Entre os dias 23 e 27 de agosto a Comunidades Catalisadoras (ComCat)* organizou uma série de oficinas sobre o Termo Territorial Coletivo (TTC), com uma delegação especial do TTC das favelas do Caño Martín Peña, de Porto Rico, para apresentar e debater este modelo de ferramenta de segurança fundiária, no intuito de refletir sobre o TTC no contexto das favelas brasileiras. Durante os cinco dias de oficinas, 130 pessoas participaram, inclusive 50 lideranças ou moradores de favelas fluminenses. As oficinas foram organizadas em parceria com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, a Pastoral de Favelas, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio (CAU), o Laboratório de Estudos das Transformações do Direito Urbanístico Brasileiro (LEDUB), o Instituto Lincoln de Políticas de Terra (LILP), e o Global Land Alliance. Esta matéria faz parte de uma série de três que relata as oficinas. Leia sobre todas as oficinas realizadas aqui.
A primeira oficina realizada, no dia 23 de agosto na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, foi a Oficina Comunitária com a participação específica de moradores e lideranças de favelas fluminenses e lideranças de favelas porto-riquenhas. No dia 24 de agosto, relatada abaixo, foi realizada, no mesmo local, a Oficina Legislativa voltada para técnicos e sociedade civil–advogados, movimentos por moradia, organizações de favelas, arquitetos, engenheiros, urbanistas–interessados em debater as possibilidades jurídicas para aplicação do TTC no Rio de Janeiro. Nos dias 25 e 26 de agosto foram realizadas oficinas comunitárias locais em favelas junto aos moradores, a primeira na Barrinha e a segunda no Vidigal. Já no dia 27 de agosto, um encontro matinal teve como objetivo apresentar o modelo do TTC para autoridades brasileiras, representantes de órgãos públicos e partidos políticos, e a tarde a delegação do Porto Rico apresentou suas conclusões finais ao público em geral, na sede do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro.
No dia 24 de agosto, foi realizada a segunda oficina sobre o Termo Territorial Coletivo (TTC), essa com 43 técnicos–advogados, movimentos por moradia, organizações de favelas, arquitetos, engenheiros, urbanistas–interessados em debater as possibilidades jurídicas para aplicação do TTC no Rio de Janeiro e em debater o potencial de uma legislação brasileira de apoio e estímulo à criação de TTCs em território nacional.
Também sediada na Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, esta oficina objetivou uma apresentação detalhada do caso do TTC Caño Martín Peña, com foco na lei de estímulo que foi passada no Porto Rico. O intercâmbio a respeito do TTC enquanto instrumento urbano, porém, foi iniciado por um resumo do dia anterior e apresentação das impressões iniciais de lideranças comunitárias sobre o TTC.
Na parte da manhã, Edivalma “Di” Sousa da comunidade Rádio Sonda, Marcello Cláudio Nunes Deodoro da comunidade Indiana, e Giovana Berti da comunidade Caetés, foram as lideranças que iniciaram a oficina apresentando suas impressões iniciais a respeito do TTC baseado em suas experiências na Oficina Comunitária do dia anterior. Os três expuseram interesse nesse mecanismo enquanto potencial para a luta contra remoções, gentrificação, participação e união dos moradores. Além disso, demonstraram curiosidade sobre como esse mecanismo poderia ser aplicado e pensado para uma favela no Rio de Janeiro. No dia anterior, durante a Oficina Comunitária, Marcello convidou a todos os presentes a conversar em suas comunidades sobre a ideia para que ela possa ser pensada conjuntamente.
Após esta apresentação inicial de lideranças comunitárias e a apresentação de todos os presentes, Theresa Williamson, diretora executiva da ComCat, apresentou de forma sucinta a história do TTC, surgido nos Estados Unidos na década de 60 no contexto do movimento pela luta dos direitos civis, e em seguida explanou sobre as razões para considerar a opção do modelo TTC para favelas do Rio de Janeiro, mencionando a importância do exemplo do Caño em relação à expansão do conceito para as favelas.
Posteriormente, ouvimos de Mario Núñez, Evelyn Quiñones, Lyvia Rodríguez, e Alejandro Cotté, representando as três instituições envolvidas no TTC de Porto Rico: o próprio TTC Caño Martín Peña, o Grupo G-8 das oito comunidades contempladas, e o Projeto ENLACE que é uma espécie de programa público de planejamento e urbanização para as comunidades do TTC. Os quatro fizeram uma apresentação detalhada sobre a história do caso do TTC Caño Martín Peña e o papel da prefeitura e de técnicos aliados dentro do funcionamento do TTC. Na apresentação, os técnicos–Lyvia Rodríguez como urbanista e Alejandro Cotté como assistente social, ambos do Projeto ENLACE–contaram sobre o longevo processo de planejamento estratégico participativo feito pelos moradores em centenas de reuniões para preparar um plano estratégico. Foi através deste processo que as comunidades determinaram que um TTC seria a melhor ferramenta de segurança fundiária para eles–porém não existia nenhum caso bem difundido sobre TTCs em favelas no mundo, então tiveram que criá-lo do zero. Por isso e outros motivos foi criada uma lei. A lei que justamente criou o Projeto ENLACE e que garante a execução do plano estratégico de desenvolvimento do Caño Martín Peña.
