Esta é a terceira de uma série de quatro matérias que traz à luz uma pesquisa que evidencia o padrão territorial desigual no qual a violência contra a mulher se materializa na cidade do Rio de Janeiro.
A violência contra mulher é um mecanismo estrutural que atua como política de controle, cujo objetivo é manter as mulheres em desvantagem e desigualdade sistêmica na sociedade. A violência legitimada pela desvalorização das mulheres reproduz o domínio patriarcal por meio da intimidação e nasce inicialmente nos lares, fortalecendo um padrão de comportamento que reverbera nas ruas. Como demonstrado nas matérias anteriores, o isolamento territorial e, consequentemente, a dificuldade de acesso às leis e aos serviços somam-se às violações em áreas dominadas pelo crime organizado.
Além de uma situação de violência social generalizada, a vulnerabilidade que alimenta esse ciclo de violências é influenciada por fatores como a dependência financeira, uso de álcool ou drogas e o desemprego. O cartograma abaixo permite observar a possível correlação entre desemprego e violência contra a mulher no Rio de Janeiro.
O padrão territorial diferenciado se evidencia em relação à cor das vítimas, pois o percentual de mulheres negras ou pardas vítimas de lesão corporal dolosa é significativamente superior na Zona Oeste, como demonstra a tabela abaixo. A lesão corporal dolosa, categoria geral do que reconhecidamente se configura em sua maioria como violência doméstica ou familiar, tem a casa como local rotineiro. Na Zona Oeste da cidade esse padrão se verifica de forma evidente, sendo menos expressivo no restante da cidade, o que demonstra como as políticas urbanas, em especial sobre o uso e ocupação do solo, podem modificar padrões de violência.
Tabela 1: Característica das ocorrências de lesão corporal dolosa por zona (elaborado pela autora).
ZONA | COR* | LOCAL* | IDADE* | |||||
Branca | Negra | Parda | Moradia | Local Público | Criança | Adolescente | Adulta | |
Oeste | 43% | 13% | 42% | 62% | 34% | 3% | 7% | 88% |
Norte | 49% | 14% | 36% | 56% | 39% | 3% | 7% | 89% |
Centro | 55% | 12% | 31% | 34% | 59% | 2% | 5% | 91% |
Sul | 63% | 10% | 24% | 47% | 47% | 2% | 5% | 91% |
*A identificação de cor, local e idade não ocorre em todos os casos notificados, por esse motivo o percentual não totaliza 100%. |
Aqui, é importante novamente destacar a diferença entre os dados apresentados em valores absolutos e por taxas. Os valores absolutos expressam a quantidade de ocorrências de violência contra a mulher registradas em determinado território sem considerar outras variantes. Já o cálculo das taxas demonstra quantas mulheres foram vítimas de violência em relação à população feminina residente em determinado território, ou seja, considera a variante populacional para compreender o fenômeno. Como já explicitado, a distância temporal do Censo 2010, assim como as grandes transformações urbanas, impossibilitam o cálculo das projeções para a população feminina por CISP para todo o período analisado, por isso o cálculo por taxa é apresentado somente para o ano de 2010 com o intuito de perceber a correlação entre os dados.
Assim, similarmente à incidência de estupros, quando considerados os valores absolutos, a Zona Oeste figura como a área que concentra mais ocorrências de lesão corporal dolosa, mas a taxa por 10.000 mulheres para 2010 é mais elevada no Centro.
Tabela 2: Lesão Corporal Dolosa no Rio de Janeiro por Zona em valores absolutos (2009-2016) e por taxa de 10.000 mulheres (2010) (elaborado pela autora).
% valores absolutos – 2009-2016 | |||
Zona Oeste | Zona Norte | Zona Sul | Centro |
53,4% | 35,4% | 7,3% | 3,9% |
Taxa de 10.000 mulheres – Censo 2010 | |||
Zona Oeste | Zona Norte | Zona Sul | Centro |
67,28 | 49,07 | 40,23 | 142,0 |
A expressão “feminicídio” tem sido difundida e empregada de forma estratégica por militantes e pesquisadoras feministas desde a década de 1990 e progressivamente incorporada como tipo penal nas legislações de diversos países da América Latina. Nesse processo, tem se evidenciado o caráter discriminatório da invisibilidade e a opressão sistemática que promove a impunidade no caso desses crimes, destacando a omissão do Estado como fator para a persistência da violência contra a mulher. Nesse contexto, é fundamental observar que o feminicídio íntimo, comumente, é o fim trágico de um ciclo de violência, legitimado pela sociedade e pela mídia pela expressão “crime passional”.
Assim, existe uma correlação entre territórios onde mais se agride e violenta mulheres e onde ocorrem mais feminicídios, como demonstra a figura acima. Nesse sentido, é fundamental que as políticas públicas sejam concebidas de forma integrada e multidisciplinar, incorporando a segurança pública na formulação de outras políticas. Nos casos de morte violenta de mulheres, o padrão territorial segregador e racista novamente se evidencia em relação à cor das vítimas, conforme tabela abaixo.
Tabela 3: Característica das ocorrências de morte violenta de mulheres por zona (elaborado pela autora).
ZONA | COR* | LOCAL* | IDADE* | |||||
Branca | Negra | Parda | Moradia | Local Público | Criança | Adolescente | Adulta | |
Oeste | 28% | 16% | 50% | 31% | 48% | 4% | 5% | 66% |
Norte | 33% | 1% | 42% | 32% | 49% | 5% | 5% | 62% |
Centro | 48% | 7% | 31% | 31% | 45% | 7% | 0% | 71% |
Sul | 48% | 7% | 45% | 41% | 50% | 7% | 5% | 79% |
*A identificação de cor, local e idade não ocorre em todos os casos notificados, por esse motivo o percentual não totaliza 100%. |
Nesse tipo de crime, um fato importante é que a qualidade das informações coletadas na Zona Sul é superior às demais regiões da cidade, pois tem um menor percentual de não informação sobre as características do crime, o que pode refletir uma negligência no registro das ocorrências como resultado de uma discriminação socioeconômica.
A impunidade penal característica das mortes violentas de mulheres determina que enquanto uma violação do estado de direito, considerando que as autoridades não cumprem efetivamente suas funções, o feminicídio é um crime do Estado. Assim, até que ponto diante da situação de violência generalizada em diversos níveis não se pode dizer que a exceção deixou de ser uma suspensão temporal do estado de direito e se tornou regra, vulnerabilizando ainda mais as mulheres que vivenciam um cotidiano no qual a negação de direitos é permanente e estrutural do patriarcado?
Série Completa: A Violência Contra a Mulher no Contexto das Remoções
Parte 1: Introdução
Parte 2: Violência como Política de Controle
Parte 3: Onde Mais se Bate, Mais se Mata?
Parte 4: O Machismo Institucional na Cidade Patriarcal