Esta é a terceira matéria de uma série de quatro que resume o relatório sobre o potencial–dentro da lei atual brasileira–da aplicação do modelo Community Land Trust, sendo traduzido para o português como Termo Territorial Coletivo (TTC), para a segurança fundiária nas favelas do Brasil, apresentando e adaptando um relatório pelas advogadas e urbanistas Tarcyla Fidalgo e Renata Antao, preparado com apoio do Instituto Lincoln de Políticas de Terra (LILP). Esta série esclarece vários pontos referentes à proposta, mostrando as suas bases, contextualização para favelas, benefícios, aplicabilidade e forma de funcionamento. Nesta terceira matéria mostramos como poderia ser criado o TTC dentro da legislação vigente, apontando as possibilidades dentro das várias formas de constituição de pessoa jurídica. Para ler as outras matérias da série clique aqui.
Esta série foi publicada em preparação para a vinda da delegação de Porto Rico, entre 23 e 27 de agosto, que conseguiu realizar o TTC em oito favelas de San Juan, com ótimos resultados. As oficinas foram realizadas pela ComCat em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Pastoral de Favelas, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio, e o Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro.
Formalizando um TTC: Constituição de Pessoa Jurídica
Para estabelecer um Termo Territorial Coletivo é preciso que haja um arranjo institucional que permita a coletividade da posse da terra. Por este motivo, a melhor maneira dentro do marco jurídico brasileiro vigente para atingir esse objetivo é através da constituição de uma pessoa jurídica, ou seja, uma abstração jurídica para a qual se atribui uma personalidade, reconhecida enquanto sujeito de direito.
É preciso ressaltar que a pessoa jurídica não figura uma pessoa em si, ou um indivíduo, mas uma entidade constituída por meio de um conjunto de pessoas ou de bens detentora de direitos e deveres. É possível a constituição de pessoa jurídica de direito público ou privado, mas, para o caso do TTC, seria necessária a constituição através da segunda opção, uma vez que este é o formato indicado para os casos de associações, sociedades, fundações, organizações, entre outros.
A liberdade de associação está prevista na Constituição de 1988, e faz parte também dos direitos de cidadania previstos em tratados internacionais de direitos humanos. Essas associações e organizações realizadas pela sociedade civil fazem parte do exercício democrático da cidadania por parte dos cidadãos, e é por meio delas que o TTC poderia ser viabilizado.
O que caracteriza uma Organização de Sociedade Civil (que pode assumir diferentes formas como cooperativas, associações, fundações e organizações religiosas) é a ausência de fins lucrativos, a constituição e administração legal e voluntária e a pluralidade de formatos jurídicos que podem assumir. Apesar de não possuírem fins lucrativos, as Organizações da Sociedade Civil podem realizar atividades geradoras de renda, desde que isso esteja coerente com seus objetivos.
Para constituir um Termo Territorial Coletivo, a pessoa jurídica a ser criada poderia estar sob algum dos formatos previstos de uma Organização de Sociedade Civil: associação, fundação ou cooperativa. No entanto, o enquadramento dos objetivos de um TTC também permite a constituição de pessoa jurídica a partir de outras formas de organização social ou de gestão de bens e projetos comuns, como o consórcio e o condomínio. Cada uma dessas possibilidades apresenta seus potenciais e possíveis entraves, portanto, a escolha do formato de constituição de pessoa jurídica para iniciar um TTC deverá considerar qual dessas opções melhor se adequa ao contexto, às demandas, e às necessidades locais.
Associação e Fundação
Esse é o formato mais tradicional que as Organizações de Sociedade Civil adquirem. No caso das associações, elas são constituídas através de um grupo de pessoas organizadas para fins comuns e definidos, podendo estar voltadas para a coletividade (associações de defesa de direitos humanos ou meio ambiente, por exemplo), benefício mútuo ou a um grupo mais homogêneo de associados (clubes, por exemplo). Já no caso das fundações, o instituidor (pessoa jurídica, no caso o TTC) deve destinar o seu patrimônio para criar uma fundação através de escritura ou testamento.
O principal empecilho para iniciar um TTC diretamente a partir de uma fundação é a necessidade de algum patrimônio, pois é pouco provável que este regime em favelas tenha esse requisito de imediato. No entanto, em termos de gestão, a fundação oferece um formato mais adequado aos princípios de um Termo Territorial Coletivo. Isso porque enquanto fundação, a gestão não pode definir o destino dos bens uma vez que eles são fixos e imutáveis, garantindo a perpetuidade dos princípios da proposta. Já no caso das associações, a gestão pode atuar sobre os bens do TTC, portanto a continuidade dos princípios dependeria da determinação dos gestores.
