No dia 26 de abril, um expressivo grupo de mobilizadores e moradores de favelas, acadêmicos e ativistas se reuniram para denunciar e protestar contra a negligência das autoridades da prefeitura durante as enchentes mortais ocorridas em 6 de fevereiro e 8 de abril em uma audiência pública organizada pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) das Enchentes da Câmara Municipal do Rio de Janeiro. O Vereador Tarcísio Motta, do PSOL, chefe da CPI, convidou o Prefeito Marcelo Crivella a participar da reunião para abordar os impactos agudos que as recentes enchentes tiveram sobre comunidades vulneráveis. Antecipando a presença do prefeito—ou a falta dele—os participantes distribuíram petições pró-ambientais e cartazes entre eles, protestando contra a administração de Crivella antes do início da reunião. Gritos de “Vidas Faveladas Importam!” Ecoaram por toda a grande galeria onde o evento foi realizado. A audiência também foi transmitida ao vivo no Facebook.
A sessão começou com um breve discurso introdutório de Motta, que anunciou à galeria que o prefeito se recusou a comparecer devido a “compromissos anteriores”. A multidão, duvidando da veracidade da desculpa de Crivella, se manifestou considerando vergonhosa a sua recusa em participar da audiência pública. Motta, no entanto, insistiu que o convite a Crivella está aberto e que a implementação de políticas públicas para “diminuir as chances que as chuvas se transformam em tragédias” exigiria adesão de Crivella. Em seguida, ele apresentou Renato Cinco, do PSOL, relator oficial da CPI, juntamente com Marcelo Arar (PTB), Rosa Fernandes (MDB) e Tiãozinho do Jacaré (PRB) como membros da comissão. Antes de concluir seus comentários, Motta fez questão de expressar sua gratidão pela “presença de cada morador atingido pelas chuvas de fevereiro e abril”, especialmente os representantes da Rocinha, Vidigal, Horto, Manguinhos, Jacarezinho, Fazenda Botafogo, Rio das Pedras, Jardim Maravilha e Barra de Guaratiba, que foram convidados a testemunhar perante a CPI.
Motta então deu a palavra a Maria Júlia Miranda, coordenadora do Núcleo de Terras e Habitação (NUTH) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, que demonstrou pesar pela inadequação da resposta da prefeitura às enchentes em 6 de fevereiro e 8 de abril. Maria Júlia contou sua experiência ao visitar os moradores do Laboriaux, a parte mais alta da Rocinha, que foi bem sucedida ao estimular a prefeitura a melhorar a infraestrutura pública em seu bairro. Ela encorajou os moradores de outras comunidades vulneráveis, como Laboriaux, a sentirem-se encorajados a responsabilizar as autoridades públicas por sua desatenção e a também exigir proteção perante a lei. O ponto principal de Maria Júlia foi que devido ao fato de que, “quase 25% da população do Rio de Janeiro mora em favelas”, a prefeitura não pode tratar essas comunidades como se fossem impermanentes ou separadas do resto da cidade. As favelas permanecerão excessivamente vulneráveis a eventos climáticos extremos, argumentou Maria Júlia, até que a prefeitura passe a fornecer-lhes os serviços básicos aos quais têm direito legal.
Em seguida, Motta iniciou um diálogo entre os moradores das favelas e a CPI. Ele deu a cada morador cinco minutos para falar e encorajou-os a se sentirem “absolutamente livres” para compartilhar seus sentimentos com a comissão, sem medo de retaliação. O primeiro morador a compartilhar sua história foi Felipe Paiva, do Vidigal, que disse à CPI que, no dia 6 de fevereiro, sua casa havia desmoronado enquanto ele estava dentro. As sirenes de alerta do bairro não foram ativadas e, consequentemente, Felipe foi incapaz de evacuar a área com antecedência. “Não tenho possibilidade de fazer a reconstrução e não sei quando vou voltar para casa”, disse ele. O Rio de Janeiro “tem esse problema há muito tempo”, lamentou Felipe, mas mortes e danos ocorrem “principalmente nas áreas mais pobres”. No Vidigal, de acordo com Felipe, serviços públicos em grande escala ainda precisam ser retomados na comunidade. O lixo permaneceu nas ruas por semanas após as enchentes de abril, consequentemente impactando a saúde dos moradores. “Gostaria de uma resposta—uma resposta objetiva e prática” da prefeitura sobre essas questões, concluiu Felipe ao deixar a tribuna.
