Dia 6 de outubro serão realizadas as eleições para conselheiros tutelares para o mandato de 2020 até 2023. No Rio de Janeiro, serão eleitos 95 conselheiros e 95 suplentes, distribuídos em 19 Conselhos Tutelares. Os Conselhos Tutelares são órgãos autônomos de garantia de direitos da criança e do adolescente instituídos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Os conselheiros atuam como porta-vozes das suas respectivas comunidades na articulação com órgãos e entidades para assegurar o cumprimento desses direitos.
As atribuições dos Conselhos Tutelares incluem atender e aconselhar os pais ou responsáveis; requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança; encaminhar ao Ministério Público infrações contra os direitos da criança ou adolescente; assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente, entre outros. O ECA ainda estabelece que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” às crianças e adolescentes.
Antes das eleições, os candidatos realizam uma prova objetiva de conhecimentos específicos sobre o ECA e uma prova discursiva a respeito do exercício profissional do conselheiro tutelar. A realização da prova garante que os eleitos tenham de fato os conhecimentos necessários e que tenham uma visão alinhada aos objetivos do trabalho. Após eleitos, eles realizarão ainda um curso de formação e então serão empossados. O momento atual é de campanha, onde os candidatos realizam reuniões e debates, de forma que os eleitores conheçam o candidato, sua trajetória pessoal e social e seu engajamento na promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente.
O voto para conselheiro tutelar é facultativo e aberto a todos que possuem título de eleitor. Cada pessoa escolherá um dentre os candidatos concorrendo para o Conselho Tutelar da região que abrange o bairro onde está registrada a sua zona eleitoral.
Para verificar em qual dos 19 Conselhos Tutelares fica o bairro onde está registrada a sua zona eleitoral, quais são os respectivos candidatos para essa região e os locais de votação clique aqui.
O Papel dos Conselhos Tutelares nas Favelas
Nas favelas, onde os direitos dos cidadãos muitas vezes são mais fracamente garantidos pelo Estado, a atuação do Conselho Tutelar se faz mais necessária. É o caso do episódio de fevereiro de 2018, em que crianças foram revistadas durante uma operação policial na comunidade Kelson’s, na Zona Norte da cidade, e que conselheiros tutelares declararam inconstitucional.
“Ser um conselheiro tutelar em um território de favela é muito diferente. As demandas e necessidades são outras. A construção social do indivíduo se dá de outra maneira”, coloca um candidato, destacando um desafio específico das favelas que se materializa nos dias de aula perdidos devido às operações policiais. Ele enfatiza ainda o papel do conselheiro tutelar em requisitar serviços públicos para um território e influenciar na alocação de orçamento para programas diversos. “São várias as ausências e violações do Estado, desde alimentação, saneamento, serviço de energia, de internet. Isso, por exemplo, influencia diretamente a capacidade de atendimento das escolas”, finaliza.
A atuação prévia e familiaridade do conselheiro com o território garante sua circulação e maior confiança por parte dos moradores. Isso permite uma melhor atuação e contribuições mais precisas para o diagnóstico dos programas e serviços necessários para o enfrentamento das violações em cada território.
O conselheiro tutelar goza de reputação ambígua entre os cidadãos, pois, ao mesmo tempo que tem papel fundamental na fiscalização contra o trabalho infantil, maus tratos parentais, dentre outras violações de direitos a crianças e adolescentes, muitos conselheiros estão presos a uma visão punitivista e deturpada sobre o que seria o “princípio do melhor interesse da criança e do adolescente”, estabelecido na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente. Muitos deles, com base neste fundamento, recorrem ao afastamento das crianças de suas famílias por meio do acolhimento institucional, ainda que o ECA preveja tal medida como excepcional, ou seja, ela só seria válida “após esgotadas as possibilidades de manutenção da criança ou do adolescente junto à família natural”.
“Chamar o Conselho Tutelar” virou uma ameaça para muitas famílias cujos próprios direitos já estão fragilizados, uma ameaça encarada como um sinônimo de mandar a criança para um abrigo e encaminhar para a adoção. “Os Conselhos ainda são vistos na favela pela visão punitiva, policialesca; as pessoas acham que o conselheiro é aquele que vai pegar a criança. Isso é reflexo do não entendimento do conselheiro da sua função. Precisamos de pessoas comprometidas com os direitos humanos, principalmente na conjuntura atual”, coloca outra candidata.
