Letalidade no Rio e na Baixada Demanda a Construção de Um ‘Pacto Pela Vida’

Seminário Um Pacto Pela Vida

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Sujeitos matáveis, criminalizados pela pobreza, indignos de vida. Não importa os dados produzidos pelas pesquisas acadêmicas e tampouco os gritos de ativistas ou movimentos sociais de direitos humanos, a impressão que se tem é que políticas públicas que poderiam interferir diretamente na redução dos homicídios em massa da população negra, periférica e favelada, protagonizados por agentes do Estado, estacionam em um grau de ineficiência traduzida na falta de rigor de suas aplicações pelas autoridades e poder público. As sensações percebidas por militantes de causas minoritárias é um misto de perplexidade e desânimo, embora tentativas de se discutir a violência por quem sofre as arbitrariedades das forças de segurança permaneçam legítimas.

Um exemplo desse cenário aconteceu em dois eventos na última quinta-feira, dia 5 de julho, em territórios opostos da cidade do Rio de Janeiro. No Complexo da Maré, o luto e as lutas de mães que perderam seus filhos nas mãos da máquina de matar do Estado converteu-se na intenção de formalizar um processo judicial inédito. Pela primeira vez, um conjunto de favelas está propondo ao Ministério Público, com o apoio da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, uma ação civil pública para que as operações militares nas comunidades passem a ter letalidade zero. Por isso, o nome do evento é “Perturbando o Juízo“, em alusão à demanda que está sendo feita ao poder judiciário. Para o debate acerca da proposta, foram convidados o secretário estadual de segurança em exercício, o General Richard Nunes, além de representantes do Ministério Público, da Polícia Militar e da Polícia Civil para debate em um galpão cultural da comunidade. Nenhum deles apareceu.

Mais tarde no mesmo dia, na Gávea, bairro nobre da Zona Sul carioca, com um dos maiores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do país, o Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio organizava o debate Um Pacto pela Vida – Como construí-lo? Em que representantes de nove organizações se debruçaram sobre a questão de como abordar esse desafio e suas diversas implicações. Alguns dos convidados também haviam participado do debate na Maré e, talvez, impactados com o que testemunharam anteriormente, teceram avaliações mais críticas sobre os rumos a serem norteados.

O coordenador executivo do Fórum Grita Baixada, Adriano de Araújo, um dos primeiros a ter a palavra, disse que era preciso entender o significado essencial de pacto pela vida. A provocação visava externalizar dúvidas sobre se todas as vidas seriam contempladas num eventual pacto ou existiria a possibilidade de algumas (mais privilegiadas talvez?) se sobressaírem em detrimento de outras. “Sou morador, nascido e criado na Baixada Fluminense e sempre ouvimos falar de chacinas, grupo de extermínio. Deveria ser pensado um pacto social, sem dúvida. Mas será que a vida dos negros, pobres em sua grande maioria, que representam a maior fatia de moradores da Baixada Fluminense, importam aos gestores públicos? Eles mesmos alimentam essa máquina de matar. Não comparecem a determinados espaços, dão respostas evasivas sobre suas atuações. A própria sociedade não se motiva, não se mobiliza. Determinadas mortes provocam certa repercussão e indignação até ocorrer a próxima chacina”, diz Adriano.

Baixada, a campeã de várias letalidades

Falar sobre a violência na Baixada Fluminense está longe de ser uma novidade. Não importa a esfera governamental,  pouco ou nada se fez nas treze cidades que compõem uma região que abriga mais de 3 milhões de habitantes, inserida em uma dinâmica de violência que atravessa décadas. Nunca se efetivou uma política pública na área de segurança de forma estruturada como foi a implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)–ainda que essas tenham mais servido de maquiagem política para resguardar os megaeventos esportivos, tais como os Jogos Olímpicos (2016), a Copa do Mundo (2014) e a Copa das Confederações (2013), do que uma política efetiva voltada para a preservação das vidas dos moradores.

