Termo Territorial Coletivo, Parte 4: A Obtenção das Terras pelo TTC

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Esta é a última matéria de uma série de quatro que resume o relatório sobre o potencial–dentro da lei atual brasileira–da aplicação do modelo Community Land Trust, sendo traduzido para o português como Termo Territorial Coletivo (TTC), para a segurança fundiária nas favelas do Brasil, apresentando e adaptando um relatório pelas advogadas e urbanistas Tarcyla Fidalgo e Renata Antao, preparado com apoio do Instituto Lincoln de Políticas de Terra (LILP). Esta série esclarece vários pontos referentes à proposta, mostrando as suas bases, contextualização para favelas, benefícios, aplicabilidade e forma de funcionamento. Neste quarto artigo mostramos como poderiam ser adquiridas as terras para a composição do Termo Territorial Coletivo a partir de instrumentos já existentes. Para ler as outras matérias da série clique aqui.

Esta série foi publicada em preparação para a vinda da delegação de Porto Rico, entre 23 e 27 de agosto, que conseguiu realizar o TTC em oito favelas de San Juan, com ótimos resultados. As oficinas foram realizadas pela ComCat em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Pastoral de Favelas, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio, e o Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro.


A OBTENÇÃO DA TERRA

No Brasil, ter acesso à terra é um grande desafio. No caso das favelas, essa situação é ainda mais complicada uma vez que o cenário de irregularidade fundiária (em termos de titulação e de adequação às normas urbanísticas) dificulta a obtenção da terra. Essa situação, portanto, é um dos principais desafios para a constituição de um Termo Territorial Coletivo, já que para que este seja constituído seria necessária a regularidade fundiária. Apesar do TTC pressupor a propriedade e gestão coletiva da terra, a superfície e construções sobre ela ainda são privados. Portanto, não é possível falar da plena implementação deste modelo sem que a terra esteja regularizada.

Vila Calmete

Regularização Fundiária

A regularização fundiária é um instrumento jurídico muito buscado por moradores de favelas e por instituições que fornecem assessoria jurídica a esta população. Ainda que bastante controversa–especialmente quando sua aplicação passa pela titulação via propriedade privada individual, visto que esta abre espaço para a entrada direta das áreas regularizadas dentro do circuito formal do mercado imobiliário–a regularização é um passo necessário para a implementação do TTC, que busca justamente a segurança da permanência desses moradores vulneráveis e a garantia de direitos.

No caso da constituição de um Termo Territorial Coletivo, a regularização fundiária é necessária para que as terras possam passar à propriedade da pessoa jurídica criada (ver parte 3 da série), e, dessa forma, garantir a segurança da permanência dos moradores nas terras, concedendo a eles a propriedade de suas construções. Esse processo pode ocorrer de duas formas:

  • Em um primeiro momento a regularização fundiária serve para titular os moradores para que depois essas terras passem à propriedade da pessoa jurídica criada (Termo Territorial Coletivo). Ou seja, a transferência da propriedade da terra é posterior à titulação individual, o que poderia ocorrer via compra e venda ou doação. Porém é altamente recomendado que se este for o caminho, que a pessoa jurídica já fosse constituída com todo o trabalho de decisão de como funcionará o TTC feito por moradores em conjunto anterior ao recebimento da propriedade da terra, para terem claro entre eles o que querem e que estão acordados desde cedo em sua intenção mútua de se juntar–e de juntar os seus títulos–com o objetivo sendo a criação de um TTC.
  • No caso de doação de terras diretamente para o TTC, primeiro é necessário constituir a pessoa jurídica para receber essas terras doadas para que depois seja realizado o processo de regularização.

Concessões de Uso, Usucapião, e Legitimação Fundiária

Nas favelas, as formas mais comuns de regularização fundiária são via concessão de direito de uso (no caso de terras públicas), e usucapião (individual ou coletivo, em caso de terras particulares), havendo agora também a possibilidade de utilização do novo instrumento da legitimação fundiária pela controversa lei 13.465 de julho de 2017. Essa nova lei incentiva a regularização de terras públicas por titulação individual de forma irrestrita, com o potencial favorecimento da especulação imobiliária e da concentração de terras, sendo uma ameaça de grave retrocesso aos direitos sociais. Ao facilitar a regularização fundiária em geral, a nova lei facilita também os processos de regularização para moradores de favelas, processos que atualmente demoram tempo considerável. O que isso pode significar? A possibilidade de entrada em massa de terras no mercado imobiliário formalizado, algo preocupante diante do potencial especulativo que esse cenário oferece. No entanto, na ausência de reformas na nova lei, que impeçam a concretização deste cenário, e enquanto não existir uma legislação própria para o Termo Territorial Coletivo, este modelo de titulação pode servir como forma de contornar esse cenário preocupante, caso a lei se torna um instrumento na instituição de Termos Territoriais Coletivos e garantindo a segurança da permanência dos moradores ao retirar essas terras da circulação do mercado.