André Gosi, representante da Associação de Moradores do Vidigal, corroborou o testemunho de Felipe sobre o estado de seu bairro após as enchentes. “Favelas fazem parte da cidade do Rio de Janeiro… e eu não gosto de fazer diferença entre um morador do Leblon e de um morador do Vidigal”, ele compartilhou. Ele implorou à CPI que considerasse que “não vivemos em favelas porque queremos, vivemos [na favela] por necessidade… falta ao poder público competência [para fornecer serviços públicos]. Ou [ele] não dá importância?”
Durante seus cinco minutos na tribuna, Maria Consuelo Pereira dos Santos da Rocinha disse à CPI: “Tudo de bom que me aconteceu, aconteceu na favela da Rocinha”. Ela queria contradizer as narrativas negativas construídas sobre a Rocinha pela mídia e sentia orgulho em poder falar em nome de seus amigos e vizinhos que haviam sido prejudicados por inundações e deslizamentos de terra. Maria Consuelo então leu uma carta aberta dos moradores da Rocinha para a CPI que, entre outras demandas, solicitou melhores programas de educação ambiental, inclusive empenho para planejamento urbano, e sistemas de alerta para avisar aos moradores sobre eventos climáticos extremos. “O slogan da campanha de Crivella era ‘chegou a hora de cuidar das pessoas’— mas quais?”, Disse Maria Consuelo, “porque muita gente não está recebendo nada”. Ela recebeu uma ovação retumbante ao deixar a tribuna.
Um depoimento particularmente angustiante foi então dado por Vanda Ventura, moradora da Rocinha e mãe de três filhos. Chegando às lágrimas, Vanda disse ao público que uma árvore havia caído em sua casa, e que ela ficou na cama com suas três filhas enquanto o nível da água subia e varria todos os seus pertences. “Não tenho casa, não tenho dinheiro… e nunca ouvi uma sirene”, ela suplicou. Ela e seus filhos estão vivendo nas ruas e não têm certeza de para onde irão. Vanda não prevê que a assistência do aluguel social para aqueles que perderam suas casas—no valor de R$400—possa melhorar a sua situação. “Como vou encontrar uma casa no Rio de Janeiro por R$400?”, ela gritou, antes de se afastar abruptamente do microfone, abalada. Motta, se dirigindo diretamente à Vanda, agradeceu a ela por compartilhar sua história e prometeu que a CPI lutaria para evitar que injustiças semelhantes aconteçam aos moradores da favela no futuro.
Testemunhos de moradores continuaram nesse sentido por cerca de duas horas, com quase todos os moradores condenando a inação de Crivella durante as enchentes em fevereiro e abril e expressando medo de sofrer tragédias semelhantes no futuro. Laura dos Santos Paiva, do Horto, exigiu saber por que a “prefeitura não pode se organizar para ajudar todas as pessoas”, enquanto Clarice da Paz, de Barra de Guaratiba, perguntou por que a prefeitura não havia instalado sirenes de emergência em seu bairro. Clarice disse à CPI que, em Barra de Guaratiba, “sempre lembramos que a qualquer momento isso pode acontecer de novo”. Rosilane da Silva, também de Barra de Guaratiba, ficou consternada com a falta de disposição da cidade em inspecionar sua casa e garantir a solidez estrutural solicitada por ela. Sua casa foi severamente danificada na enchente e a prefeitura gerou um alto gasto por danos que poderiam ter sido evitados por uma inspeção. “Essa é a realidade no Brasil? Pessoas que poderiam nos ajudar, mas não vão?”, perguntou Rosilane no final de seu discurso.
