Museu das Remoções Inaugura Percurso Expositivo na 12ª Primavera dos Museus

Iniciativa reflete "política pública feita pela sociedade civil"

Click Here for English

Na tarde do dia 23 de setembro—que marcou o início da primavera—moradores da Vila Autódromo, ativistas apoiadores e cerca de 50 visitantes estiveram no evento Primavera dos Museus no Museu das Remoções,colheram frutos de um trabalho que vem sendo construído há anos: o Percurso Expositivo do Museu das Remoções. Inaugurado no dia, o roteiro é formado por 22 pontos de memória que remetem a locais que foram muito importantes na história da Vila: um parquinho de crianças, as casas de ex-moradores, o local da antiga Associação de Moradores, a padaria, entre outros. Durante a visita guiada pela moradora Sandra Maria de Souza, as memórias sobre os pontos foram sendo resgatadas e reveladas—“na padaria sempre encontrávamos pão fresquinho e podíamos pagar fiado”, lembrou a ex-moradora Jaqueline Luduvice. “Se eu pudesse, voltava a morar aqui na minha casa”, disse Dona Denise Costa, que permaneceu morando na Vila, mas sente ainda muita falta da antiga residência e dos laços de vizinhança.

A ideia era justamente trazer as memórias à tona. Antes de iniciar o percurso, Sandra Maria disse: “A nossa ideia de fazer esse percurso é que ele seja um percurso conversado. Nós vamos tentar fazer falas rápidas, pra que outras pessoas possam falar. Eu peço a todos que, em algum momento, se tenham alguma memória sobre algum ponto que nós vamos passar, que a pessoa por favor levante a mão e fale, porque hoje o dia é pra isso”. E dirigindo-se aos representantes de outros museus sociais da cidade que estavam presentes (Museu do Horto, Museu de Favela, Museu da Rocinha Sankofa, Museu Aberto do Morro da Providência), disse: “Eu quero ouvir vocês também, porque nossas histórias são muito parecidas. Nós somos parte da mesma linhagem de pessoas sobreviventes desse mundo roubado”.

Os representantes dos museus e demais participantes da visita guiada fizeram o que Sandra Maria recomendou em um percurso que durou três horas. O museólogo Thainã de Medeiros do Complexo da Penha, logo no início, lembrou que a ideia do Museu das Remoções surgiu durante uma das reuniões de resistência na Associação de Moradores em 2015, e que quando trouxe a ideia, alguns moradores acharam que ele estava enlouquecendo: “’estão destruindo tudo e você quer pensar em museu?’ Justamente!” Hoje, os destroços das remoções remetem à história não só da Vila Autódromo, mas da cidade como um todo. No ponto do percurso que remete à casa das ex-moradoras Dona Sonia e Jaqueline Luduvice (“Poste da casa de Jaqueline”), Cosme Felippsen, representante do Rolé dos Favelados e do Museu Aberto do Morro da Providência—onde hoje as ex-moradoras vivem—com pandeiro em punho, fez uma rápida performance abordando a violência dos processos de remoção e cantando os famosos sambas “Barracão de Zinco” (‘Barracão de Zinco, tradição do meu país, barracão de zinco, pobre és tão infeliz’) e “Opinião” (‘Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer que eu não mudo de opinião, daqui do morro eu não saio não, daqui do morro eu não saio não…’). Cosme Felippsen ainda denunciou as remoções do Morro da Providência, onde, segundo ele, foram removidas 200 casas desde 2008.

Antonio Carlos Firmino do Museu Sankofa Rocinha, Sandra Maria do Museu das Remoções na Vila Autódromo, Sidney Tartaruga do Museu de Favela do Cantagalo, Cosme Felippsen da Providência e Emília de Souza do Museu do Horto, inaugurando o ponto referente à antiga Associação de Moradores. Foto por Luiza de Andrade.

No local da antiga Associação de Moradores, emblemática por abrigar as reuniões entre os moradores durante o processo de remoção e pela forma violenta com que foi destruída, os representantes dos museus sociais se reuniram lembrando da importância da manutenção de espaços de memória na cidade. Sidney Tartaruga, representante do Museu de Favela, disse que “temos que mudar nossa história, deixar um legado diferente do que o que se vê na mídia”. Antônio Carlos Firmino, representante do Museu da Rocinha Sankofa, salientou que o “direito à memória passa pelo direito à moradia, que é onde construímos nossa identidade”. Por fim, Emília de Souza, do Museu do Horto, lembrou que o governo de Michel Temer acaba de sancionar o fim do IBRAM (a Medida Provisória Nº 850/2018 extinguiu o Instituto Brasileiro de Museus), ressaltando a importância desta instituição para a construção dos museus sociais.

