Favela-Bairro foi um programa ambicioso estabelecido em 1994 com o objetivo de urbanizar as favelas levando-as ao status de bairros formais por meio de intervenções de infraestrutura, serviços públicos, instalações públicas e políticas públicas. Implementado, primeiramente, pelo então prefeito César Maia, o programa foi desenhado pelo arquiteto Luiz Paulo Conde, que, na época, assumiu a Secretária Municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro, antes de ser eleito prefeito nas eleições de 1996 com o apoio de Maia, que nessa época aspirava o cargo de governador do estado.
O programa continuou durante o segundo mandato de Maia como prefeito (2001-2005) e foi diminuído durante seu terceiro mandato (2006-2010) quando, em seu lugar, o programa Morar Carioca foi desenhado, tendo como base as lições de seu antecessor. Morar Carioca foi, então, declarado como uma política pelo ex-prefeito Eduardo Paes em 2010, embora sua administração tenha feito pouco através dele. Mais recentemente, o atual prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, anunciou a retomada do Favela-Bairro após sua eleição, em 2017. De acordo com o governo municipal, a terceira fase do Favela-Bairro beneficiará 90.000 pessoas em 23 comunidades.
Em suas duas primeiras fases (1994-2000 e 2000-2008), o programa Favela-Bairro foi conhecido por trazer serviços de infraestrutura a um inédito número de comunidades, entre tentativas mundiais de melhorar os assentamentos informais, com mais de 130 favelas e loteamentos irregulares sendo alvo do programa. Ele foi visto pelas instituições internacionais, como o Banco Mundial, como um líder global nessa área. Dito isto, localmente havia um sentimento generalizado de que, muitas vezes, ocorreu má implementação, quer devido a materiais de construção de baixa qualidade, a planejamento que não responde à comunidade (que é corolário da participação tokenista comum para o projeto), ou a subestimação do número de pessoas que necessitavam de serviços (levando à prestação de serviços cronicamente insuficiente, por exemplo).
Entre 6 e 8 de maio de 2019, mais de uma década depois do programa acabar e 25 anos depois do início do Favela-Bairro, arquitetos e urbanistas de todo o Rio de Janeiro se reuniram no Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB/RJ) para reavaliar as realizações e falhas do programa. Responsável pelo lançamento da chamada pública de propostas e seleção da metodologia vencedora, que guiaria as intervenções do programa, o IAB foi fundamental para a realização do programa, o que tornou sua sede o local ideal para refletir sobre o seu legado.
Durante os primeiros dois dias de seminário, o debate foi centralizado na insuficiente e baixa qualidade da participação e da transparência que permearam a formulação do programa e seleção de projetos (em termos de localização e natureza das intervenções), e em torno do desalinhamento das políticas habitacionais urbanas, que deste modo contribuem para a reprodução de um modelo excludente de cidade que faz da informalidade a única escolha para uma parcela significativa da população. Os debatedores também abordaram os obstáculos ao sucesso dos projetos de infraestrutura prometidos pelo Favela-Bairro, tais como a falta de financiamento seguro para o programa.
Além de refletir sobre questões financeiras e sobre a má gestão que levaram ao fim do programa Favela-Bairro, que envolveu governos municipal e estadual, os participantes levantaram questões de fundo no programa decorrente das percepções estigmatizadas das favelas e seus moradores. Durante a sessão intitulada “Favela-Bairro na Visão dos Líderes Comunitários”—destacando a participação de Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas, originário do Complexo da Maré; Itamar Silva, coordenador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (IBASE), do Santa Marta; e Roberto Lucena, membro do grupo ativista comunitário Rocinha Sem Fronteiras, da Rocinha—os palestrantes discutiram como a sociedade como um todo ignora o potencial das favelas enquanto, ao mesmo tempo, espera que seus moradores exijam seus direitos de forma mais incisiva do que aqueles que não vivem em favelas.
O terceiro dia de seminário foi aberto por Pedro da Luz, presidente do IAB do Rio, que apresentou uma visão geral do programa do dia. Primeiro, acadêmicos de universidades do Rio refletiram sobre o programa Favela-Bairro, seguido de um diálogo com a participação da platéia. O segundo segmento consistiu de uma visão geral das políticas públicas atuais relacionadas ao desenvolvimento, integração e urbanização das favelas, conduzida por membros do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro (CAU/RJ). Finalmente, representantes do IAB e CAU e políticos locais ofereceram considerações e reflexões finais.