A cidade de Queimados, por exemplo, foi apontada como o município mais violento do país. O dado é do Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado mês passado. De acordo com o estudo, o município tem taxa de 134,9 mortes violentas para cada 100.000 habitantes. A pesquisa considera mortes violentas a soma de agressões, intervenções legais e mortes violentas com causa indeterminada, tomando como referência o município de residência da vítima. Os dados analisados são de 2016, último ano disponível no Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde (SIM-DATASUS).

Entretanto, se forem considerados os primeiros sete meses de 2014, época em que o governo do estado ainda trabalhava com a perspectiva das Áreas de Segurança Pública Integrada (AISPs), cinco das seis AISPs da Baixada obtiveram os maiores índices do estado de letalidade violenta, a soma dos homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte, roubos seguidos de morte e autos de resistência, para cada 100.000 habitantes. Entre 2006 e 2013 houve um total de 13.163 homicídios na Baixada–uma morte a cada cinco horas.

Ministério Público reconhece falhas

Voltando ao seminário na PUC, a assessora de direitos humanos e minorias do Ministério Público (MP), Eliane Pereira, trouxe alguns esclarecimentos sobre o que o órgão tem feito em relação a esse cenário caótico. A promotora afirmou que o MP, num “processo de auto-avaliação”, segundo suas próprias palavras, reconheceu que está aquém de suas atribuições em exercer o controle da atividade policial. “No que se refere a privação de liberdades, por exemplo, não conseguimos impedir que as unidades de medidas socioeducativas para menores em conflito com a lei se transformassem em verdadeiros cárceres militarizados, decorrendo daí casos de morte. A partir dessa análise, acreditamos que precisamos ter mais perto os movimentos sociais e os movimentos precisam ocupar o MP. Precisamos ter racionalidade e método para estabelecer frentes de trabalho com resultados mais efetivos. Talvez tenhamos demorado a nos reinventar, a entrar nessa perspectiva de saber nos criticar institucionalmente”, disse Eliane.

O coordenador do iBASE, Itamar Silva, foi outro representante da sociedade civil que analisou criticamente a apatia que domina diversos setores da sociedade em relação à violência, especialmente àquela decorrente de agentes do Estado em favelas. E criticou ações isoladas, mesmo as progressistas. “Mortes como a do estudante Marcos Vinícius, da Maré, não causam mais tanta mobilização. E, pra piorar, vivemos debaixo de uma espécie de guarda-chuva onde cada um se protege como pode. Há uma fragmentação das lutas”, disse ele.

Para a cientista social Silvia Ramos, do Centro de Estudos em Segurança Pública e Cidadania (CESeC) da Universidade Cândido Mendes, e coordenadora do Observatório da Intervenção, conjunto de movimentos e organizações do qual faz parte o Fórum Grita Baixada, uma das formas para que a intervenção federal militar se fizesse legítima em suas ações para conter o avanço da criminalidade seria a mudança do gabinete de crise. “Queimados não é a cidade mais violenta do país? O que eles estão fazendo aqui? A intervenção tinha que ir para o principal batalhão da cidade e começar a trabalhar ali desde já. O problema da violência tem solução, mas demanda tempo e muitas ações estratégicas. Nunca foi fácil, porém mais difícil do que a própria dificuldade em si é trabalhar com pessoas sem inciativa”, disse Silvia.

Também participaram da mesa: Edison Diniz, da ONG Redes da Maré; defensora pública Eufrásia das Virgens; ativista do Movimento Popular de Favelas André Lima; presidente da Fiocruz Nísia Trindade; e Victoria Sulocki, pesquisadora do núcleo de Direitos Humanos do departamento de Direito da PUC-Rio.

Matéria escrita por Fabio Leon e produzida por parceria entre RioOnWatch e o Fórum Grita Baixada. Fabio é jornalista e ativista dos direitos humanos e assessor de comunicação no Fórum Grita Baixada. O Fórum Grita Baixada é um fórum de pessoas e instituições articuladas em torno da Baixada Fluminense, tendo como foco o desenvolvimento de estratégias, o fomento de articulações e a incidência política no campo da segurança pública, entendida como elemento para a cidadania e efetivação do direito à cidade. Siga o Fórum Grita Baixada pelo Facebook aqui.