À medida que a cascata de histórias trágicas aumentava a sensação de urgência e irascibilidade na sala, os representantes de comunidades começaram a pedir solidariedade inter-favela em seus depoimentos. Wesley Piedade, representante do Jardim Maravilha em Campo Grande, elogiou sua comunidade por “esquecer que eles perderam as coisas e se uniram”. Ele expressou frustração pelo fato da complacência de autoridades municipais e estaduais ter forçado os moradores do Jardim Maravilha a assumirem responsabilidade por seus próprios esforços de reconstrução pós-enchente, mas elogiou sua comunidade por sua resiliência e instou outras favelas a se orgulharem de sua própria mobilização após a tragédia. Antonio, representante da Comissão de Moradores de Rio das Pedras, pediu um momento de silêncio em nome de todas as vítimas das enchentes de fevereiro e abril. “Eles foram abandonados pelo poder público”, disse ele, mas “vivem ainda” e merecem ser lembrados com dignidade. Antonio lembrou à galeria que os moradores de Rio das Pedras e de outras favelas “trabalham para o resto da cidade e a gente tem que valorizá-los” por esse trabalho duro e honesto.
Depois que os depoimentos de moradores foram concluídos, Teresa Bergher, do PSDB, falou sobre a falha da prefeitura em alocar uma parcela suficiente de seu orçamento para sistemas de prevenção e drenagem de enchentes. Em seguida, o relator da CPI, Renato Cinco, fez um discurso emocionado sobre a culpabilidade das autoridades municipais na marginalização das favelas. Em uma crítica incisiva à insistência de Crivella de que a natureza ilegal e “desordenada” das favelas é a causa das mortes causadas pelas inundações, Cinco assinalou que muitas mansões e bairros ricos no Rio de Janeiro foram inicialmente construídos ilegalmente. Ele observou que “são sempre os pobres os responsáveis pelos problemas da cidade”, e os ricos nunca são responsabilizados por suas ações. “A informalidade não é o problema” no Rio de Janeiro, insistiu Cinco. “Por que nossa cidade não tem habitações [adequadas]? Por que temos esse nível de desigualdade?” Ele condenou o desejo “vergonhoso” da prefeitura de deslocar moradores de favelas em nome do desenvolvimento imobiliário e convocou os participantes a se juntarem a ele em uma audiência pública em 10 de maio para protestar contra os planos de Crivella de construir edifícios em terras protegidas.
Finalmente, vários representantes da prefeitura foram chamados para falar perante a CPI. Roberto Nascimento da Silva, da Secretaria de Conservação do Rio, foi o primeiro a apresentar a resposta de seu departamento às enchentes em 6 de fevereiro e 8 de abril. Roberto afirmou que seu gabinete “trabalha junto à prefeitura” para melhorar as medidas de prevenção e resposta às enchentes. Ele apontou para um programa de conservação de um rio que seu departamento havia implementado em Rio das Pedras como prova de seu compromisso com a melhoria da saúde e da educação nas favelas. O público reclamou em resposta a perceptível falsidade, e gritos de “mentiroso” circularam, mas Motta amenizou a tensão estimulando os participantes a “tentar ouvir” o que Roberto e outras autoridades tinham a dizer para incentivá-los a trabalharem em parceria com os moradores. Representantes da Secretaria Municipal de Infraestrutura e Habitação e da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos e o chefe executivo de Resiliência e Operações da Prefeitura do Rio puderam fazer breves apresentações sobre as medidas tomadas por seus escritórios para mitigar os impactos das inundações de fevereiro e abril.
Em última análise, de acordo com Motta, as ações da prefeitura são insuficientes para evitar futuros desastres. Em uma declaração conclusiva, ele argumentou que “estamos diante de uma situação em que a prefeitura diz ‘estamos fazendo’, mas não fazem o que é estrutural. É muito importante que o governo vá a Barra de Guaratiba ver as obras que estão faltando, vá ao Vidigal para resolver a retirada do lixo, vá ao Horto para solucionar a drenagem do Rio Macacos, por exemplo”.