A Experiência de um Homem Trans em Magé, na Baixada Fluminense

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Esta matéria faz parte da série Desafios da Vida em Magé.

No ano em que se comemora os 50 anos da Revolta de Stonewall, a vida da população LGBTQI+ ainda é atravessada por inúmeros desafios. A falta de políticas públicas específicas e a pouca discussão da sociedade sobre a diversidade são alguns dos fatores que dificultam a vida dos homossexuais e das pessoas trans, no Brasil. Essas dificuldades permeiam a rotina de Nicolas Carmo, o Nico, homem trans, de 24 anos, natural do Ceará e que atualmente mora em Magé, na Baixada Fluminense.

Nico sempre soube que era diferente. Aos 16 anos se percebeu como mulher lésbica, pois desconhecia o termo transgênero. E somente no ano passado, acompanhando a trajetória de Tarso Brant, ator trans que inspirou a personagem Ivana/Ivan na novela da Rede GloboA Força do Querer”, resolveu que era hora de passar por sua transição. O processo transitório na vida de uma pessoa trans é um momento muito importante, pois é nessa fase em que começa a hormonização, período de tratamento com hormônios para a adequação do seu corpo.

A transição, no entanto, não foi nada fácil e continua sendo um grande problema na vida de Nico. Desempregado, ele precisou fazer o acompanhamento pelo SUS. Mas além da falta de estrutura dos equipamentos do SUS em Magé, que inclui a pouca quantidade de médicos, o jovem se depara com outras dificuldades, que para ele já são habituais. É comum, por exemplo, na sala de espera para uma consulta ele ouvir insinuações de que sua condição “é coisa do demônio” ou que aquele espaço não tem como atender “pessoas como ele”. De uma voz doce e sensibilidade aguçada, Nico nunca discute. “Afinal, eu não vou mudar a cabeça das pessoas, né?”

O processo de alteração hormonal é muito delicado. O acompanhamento deve ser feito por um médico endocrinologista a cada dois meses, sobretudo no primeiro ano, e deve ser iniciado depois de uma série de exames. Tomar medicação para alterar o corpo pode causar sérios riscos à saúde se feita sem acompanhamento. Para o homem trans, a hormonização pode aumentar as chances de ocorrer hipertensão, trombose, aumento do colesterol, além da possibilidade de um infarto agudo do miocárdio.

Ter acesso ao acompanhamento médico não é a realidade de todos os transgêneros. Infelizmente, quem não tem como arcar com consultas particulares depende, exclusivamente, dos postos de saúde e hospitais públicos e em muitos casos desistem, pois a espera pode ser longa. E essa é, também, a realidade de Nico. Cansado de refazer todos os exames, na quarta vez que foi encaminhado para recomeçar o acompanhamento médico ele desistiu e resolveu comprar as medicações sem a prescrição médica. Quando tem alguma dúvida sobre reações às medicações, procura um amigo da área de saúde para lhe ajudar. Diante desse processo constantemente interrompido, seja por falta de receita médica para a compra do remédio ou por falta de dinheiro, a voz de Nico ainda não atingiu o tom que ele gostaria.

Há cinco anos morando na Baixada Fluminense, Nico veio para o Rio de Janeiro em busca de liberdade de expressão, pois na sua cidade, Coreaú, com pouco mais de 20.000 habitantes, transgeneridade não é aceitada. Ele disse, no entanto, que encontrou a mesma dificuldade na Baixada. “Lá [no Ceará] isso era coisa de outro mundo. Eu vim pro Rio com a intenção de me expor. Mas Magé é muito parecida com a minha cidade. Quando fui tentar a mastectomia, no posto de saúde, me disseram que só quem tinha tido câncer de mama poderia realizar. O atendimento foi péssimo”.

Para que seu processo de liberdade e autonomia seja completo, o jovem já encaminhou na justiça a mudança de seu nome. Em decisão do Supremo Tribunal Federal, pessoas trans podem fazer alteração do seu registro civil sem que haja necessidade da intervenção cirúrgica de mudança de sexo. A decisão não tem valor de lei, mas sim de jurisprudência, abrindo um precedente para as pessoas trans terem acesso a esse direito. O Projeto de Lei 5002/2013, a Lei “João Nery”, tramitou durante seis anos no Congresso e foi arquivada em janeiro deste ano. O PL que versa sobre a identidade de gênero das pessoas trans leva esse nome em homenagem a João Nery, escritor considerado o primeiro homem trans a ser operado no Brasil e um dos maiores ativistas da defesa dos direitos LGBT do país. Com a desistência de seu autor, o deputado Jean Wyllys, de assumir seu terceiro mandato, devido a graves ameaças de morte recebidas, é possível que esse PL não volte à discussão tão cedo.

Outro fator importante para as pessoas trans na busca por autonomia é o acesso ao mercado de trabalho. Em seu único emprego formal, como atendente de papelaria, Nico foi demitido quando começou o seu processo de transição. Depois de dois anos no cargo, até hoje ele tenta entender o real motivo da demissão. “Sem dúvidas foi por preconceito. Eles querem pessoas maquiadas para trabalhar”. Atualmente, faz trabalhos temporários como DJ, body piercer e fotógrafo. Quer finalizar o ensino médio, que cursa através de um programa de aceleração, com o intuito de conseguir um emprego e continuar na busca pela realização de seu sonho, que é fazer a mastectomia. Hoje, ele usa o binder, faixa que reduz os seios. Por ser feito para homens trans em processo de transição, a faixa aperta muito e o deixa sem ar. Além disso, o uso da faixa o inibe de aceitar convites para ir à praia ou locais que tenha que se banhar sem roupa.

Dividindo a vida com sua companheira Gabriela, de 21 anos, Nico afirma que ser trans não é um desafio. “Ser trans pra mim é ter a liberdade de expressar quem eu sou. O desafio mesmo é conseguir o que é preciso para ser o que é. Fazer as consultas, os exames e tudo que tem que ser feito”. Perguntado sobre o futuro, ele conta que tem vontade de ajudar o próximo, de participar de coletivos e atividades de acolhimento para outras pessoas trans que ainda não sabem o que fazer e como assumir a vida nova, com suas reais identidades.

Thábara Garcia, moradora de Magé, é professora e faz parte do coletivo Roda de Mulheres da Baixada.