Neste sentido, mães que estão com seus filhos em situação de rua, que deixam os filhos sozinhos em casa para poder trabalhar ou que fazem os filhos trabalharem são exemplos de casos em que o Estado prefere retirar os filhos dessas mães e encaminhá-los para abrigos em vez de mitigar a vulnerabilidade que atinge a família com políticas sociais (como aluguel social, acesso a creche e ao Bolsa Família) para que tenham melhores condições de exercer a sua maternidade. Se existe vontade dos pais ou da família de cuidar da criança, o Estado deveria criar as condições para que a família cuide em vez de colocar a criança em um sistema que, além dos efeitos psicológicos que tem sobre a criança, onera a próprio Estado quando esse assume a sua tutela.
“O desafio está em desmistificar o real poder e o real papel do conselheiro tutelar. É o papel de ser um protetor dos direitos da criança mas também das famílias. Ele não tem o poder de tirar as crianças de suas famílias, não tem o papel de aplicar medidas judiciais. Tem o papel de responsabilidade, representatividade junto à comunidade. De solicitar serviços, de chegar junto do morador e demandar o que falta pra favela”, diz um terceiro candidato.
Eleger candidatos de favela também é importante “para que os jovens vejam que é um lugar que eles também podem ocupar”, coloca a candidata mencionada anteriormente. “É uma posição para a qual é exigido somente Ensino Médio, mas a maioria das pessoas que ocupa tem nível superior. Isso é um reflexo da falta de oportunidade para lideranças locais, que não conseguem acessar o ensino superior, que não conseguem se preparar bem pra fazer a prova, que não sabem a documentação necessária, que não sabem que podem pedir isenção da inscrição. As pessoas precisam enxergar a importância de votar e de democratizar esse processo”, finaliza ela.
Onda Conservadora nos Conselhos Tutelares
Funcionários que preferiram não se identificar compartilharam mensagens circulando que indicam os rumos atuais dos Conselhos Tutelares e com alguns dos candidatos que estão disputando esse pleito. Eles circularam nas redes sociais a seguinte mensagem:
“Tem uma galera querendo entrar no Conselho pra combater ideologia de gênero… Tem uma galera dizendo que o problema das crianças e adolescentes no Brasil é falta de Deus e que só oração resolve.”
Preocupa a estes funcionários que esteja permeando nos Conselhos o desrespeito às liberdades religiosas e restrição na concepção de famílias e da moral que os jovens devem seguir, especialmente diante do momento político conservador que o Brasil enfrenta. Essa parcialidade vai na contramão do caráter laico do Estado e seus órgãos, que segundo a Constituição, não podem se tornar espaço de propagação da moral de uma religião específica. Essa preocupação é ainda maior diante do potencial de mobilização que candidatos conservadores têm de igrejas, visto que o voto ao Conselho não é obrigatório e a maior parte da população não se mobiliza para votar.
Essa preocupação é ecoada pela perda do mandato de quatro conselheiros tutelares da região de Jacarepaguá no primeiro semestre desse ano. A ACTERJ (Associação dos Conselheiros Tutelares do Estado do Rio de Janeiro) e arquiteta Tainá de Paula, criada na Favela do Loteamento em Jacarepaguá, denunciaram o processo capitaneado pela Comissão de Ética dos Conselhos Tutelares que resultou na cassação como sendo arbitrário e enviesado. Já o CEDECA (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro) disse que a Comissão de Ética extrapolou suas atribuições definidas por lei e questionou a legalidade da decisão, que não foi apreciada pela Corregedoria dos Conselhos Tutelares e nem homologada pelo CMDCA (Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro). Diversos candidatos falam em perseguição política.
O vereador Reimont também denunciou em sessão ordinária da Câmara no dia 6 de junho que a cassação está inserida em um momento político maior de retrocessos, visto que todos os conselheiros eram de linha progressista e defendiam o funcionamento dos conselhos tutelares como colegiados, privilegiando as decisões coletivas sobre as decisões centralizadas nas mãos dos conselheiros individuais. Para ele, os mandatos foram cassados de maneira unilateral e sem direito de resposta, não seguindo a lei que rege os Conselhos, que coloca que a cassação do mandato é a última de três medidas que podem ser adotadas.
Outra preocupação compartilhada por muitos funcionários e candidatos está no decreto de flexibilização do porte de armas de Bolsonaro, que dá aos conselheiros tutelares a prerrogativa de não precisar comprovar “efetiva necessidade” para carregar armas fora de casa, o que acirra a visão punitivista do cargo.