O professor Marcelo Baumann Burgos, da PUC-Rio explicou que apenas na década de 1990, considerada a “década das cidades”, que as cidades se tornaram assunto de pesquisa e debate como espaços multifacetados e democráticos—não apenas um campo para intervenção governamental, mas para intervenção social também. Esses debates não se limitaram a organizações da sociedade civil; eles também floresceram dentro das universidades, que cada vez mais produziam pesquisas a serviço do interesse público.
Então, Marcelo e Maria Alice Rezende, também professora da PUC, questionaram o papel da pesquisa e dos pesquisadores acadêmicos nas favelas. Eles notaram que todos os profissionais que trabalham nas favelas e conduzem pesquisa nessas comunidades deveriam ser equipados com uma educação interdisciplinar que inclui treinamento de serviço social, de forma a ver as favelas não apenas em termos de necessidade e assistência, mas também em termos da força e da desenvoltura daqueles que vivem lá.
Marcelo discutiu a “nova marca” do Favela-Bairro como Morar Carioca, que foi implementado em conjunto com o programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), explicando que esses programas não tiveram sucesso porque eles trataram as favelas como problemas—enquanto que o Favela-Bairro sinalizou uma possível mudança na abordagem do governo em relação às favelas, que anteriormente haviam sido consideradas “aberrações”. Maria Alice, então, forneceu uma visão geral das políticas do Rio no final do século XX, que levaram ao desenvolvimento do programa Favela-Bairro. De acordo com Maria Alice, muitos debates que eventualmente deram origem ao Favela-Bairro se concentraram em diminuir as marcas visíveis e invisíveis que a ditadura militar brasileira deixou na paisagem urbana do Rio de Janeiro, que incluiu esforços para integrar fisicamente e socialmente as favelas da cidade. Esse programa foi guiado pela noção de que “[os moradores da favela] merecem uma cidade, não apenas uma habitação”, de acordo com Maria Alice. Ela destacou como os líderes acadêmicos e políticos daquele tempo, provavelmente pela primeira vez na história de urbanizações de favelas do Rio, tentaram incluir contribuições significativas vindas dos moradores. Debates públicos e as perspectivas dos moradores que foram ouvidos nesses fóruns foram centrais para a criação do Favela-Bairro.
Adauto Lucio Cardoso da UFRJ, Francine Helfreich e Ronaldo de Moraes Brilhante da UFF discutiram as conquistas do Favela-Bairro e os problemas sofridos pelo programa. O programa Morar Carioca e o atual estado do desenvolvimento urbano no nível municipal e estadual nas favelas também foram discutidos. Adauto comentou a falta de continuidade típica de muitos programas de bem-estar social no Rio e no Brasil como um todo, resultando na inabilidade de se fazer mudanças reais. “Atualmente”, ele declara, “a cidade não tem nenhum programa [de desenvolvimento de favela]”, apesar da afirmação municipal de que o Favela-Bairro será reativado. Adauto falou sobre quantos outros prefeitos de outras grandes cidades brasileiras investiram em programas de urbanização de favelas no final do século XX, mas com resultados diversos, em grande parte graças a essa questão de continuidade. Francine, que desenvolveu uma extensiva pesquisa na área de ciências sociais sobre as favelas da Maré, falou que ela não poderia subestimar os benefícios da pesquisa—não apenas para as comunidades envolvidas, mas para os pesquisadores também. Ela afirmou que “[nossa sociedade] tem um medo despropositado do que é pobre”, que “impede que os líderes de todos os lados do espectro acadêmico tratem as favelas com respeito. Através da realização de pesquisas em comunidades como a Maré, esses medos irracionais podem ser eliminados”. Ronaldo fechou o debate resumindo os pontos apresentados anteriormente pelos demais palestrantes. Ele enfatizou a importância do Favela-Bairro não apenas como um programa de urbanização de favelas, mas também como um empreendimento para integrar melhor a sociedade, cuja complexidade vai além de meras intervenções espaciais.
Finalmente, na última sessão, o deputado Flávio Serafini e o vereador Tarcísio Motta falaram sobre suas preocupações com a situação política atual na cidade e no estado do Rio de Janeiro—especialmente em relação a segurança, bem-estar e desenvolvimento das favelas. Eles discutiram como falhas no planejamento levaram a um maior número de mortes como resultado das chuvas fortes no Rio e como projetos sociais paralisados e cortes no orçamento entre vários setores prejudicaram mais as comunidades de baixa renda do Rio. Eles encerraram escrevendo uma carta endereçada ao Prefeito Crivella e ao Governador Wilson Witzel pedindo que retomem os projetos de planejamento parados que são cruciais para o tecido urbano do Rio como um todo, mas especialmente para as favelas da cidade.