ser autoral para ser sobre a diversidade dos corpos negros.
Eu começo a ver o conflito em relação ao corpo do outro. Eu começo a enxergar meu corpo em relação à arquitetura da cidade, ao asfalto que eu piso, ao barro que eu piso […] O meu corpo em relação ao da senhorinha branca que puxa a bolsa pra mim no meio da rua, na calçada estreita de Botafogo. […] Eu calculo quantos passos eu tenho que dar para não assustar aquela senhora. O tempo inteiro, isso é automaticamente, em um segundo eu já penso quantos passos eu tenho que dar para direita e virar aqui na esquerda e passar por ela sem ter que assustá-la […] Então eu comecei a reparar nesses cálculos que a nossa cabeça faz automaticamente, o quanto a gente acostuma com eles. […] Eu fui vendo a poética que tinha dentro desse abismo social, no meu corpo preto em relação ao corpo do branco e no meu corpo preto em relação ao corpo preto do outro. Por que existe esse lugar né? O da senhora branca que puxa a bolsa para você, mas também existe esse lugar do segurança preto que te discrimina, do policial preto que te dá dura.
Portanto, seu movimento artístico também questiona o trabalho psicológico que é, para o negro, estar nos lugares e ocupar a cidade. O desgaste emocional corriqueiro, que expele certos grupos de pessoas de certos lugares e evidencia mais um abismo entre o corpo negro e o corpo branco.
“O preto no quadrado branco. Fala um pouco sobre essa arquitetura que é muito branca, que é muito clara, que esclarece muitas ideias. Quando a gente entra nesses espaços, parece que essa arquitetura muito branca repele a gente. O nosso corpo preto fica muito em exposição ali dentro. Então a gente acaba se sentindo alvo do quadrado branco e a gente é repelido. Essa arquitetura é feita para expelir a gente”, diz ao explicar sobre uma das suas performances que critica a produção dos espaços da cidade, levantando duas importantes questões: Como o espaço urbano é construído? Para quem ele é construído?
A proposta da peça “Cuidado Com Neguin” é reunir algumas de suas performances, se adaptando ao momento e ao lugar. Por exemplo, quando Marielle foi assassinada, Kelson adaptou sua apresentação para abordar o acontecimento e levantar discussões que dialogavam com o momento. Além disso, sua peça é um processo, mutável e adaptável também ao amadurecimento de Kelson enquanto ator e negro. Um processo de construção ininterrupta que caminha conforme o diálogo com a sociedade vai sendo estabelecido.
“Hoje em dia eu sou muito mais preto do que eu era, definitivamente. E eu acho que eu tenho que empretecer muito ainda”, diz.
Kelson e sua equipe estão realizando uma campanha de financiamento coletivo na plataforma Catarse, que dura até este sábado, 16 de junho, para arcar com os custos básicos da produção. No entanto, a peça já tem a estreia da primeira temporada definida: dia 2 de agosto na Casa Rio, Botafogo. Kelson também fará apresentações em muitos outros lugares e está aberto a convites. Seu objetivo? Fazer a obra circular pelos mais variados espaços, desde a favela até o espaço branco elitizado. A bilheteria será aberta para tornar sua obra acessível, garantindo, com a gratuidade, a presença daqueles para quem se deslocar pela cidade já significa muito gasto.
Para contribuir com o projeto Cuidado Com o projeto Cuidado Com o Neguim clique aqui.