Atualmente, grande parte das regularizações fundiárias em favelas são realizadas via concessão de uso ou usucapião. No caso de regularização de terras públicas faz-se uso da Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) e a Concessão de Uso Especial para fins de moradia (CUEM). A diferença entre ambas reside nas hipóteses de aplicabilidade e nos requisitos a serem cumpridos pelos moradores. No entanto, não existe concessão de uso de forma perpétua, portanto esta não seria a opção mais adequada para o caso da constituição de um Termo Territorial Coletivo.

Já no caso de terras privadas, a regularização ocorre via usucapião individual ou coletiva. A usucapião urbana apresenta requisitos menos rígidos, como prazo reduzido de posse contínua do bem (5 anos), mas também restringe a área a ser usucapida na metragem de 250 metros quadrados. Na hipótese coletiva, comprovando-se a impossibilidade de individualização do terreno, são dados aos moradores títulos de propriedade de frações ideais do terreno total. Em qualquer caso, a usucapião concede aos beneficiários o título de propriedade privada plena, trazendo consigo todos os desafios para garantir a manutenção dos moradores destes territórios frente à atividade do mercado imobiliário.

Outra possibilidade para a realização da regularização fundiária em favelas é a legitimação fundiária, criada pelo novo–e controverso–marco normativo da regularização fundiária nacional (Lei 13.465/17). Por meio deste instrumento, permite-se a titulação individual, via propriedade privada plena, de moradores que integraram núcleos urbanos informais até 22 de dezembro de 2016. Sem maiores exigências quanto ao tempo de ocupação e sua comprovação, este novo instrumento impõe como requisitos apenas que (i) o beneficiário não tenha outro imóvel, (ii) que não tenha outro título oriundo de legitimação fundiária e que (iii) em caso de imóvel utilizado para o exercício de atividades econômicas, seu interesse público seja reconhecido pela administração.

Com esse rol enxuto de requisitos, o instrumento se coloca como um grande trunfo para os entes públicos que desejam promover a regularização de forma rápida e barata. No entanto, este movimento tem seus perigos para os moradores. O primeiro deles relacionado com a titulação via propriedade individual plena e já explorado neste e em outros textos desta série, e o segundo referente à desobrigação de promoção de medidas de urbanização e segurança das construções para a promoção da regularização. O receio é que se promova entregas de títulos em massa sem qualquer preocupação com a melhoria das condições de vida dos moradores e sua manutenção no território.

Além destes instrumentos, há ainda algumas outras opções para a promoção da regularização fundiária de modo a instituir as condições necessárias para a formação de um TTC. São elas: compra e venda, e doação.

Compra e Venda

A obtenção de terras via compra e venda através de contrato entre as partes interessadas (no caso, uma das partes seria a pessoa jurídica do TTC que já deve ter sido criada) é uma das opções para a obtenção de terras por parte do TTC. No entanto, a principal dificuldade está na obtenção de verba para adquirir esses terrenos pelo TTC, uma vez que os custos de tal transação podem ser elevados de acordo com a área adquirida e com os impostos incidentes.

Uma das opções possíveis poderia ser a compra e venda que envolve entes particulares e públicos. Para os casos onde haja interesse social, podem ser dispensadas certas exigências desse processo como avaliação prévia dos terrenos e um processo licitatório de competição entre particulares, que deixaria o processo mais demorado.

Essa forma de titulação prevê a possibilidade de inserir no mercado uma grande quantidade de terrenos até então públicos, como no caso das favelas, o que é bastante prejudicial para a segurança dos moradores e para o controle da especulação sobre esses terrenos. Por esse motivo, o modelo do TTC ganha importância, justamente por possibilitar a segurança da permanência dessa população e criar uma barreira contra a especulação do mercado imobiliário.

Doação 

A doação pode ser aplicada nos casos de terras públicas ou privadas, no entanto a doação de terras públicas é mais comum no caso das favelas. Se o doador por privado, ele estará regido pelo direito civil, mas, caso o doador seja público, estará regido pelo direito administrativo. É importante ressaltar que há incidência de impostos de competência estadual sobre as doações.

No caso de um Termo Territorial Coletivo, as terras poderiam ser doadas pela instituição pública ou por um ente privado. Nesse caso, é necessário que já esteja constituída a pessoa jurídica do TTC para o recebimento dessas terras.

Uma das possibilidades de instituição do TTC por meio de doação consiste no caso em que moradores sejam titulados individualmente, via regularização fundiária, e doem seus terrenos para o TTC–dado seu potencial de garantia de segurança da permanência e incremento de força para demandar melhorias territoriais–mantendo a propriedade de suas construções.