Não há um ponto marcando o local da antiga casa de Dona Maria da Penha Macena, moradora da Vila Autódromo há mais de 20 anos. Sua casa foi derrubada de maneira truculenta e ela agredida pela Tropa de Choque em março de 2016. No local de sua antiga casa, há hoje um estacionamento vazio. Mas as memórias de Maria da Penha e sua família estão vivas. No ponto que marca o período em que passaram morando em contêineres, Luiz Claudio Silva (marido de Dona Penha) lembrou que foram 73 dias vivendo em meio ao caos. Segundo ele, a oferta de sair temporariamente da Vila durante a construção das novas casas não foi aceita pois àquela altura eles não confiavam na prefeitura e quiseram ficar para ter certeza que não lhes tirariam o direito de permanecer.

Foram muitas as memórias trazidas nas horas do percurso. Mavilin Almeida, de 23 anos, nascido na Vila e morador atual, se lembrou que durante sua infância soltava pipa pelas ruas e corria atrás de galinhas. No parquinho das crianças, os netos dos moradores antigos puderam vivenciar um pouco da vida na comunidade. Todas essas histórias foram ouvidas e vistas com atenção pelos visitantes, sendo que alguns carregavam bandeiras com as cores do Brasil, confeccionadas pelos moradores da Vila. As bandeiras remetem à história de luta da Vila Autódromo. Dona Dalva Crispino de Oliveira, a mais antiga moradora da Vila, lembrou que para comemorar seu aniversário de 82 anos, quando a comunidade lutava para permanecer no local, fizeram um churrasco junto às barricadas como forma de resistir e festejar ao mesmo tempo. Atendendo aos pedidos da aniversariante, uma bandeira do Brasil e outra do clube de futebol Fluminense foram levadas à festa. Ocorre que, na ocasião, a Guarda Municipal apareceu e solicitou que os moradores retirassem a bandeira do Brasil que estava presa a um dos latões da barricada, justificando que aquilo denotava a organização de uma manifestação. Os moradores não só negaram o pedido—ao que a Guarda respondeu retirando a bandeira à força—mas no dia seguinte colocaram uma bandeira em cada casa, como forma de demonstrar sua resistência. Até hoje alguns moradores mantêm uma bandeira em suas casas.

O Museu das Remoções não foi implantado ontem, sua história já é longa, mas os 22 pontos do percurso inaugurado oficialmente durante a visita coletiva realizada marcam o território da Vila com as memórias de todos os que lá viveram ou passaram. O professor da UNIRIO e museólogo Mario Chagas (atual diretor do Museu da República) disse, ao fim do percurso, que aqueles que estavam presentes vivenciaram momentos que ficarão para sempre na memória de todos como uma memória de luta, e lembrou que o papel dos museus deve ser justamente o de proporcionar isso. Ainda segundo Mario, o Museu das Remoções representa um modelo de política pública feita pela sociedade civil.

Essa ideia de política pública feita pela sociedade se mostra também nas placas com os nomes das ruas da Vila Autódromo que foram confeccionadas e colocadas de maneira a demarcar sua existência e exigir seu reconhecimento. São três ruas: Vila Autódromo (a principal), Gilles Villeneuve (onde estava localizada grande parte dos estabelecimentos comerciais da Vila) e Travessa da Resistência. Segundo Sandra Maria, o acordo estabelecido com a prefeitura em 2016 previa a regularização da Rua Vila Autódromo, antes denominada Nelson Piquet, mas não aceitaram a existência da Travessa da Resistência como os moradores queriam. Isso não significou um problema, pois, segundo ela, “nós que já construímos essa comunidade estamos construindo novamente”. Agora, a Travessa tem placa e marca o caminho que os moradores faziam e fazem para ir até a Igreja.

Com uma lua cheia iluminando o céu, o filme O Desmonte do Monte fechou com chave de ouro o dia, mostrando que a luta por moradia na cidade é cotidiana e antiga. A diretora Sinai Sganzerla disse que a história da Vila Autódromo remete ao desmonte do Morro do Castelo pois em ambos os casos o poder público instaurou processos de higienização social levados a cabo violentamente. O filme foi exibido no anfiteatro da comunidade, construído em parceria com o Instituto Goethe no âmbito do programa O Futuro da Memória e parte do percurso expositivo.

A inauguração do percurso expositivo foi precedida por um delicioso risoto e terminou com cachorro quente, ambos feitos por Dona Penha. Depois de um dia emocionante, estávamos alimentados de esperança e de uma comida deliciosa. Aliás, as receitas de Dona Penha mereciam ganhar um livro—porque as memórias da Vila Autódromo, além de muito afeto, também carregam muito sabor.

Todavia, a luta continua, pois até hoje a Prefeitura do Rio de Janeiro não cumpriu o acordo extrajudicial assinado com os moradores da Vila Autódromo em 2016, que garante a permanência dos moradores, a documentação dos imóveis e a conclusão da urbanização da comunidade.