No caso do Caño Martín Peña–que diz respeito a oito favelas localizadas na margem do Canal Martín Peña em San Juan, Porto Rico–as favelas de mais de 80 anos estavam ameaçadas pelos planos de obras de infraestrutura para a dragagem do canal poluído. Por já terem vivenciado remoções passadas em suas favelas para posterior construção de empreendimentos imobiliários voltados para um público de alta renda, os moradores sabiam que corriam risco de remoção por causa dessas obras caso fossem implementadas sem os devidos cuidados. Dessa forma, se organizaram junto a estes profissionais de forma a criar um novo mecanismo de legislação urbana que permitisse a criação do TTC do Caño Martín Peña.
O TTC, que é votado por moradores e gerido por uma maioria de moradores e aliados técnicos ativos, tomou a posse da terra e administra-a para perpetuidade. As casas sobre a terra, porém, são das famílias que ali vivem, donas tanto da construção quanto do direito à superfície. Com isso, eles podem comprar, vender, hipotecar e herdar as casas. Mas tirando o valor da terra da equação, e com uma norma que requer que a venda da casa é sempre oferecida primeiro ao TTC de acordo com uma tabela de valores mais acessíveis, a moradia na comunidade é assegurada como acessível para perpetuidade. Ainda mais, como donos coletivos da terra, os moradores têm grande poder de barganha e influência sobre as políticas públicas que lhes afetam, pois não negociam individualmente e sim, sempre, coletivamente com grande corpo de aliados técnicos a disposição. Através do TTC, conseguiram se manter no local, onde se organizam e elaboram projetos de desenvolvimento comunitário constantemente.
Na parte da tarde, a advogada e urbanista, Tarcyla Fidalgo, fez uma apresentação sobre o potencial de criação de uma TTC no Brasil usando a legislação de regularização fundiária existente e comparando nossas possibilidades com as do Porto Rico. Ao passo que as comunidades de Porto Rico tiveram que pressionar para gerar uma lei específica para poder criar seu TTC, a legislação brasileira sobre a terra existente é bastante abrangente. Sendo assim, Tarcyla apresentou como seria possível avançar sem a necessidade de uma nova lei. Pode-se inclusive criar um TTC em uma comunidade que adquire a terra através de mecanismos existentes como o usucapião coletivo, se seus moradores, ao receber seus títulos, resolverem juntar seus títulos e separarem a terra da superfície eles mesmos constituindo o TTC. Porém, foi reconhecido por Tarcyla e a grande maioria dos presentes que uma lei específica de estímulo e reconhecimento da ferramenta do TTC no Brasil, a nível nacional e municipal pelo menos, seria de grande interesse.
O final da tarde focou no debate com o público altamente técnico presente, que incluía, em peso, representantes do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ) e Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, além de representantes do Observatório das Metrópoles, Prefeitura do Rio de Janeiro, PROURB, Sebrae, IAB, Tribunal de Justiça, NEPHU da UFF, Pastoral de Favelas, Observatório de Favelas, IPPUR, UERJ, PUC, e LEDUB entre outras instituições da área.
Debates foram realizados em torno das possibilidades já existentes na lei brasileira para se resguardar um eventual TTC de impostos altos, através de leis de isenção. Foi deixado muito claro pelos técnicos envolvidos com o caso do Caño Martín Peña que a comunidade conduzindo as ações na criação e manutenção de um TTC é fundamental, um ponto de concordância entre técnicos presentes. Foi destacado o fato de que as comunidades do Porto Rico passaram vários anos se educando e criando projetos sociais para preparar a área para a instalação do TTC. Qualquer projeto de TTC no Brasil também precisará seguir esse modelo de educação e participação na formulação de um plano participativo da comunidade, onde os próprios moradores cheguem a conclusão que um TTC é o melhor caminho para o que eles mais querem atingir. Um representante do ITERJ observou que essa forma de gerenciamento de projetos seria, de fato, nova e revolucionária, já que estamos em um lugar onde os políticos e os governos impõem projetos às comunidades de cima para baixo. Uma forma de atuação que, podemos confirmar, não tem dado certo e inclusive comumente desmonta características positivas de comunidades no decorrer do projeto.
Os técnicos e especialistas debateram sobre a ideia do TTC e continuaram a perguntar à delegação de Porto Rico sobre seu caso. A delegação foi questionada sobre procedimentos de compra e venda de residências dentro do TTC, a composição do conselho executivo do TTC e se o TTC tem o direito de construir moradias de baixa renda dentro de sua área. Por fim, o dia terminou com a formação de um grupo de trabalho que irá se reunir regularmente para desenvolver a ideia de criar um TTC em favelas do Rio de Janeiro. Quase todas as pessoas presentes se inscreveram como interessadas em ajudar em um futuro projeto de TTC.
Para maiores informações sobre o modelo TTC ou se integrar no GT do TTC, entre em contato pelo email ttc@comcat.org. Leia sobre todas as oficinas realizadas aqui.
*Comunidades Catalisadoras (ComCat) é a organização que publica o RioOnWatch.