No dia 9 de outubro, cerca de 150 pessoas se reuniram na entrada do Morro dos Prazeres, na areá central do Rio, para protestar contra a detenção indevida de Willian Preciliano Bezerra da Silva. Dois meses atrás, ao solicitar uma carteira de motorista, Willian foi levado sob custódia e acusado de envolvimento em um crime cometido por traficantes de drogas nos Prazeres em novembro de 2017. Moradores, ativistas e aliados que se uniram para mostrar apoio à sua família, afirmam sua inocência, e exigem sua libertação imediata. Os parentes de Willian compartilharam suas preocupações com a multidão e leram duas cartas escritas por ele da prisão, nas quais ele agradece a seus amigos e familiares e expressa suas esperanças de estar livre em breve.
Comunidade em Choque
Moradores dos Prazeres ficaram chocados com as acusações contra Willian. Este sentimento foi perceptível pelo comparecimento na noite de terça-feira. “Ele é um moleque super do bem, gosta muito de ajudar a mãe, gosta muito de ajudar o pai. Ele não é um moleque de sair de casa. Ele saia para jogar futebol, para escola, e para ajudar a irmã dele lá no trabalho dela, ela tem um comércio. Ele trabalha de garçom. Willian estudava de noite, todo final de semana a gente saia para curtir… A gente nunca teve envolvimento com nada [criminoso]”, afirmou Roberto da Silva Rodrigues, amigo próximo de Willian. “Eu realmente fiquei muito revoltado. Ele foi preso quando foi tirar a habilitação; era o sonho dele. Todo mundo ficou bastante revoltado”, contou Roberto.
Durante o protesto, vários membros da comunidade enfatizaram que Willian é um cidadão honesto que nunca esteve envolvido no tráfico de drogas. Talvez as palavras mais impactantes tenham sido ditas por Márcia Campos, ex-professora de português de Willian na Escola Secundária Monteiro de Carvalho: “Ficamos juntos por dois anos. É um menino muito responsável, tinha frequência quase cem por cento. Ele não tinha nada a ver com tráfico. Se Willian fosse um menino que tivesse esse tipo de comportamento, primeiro ele nem frequentaria escola porque esse emprego do tráfico não libera para estudar, é tempo integral ali. Ele estava lá todas as noites na escola, todas. Por esse perfil, acabou essa história. Se você for ver o aluno que flerta com tráfico, ele não é mais um aluno. A primeira coisa que ele faz é largar a escola. Acho que só isso aí, já dá para quebrar [as alegações]”.
Caso de Willian
Ao contrário das alegações dos policiais, que afirmam tê-lo identificado como envolvido no tráfico de drogas e de ter participado de um ataque à base da UPP no ano passado, membros da comunidade de todas as esferas são inflexíveis quanto à inocência de Willian. Para entender como as acusações não batem, é importante se aprofundar nas alegações.
No dia 20 de novembro de 2017, vários policiais foram mantidos como reféns após um ataque à base da UPP no Morro dos Prazeres. Segundo a polícia, cerca de quarenta membros da facção participaram, tirando as armas dos policiais e mantendo-os em cativeiro em um campo de futebol da comunidade. Os policiais dizem que foram torturados psicologicamente por quase uma hora. Um chefe de polícia local acabou por negociar a libertação dos oficiais; nenhum deles foi agredido fisicamente.
Os policiais que foram mantidos como reféns receberam licença médica por motivos de saúde mental–o que ainda está em vigor, segundo moradores. No entanto, quatro meses após a ocorrência, seis dos policiais envolvidos identificaram Willian Preciliano como um dos mais de quarenta membros da facção presente naquela noite, baseando-se apenas na avaliação de que ele se parece com alguém em uma fotografia. O mandado foi posteriormente arquivado para sua prisão. Willian é o único suspeito acusado que não tem antecedentes criminais; o suspeito seguinte com o menor registro tem cinco desentendimentos anteriores com a polícia, segundo o advogado de defesa Vinicius Saldanha.
Em meados de agosto Willian foi preso. Após a formatura no Ensino Médio, em 13 de julho e seu aniversário de 21 anos em 18 de julho, Willian foi buscar sua carteira de motorista–algo que ele estava ansioso para fazer já há algum tempo, pois planejava se tornar um motorista de Uber para ajudar nas despesas da família. Naquele dia, os funcionários do DETRAN pediram a ele que retornasse devido a um erro no sistema. No dia seguinte, ele recebeu uma longa lista de perguntas, lhe disseram para esperar enquanto seu caso estava sendo processado e, finalmente, ele foi preso. Nem Willian nem sua família tinham conhecimento de um mandado de prisão.
Irregularidades legais
A família de Willian pediu rapidamente habeas corpus contra sua detenção, que eles chamam de ilegal devido às irregularidades em identificá-lo como suspeito. Por que a identificação foi feita vários meses após o incidente? Quais fotos foram usadas para fazer a identificação? Com mais de quarenta suspeitos citados no caso, como essa identificação suspeita poderia ser precisa? E o mais importante: com várias irregularidades e falta de provas incriminatórias contra ele, por que Willian ainda está detido?
Sua família acredita que os policiais identificaram Willian como suspeito devido as fotos em que ele parece “armado” com armamentos falsos. Em 2017, Willian foi ator em uma filmagem nos Prazeres para a produção do filme independente a ser lançado Pacified, do diretor americano Paxton Winters. Os membros da comunidade acreditam que os policiais podem simplesmente ter se deparado com fotos nas quais ele parece estar “armado” e, consequentemente, o identificou como culpado. Eles explicaram isso ao juiz, sem sucesso.