INSTRUMENTOS PARA VIABILIZAR O TTC

Nesta etapa, iremos discorrer sobre algumas opções de instrumentos jurídicos atuais que viabilizam a separação entre a propriedade do terreno (coletiva e perpétua) e da moradia (individual e transferível), para garantir a principal característica de um Termo Territorial Coletivo.

Direito de superfície

O direito de superfície é um instrumento jurídico, previsto no Código Civil brasileiro e no Estatuto da Cidade, que permite a separação entre a terra e a construção que está posta sobre ela. Nesse caso, o direito de superfície permite que uma construção seja de posse individual, mesmo que o terreno em si seja público ou de outra pessoa, o que está alinhado com a proposta do TTC. No caso das construções, elas podem ser pré-existentes ou podem ser construídas posteriormente sobre o terreno.

Existem encargos e tributos que incidem sobre o imóvel, mas, no caso de um TTC, esse pagamento poderia ser acordado entre as partes (inclusive para que não houvesse tributação para os moradores). Uma outra característica adequada desse instrumento para o programa aqui proposto é que o direito de superfície poderia ser transferido a terceiros. Portanto, não dificultaria possíveis transações das construções que acarretarem alterações e mudanças dos superficiários (moradores que estão fazendo uso do direito de superfície das terras do TTC). Nesse caso, as construções dentro do TTC poderiam ser passadas a outras pessoas, caso este seja o desejo de seu proprietário.

Comodato

Comodato nada mais é do que um empréstimo gratuito de coisas individuais, com previsão de restituição/devolução em momento posterior. Esse empréstimo é realizado através de contrato unilateral pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa móvel ou imóvel para que a outra pessoa faça uso dessa coisa por um período de tempo determinado ou não (no entanto o bem emprestado deve retornar à pessoa que cedeu em algum momento). Em termos tributários, essa é uma solução sem custos para o TTC.

Se esse instrumento for usado para o programa proposto, deve haver, portanto, um prazo para o uso do bem imóvel (construção) que está inscrito nas terras coletivas. Esse prazo pode constar tanto no regulamento administrativo do Termo Territorial Coletivo quanto no contrato estabelecido pelo comodato, podendo ser de longo prazo com previsão de renovação. Portanto, teoricamente, as construções seriam de propriedade do TTC e este realizaria o empréstimo delas para os moradores, viabilizando a moradia individual em terras coletivas. No entanto, se usado este instrumento para um modelo de TTC, será necessária uma regulação interna para a resolução de questões específicas, como a possibilidade de alteração do comodatário em caso de transmissão do bem.

UM APOIO POSSÍVEL: AS ZONAS DE ESPECIAL INTERESSE SOCIAL 

As ZEIS são instrumentos que incluem no zoneamento da cidade a possibilidade de instituir padrões urbanísticos próprios e usos específicos dos imóveis (como uso social) para determinados assentamentos através de um plano específico de urbanização. Esse instrumento pode ser aplicado tanto em áreas já ocupadas quanto em áreas vazias, de forma a delimitar áreas da cidade que deverão ser destinadas para moradia digna à população de baixa renda. Por este motivo, esse instrumento apresenta as suas contradições, uma vez que a flexibilização das normas urbanísticas para as áreas de ZEIS possibilita a alteração dos padrões mínimos necessários para o bem-estar dos indivíduos, institucionalizando padrões mínimos distintos para diferentes áreas da cidade, além de estabelecer enclaves territoriais destinados à população de baixa renda. Por outro lado, a delimitação dessas áreas de interesse social no território possibilita a permanência dessa população em áreas urbanas que passem a ter interesse especulativo.

As ZEIS também implicam na delimitação de áreas que deverão receber investimentos públicos para obras de urbanização, provisão de infraestrutura e melhorias urbanísticas e sociais. No entanto, a ZEIS por si só não é garantidora desses benefícios. Nesse caso, a articulação entre a ZEIS e o TTC pode oferecer um potencial de complementariedade em prol da segurança de permanência, incremento de infraestrutura urbana e adequação do espaço construído ao bem-estar e segurança dos moradores, uma vez que ambos objetivos são similares e a gestão do TTC poderá articular força social e apoio técnico para atingir esses propósitos.

Além disso, quando uma ZEIS é instituída, é necessária a articulação entre o poder municipal e a população local, o que possibilita a abertura de um canal para demandas de desenvolvimento social, urbano e ambiental da região. No caso de um Termo Territorial Coletivo, sua implementação em conjugação com a instituição de uma ZEIS na área promoveria de forma mais efetiva os objetivos da segurança da permanência dos moradores e da busca por melhorias territoriais.

Esta é a última matéria de uma série de quatro.