Visto as limitações de cada uma das propostas, uma opção poderia ser conformar essas duas modalidades constituindo, de imediato, uma associação (já que esta não necessita de patrimônio prévio) e, após a aquisição das terras, constituir uma fundação (já que esta garante que os bens serão fixos e imutáveis).
Cooperativa
As cooperativas são reguladas pela Lei no 5.764 de 16 de dezembro de 1971 referente a Política Nacional de Cooperativismo, onde são definidas como sociedades de pessoas com forma, natureza jurídica e características próprias. As cooperativas podem ter diversos formatos (singulares, centrais, federações de cooperativas ou confederações de cooperativas), no entanto, é necessário um mínimo de 20 pessoas físicas para ser constituída.
Esse tipo de organização é fundada por um determinado grupo econômico ou social com o objetivo de realização de uma atividade para benefício comum, tendo como fundamentos básicos: (1) identidade e propósito de interesses em comum; (2) ação coletiva, voluntária e objetiva para coordenação de contribuição e serviços; e (3) atingir resultados que sejam úteis e comuns a todos os integrantes da cooperativa.
Os requisitos legais para constituir uma cooperativa são semelhantes aos procedimentos para constituir as demais formas de pessoa jurídica, no entanto, existem algumas limitações para o caso de um Termo Territorial Coletivo que devem ser levadas em consideração: a atividade desenvolvida deve ser de natureza econômica, com repartição igual de eventuais valores apurados entre os cooperativados, e existe um número mínimo de pessoas para a conformação de uma cooperativa. No caso, a maior limitação seria a necessidade de natureza econômica, pois esta não é a natureza de um TTC. Contudo, uma possibilidade seria a constituição de um TTC sob outro formato para que, posteriormente, fosse constituída uma cooperativa para realizar a gestão. Nesse caso poderia existir uma conformação de duas modalidades, sendo uma fundação onde a gestão seria realizada por meio da cooperativa.
Consórcio
Formado por um grupo que reúne pessoas naturais ou jurídicas com a finalidade de proporcionar o acesso ao consumo de bens e serviços através de autofinanciamento, esta forma de organização pode servir para a aquisição de bens móveis, imóveis ou serviços pelo grupo. Por constituir uma organização para a aquisição de bens, o consórcio possui um prazo de duração determinado (que pode ser por um tempo longo).
Esse grupo não personificado formado é representado pela sua administradora e exige a existência de um contrato de consórcio para garantir o cumprimento das obrigações de todos os participantes. No caso de um TTC, o consórcio poderia ser destinado à aquisição de imóveis, e o contrato de consórcio pode estabelecer as possibilidades para a gestão do TTC.
Condomínio
Por final, no caso de se pensar o TTC através de formato de condomínio, os requisitos são que deve ser formado por no mínimo dois proprietários, e os integrantes dessa forma de organização possuem poderes sobre um mesmo bem. Sua constituição pode ocorrer por três formatos diferentes: voluntário, necessário ou edilício. No caso de um Termo Territorial Coletivo, o formato mais adequado para se adequar a uma gestão coletiva seria o “condomínio de lotes”, previsto na Lei no 13.465, de 11 de julho de 2017 e que diz respeito a um condomínio voluntário.
Nesse formato, o lote é visto como unidade autônoma do condomínio, podendo haver ou não edificação neste lote, as quais também fariam parte do condomínio de lotes. Dessa forma, algumas partes do condomínio poderiam ser de uso exclusivo dos titulares das edificações, sendo possível a constituição de condomínios edilícios para uso comum destas áreas construídas no condomínio de lotes. Enquanto isso, o lote em si faria parte do condomínio de lotes que seria de gestão coletiva e de posse do TTC. Portanto, para fazer uso do condomínio, a propriedade do terreno deve estar sob o TTC e não de cada integrante do condomínio. Dessa forma, a continuidade do TTC e a segurança da posse podem ficar garantidas.
Nesse caso a gestão das construções poderia ocorrer sob o formato de condomínio, mas não a gestão do TTC propriamente dito. Portanto, o TTC pode ser constituído na modalidade de condomínio de lotes, mas a sua gestão deve estar prevista sob outro formato (uma possibilidade seria a gestão ser realizada por meio de cooperativa).
Esta é a terceira matéria de uma série de quatro.