“Os policiais foram para a delegacia dia 23 [de setembro], e alegaram que não tinham condições nenhuma para fazer nenhum tipo de reconhecimento. Eles continuam afastados dos seus trabalhos por transtornos psicológicos, só que depois de cinco meses foram reconhece-lo por foto. Que fotos? Parece que nada que a gente já levou, nada que a gente argumentou a partir de fatos reais está sendo contado”, lamentou a ativista comunitária Janice Delfin.
A juíza Paula Fernandes Machado negou o pedido da família para a libertação de Willian e defendeu sua decisão de mantê-lo sob custódia: “Ao contrário do que foi alegado pela defesa, não se trata de um mero reconhecimento por foto, havendo indícios de materialidade e de autoria, haja vista que a declaração extrajudicial de um policial militar, vítima, narra toda a suposta atuação do réu durante a empreitada criminosa, com riqueza de detalhes”.
#SomosTodosWillian
A história de Willian não é única, mas causou uma onde de pânico por toda a comunidade. A professora de português de Willian narrou a atmosfera na escola nas semanas seguintes à prisão, quando os alunos entraram em pânico–pois ficaram imaginando se eles também tinham mandados em seus nomes sem o conhecimento deles. A ativista comunitária Janice elaborou: “A gente teve jovens aqui baixando aplicativo no celular, um aplicativo ‘Nada Consta’. Eles jogam lá o número de identidade, para saber se tem alguma coisa assim, porque Willian não sabia que ele tinha esse mandado de busca”. Janice continuou: “Como mãe de adolescente, confesso para vocês, morro de medo. Hoje eu tenho muito medo. Hoje quando meu filho vai sair [peço]: ‘tira uma foto’, chega na escola: [peço] ‘tira uma foto, me mostra onde você está’. Realmente preciso ter essa segurança”.
O caso de Willian é horripilante e preocupante, mas ele não está sozinho. De acordo com dados da Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN), em junho de 2016, aproximadamente 292.000 pessoas estavam detidas aguardando julgamento em todo o Brasil. No Rio de Janeiro, indivíduos detidos representam 40% da população carcerária do estado. Orlando Bernardo da Silva, presidente da Associação de Moradores dos Prazeres, disse: “Todo mundo é inocente até que se prove o contrário. No caso do Willian, ele é culpado até que se prove o contrário. A gente tem que provar que ele é inocente, invés do Estado ter que provar que o cara é culpado. Nós temos no Rio de Janeiro todo, muito mais Willians. O [policial] simplesmente sorteou, culpou e responsabilizou, e isso acontece direto”.
Talvez o aspecto mais preocupante do caso de Willian seja o grau em que o testemunho da polícia é valorizado sobre qualquer outra evidência. Em casos como o de Willian, os policiais são frequentemente agraciados com o poder do juiz, do júri e do executor. De fato, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro obedece a uma doutrina de precedente jurídico (Súmula 70) que afirma: “O fato de restringir-se a prova oral a depoimentos de autoridades policiais e seus agentes não desautoriza a condenação”. Uma doutrina controversa que tem sido duramente criticada por defensores públicos e ativistas da justiça criminal, o fato é que a palavra dos policiais é mais valorizada que a do acusado ou da comunidade. Embora Willian ainda tenha seu dia para ir ao tribunal, seu caso demonstra claramente essa realidade: depoimentos de testemunhas oculares da polícia são suficientes para manter Willian preso por mais de dois meses, apesar da crescente evidência em sua defesa e centenas de membros da comunidade que atestam seu caráter.
Os críticos afirmam que essa doutrina jurídica é inconstitucional, fortalecendo preconceitos institucionalizados no sistema de justiça criminal. E teme-se que o atual momento político apenas aumente esses preconceitos. Nos Prazeres, Willian é a terceira pessoa inocente a ser injustamente detida ao longo dos anos. Orlando disse: “Aqui nos Prazeres, é a terceira vez que um inocente é acusado de algo que não fez. Esse tipo de situação é uma coisa que acontece no estado do Rio de Janeiro… Nosso estado não está preparado para combater a violência que ele mesmo cria”.
Willian ainda não teve seu dia no tribunal. A comunidade tem esperança: os dois outros detidos inocentes dos Prazeres foram finalmente libertados. E os moradores geralmente sentem que o encarceramento de Willian é o produto de um enorme mal-entendido que pode e será remediado em breve. É preocupante, no entanto, que este caso pareça seguir um padrão bastante familiar no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: um incidente ocorre e a polícia atribui a culpa a uma pessoa inocente, que está provisoriamente presa, durante a qual provas verificáveis sao ignoradas e os pedidos de habeas corpus negados, e a vida dessa pessoa fica potencialmente irreparável.
A esperança é que, durante o julgamento de Willian, evidências de seus advogados e da comunidade sejam valorizadas e levadas em consideração. A comunidade acredita que Willian será libertado; ele sempre foi um bom membro da comunidade e cidadão. Agora, é preciso esperar, embora a organização em seu nome não pare. De fato, Orlando lembrou que nunca havia visto um senso tão forte de comunidade em todos os seus anos nos Prazeres: “Essa tragédia iluminou os Prazeres com o espírito de comunidade. Willian [finalmente] transformou os Prazeres em uma comunidade. Juntos, somos verdadeiramente muito mais fortes”.
Por fim, o bom amigo de Willian, Roberto, deixou suas últimas reflexões para aqueles, de fora da comunidade, que assistiram ao caso. Quando perguntado sobre o que ele espera para o futuro, Roberto respondeu: “Que quem mora na pista abra mais os olhos para quem tá no morro. Para quem mora na pista todo mundo é vagabundo, todo mundo é envolvido [no tráfico]”. A esperança é que a juíza Paula Fernandes Machado leve a mensagem ao seu coração. A vida de um jovem brilhante e amado depende disso.