Esta é a segunda matéria de uma série gerada por uma parceria, de um ano, com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego na Califórnia, para produzir matérias sobre direitos humanos para o RioOnWatch. Esta entrevista foi realizada por Carla Souza, cria da Rocinha, pedagoga e professora de educação infantil, em contribuição especial para o RioOnWatch.
Há exatamente um ano, por volta das 7:30h do dia 18 de setembro de 2018, moradores do Chapéu Mangueira e Babilônia, na Zona Sul, marcharam em protesto espontâneo, com o guarda-chuva que Rodrigo Alexandre da Silva Serrano, de 26 anos, carregava e que foi confundido com um fuzil por policiais militares. Segundo moradores, na noite do dia anterior, quando Rodrigo estava parado—no ponto de ônibus no Chapéu Mangueira—esperando a sua mulher com um canguru, para colocar o filho menor, e um guarda-chuva apoiado num táxi, policiais subiram atirando ao confundirem o guarda-chuva com uma arma e alvejaram Rodrigo causando a sua morte.
Um ano se passou e o RioOnWatch ouviu Valéria Assis da Silva, mãe de Rodrigo, que nos concedeu esta tocante entrevista que documenta a história de Rodrigo e a dor de quem fica, e ainda tem que lutar por justiça, e ser mais uma dentre as inúmeras mães de vítimas da violência de Estado, em favelas no Rio de Janeiro.
Dona Valéria é uma mulher negra moradora da Zona Oeste, mãe de três, vó de sete, dois rapazes e uma menina que adotou aos 12 anos e que hoje tem 32. Como é comum na vida de mulheres negras deste país sua vida se dividia entre sustentar a casa e cuidar dos seus filhos de maneira digna. E assim foi! Rodrigo, um dos filhos de D. Valéria, rapaz cria do Cesarão, localizado em Santa Cruz, gostava de bola e desde cedo já estava às voltas com as “peladas” e jogos em pequenos clubes de futebol. Sua trajetória com o esporte é motivo de alegria até hoje para seus familiares. Outra característica de Rodrigo, que sua família se orgulha em dizer, é sobre seu sorriso e camaradagem. Rodrigo era um cara gente boa, “parça”. Muitas de suas fotos mostram seu sorriso largo, e como sua cunhada disse durante a entrevista, “parecia ter 300 dentes na boca”. Enquanto sua mãe nos mostrava, com o olhar saudoso, sua temporada como jogador, seu passaporte carimbado com uma viagem internacional e outras fotos com os filhos e esposa na praia ou em festas, D. Valéria se emocionou discretamente e pensou alto: “Que nêgo bonito!”
Era o menino dela. Era o pai do Ravi e do Ryan. Esposo da Thayssa. Irmão do Leandro e da Maria. Mas para a polícia era um homem negro na favela à noite. Para a impressa, um rapaz que morreu por estar com um guarda-chuva na mão e este objeto—na visão do racismo estrutural—parecer um fuzil. Era o homem que teve sua carteira de trabalho toda manchada com seu sangue, cuja morte foi exibida em rede nacional como mais um suposto caso de uma troca de tiros que não houve, de um confronto inexistente, de uma guerra às drogas cheia de falácias.
Desde o Brasil colônia, pessoas negras têm suas identidades invisibilizadas como parte de um processo de desumanização desta população. Contudo, nesta entrevista, Dona Valéria, mãe de Rodrigo, repetirá o nome de seu filho várias vezes e sua história vai ser contada dignamente.
RioOnWatch: Como foi a infância do Rodrigo?
D. Valéria: O Rodrigo teve uma infância normal como qualquer criança. Saudável, amigo brincalhão. Gostava muito de bola, ele e o irmão. Começou a jogar bola com seis para sete anos, em um nucleozinho aqui de futebol. Daí começou a jogar no nucleozinho do Vasco e daí ele foi se alavancando.
Um excelente filho, sabia fazer de tudo. Com sete anos, Rodrigo já aprendeu a fazer comida, fazer bolo, cuidar da casa. Porque eu tinha que trabalhar, pois eu separei do pai deles com eles novos. Ele era o mais novo, o meu caçula, mas aparentemente ele parecia ser o mais velho. Ele tinha responsabilidade dentro da casa, ajudava o irmão. Os dois tinham que fazer as coisas dentro de casa para eu trabalhar. Eu não tinha condições de pagar ninguém para tomar conta deles. E eles se viravam em casa. Eu chegava e encontrava as coisas prontas e feitas. Depois que me separei era só eu e eles mesmos. Eu tinha que batalhar, correr atrás.
Ele ficou aqui [em Santa Cruz] até 2012. Ele não foi pra lá direto [o Chapéu Mangueira]. Ele se juntou e foi morar com a [esposa] Thayssa em Realengo. Eles moravam de aluguel e [neste período] aconteceu o episódio do Rodrigo descarrilhar. Ele foi preso, ficou três anos lá. No tempo dele, ele de lá saiu, com tudo direitinho, na condicional. E quando ele saiu ele foi morar com [Thayssa] lá [na Babilônia] na casa que era dela.
D. Valéria mostrou fotos do Rodrigo no Corinthians, em São Paulo. Rodrigo ficou alguns meses na Noruega, como atacante. Jogou no Vasco, no Botafogo e no Fluminense. Segundo a mãe, parou de jogar bola por causa da namorada. Ele achava que ele não iria muito longe e ele não queria que a mãe o sustentasse mais.
RioOnWatch: Como era sua relação depois que o Rodrigo mudou-se para a Babilônia?
D. Valéria: Todo mundo me conhece lá [na Babilônia]. Têm alguns que vêm abraçar, porque às vezes me pegam, quando eu desço, chorando… (silêncio e choro) Eu procuro chegar lá e não passar o que eu sinto para os meninos, até porque o Ravi [filho mais velho do Rodrigo de 5 anos] viveu isso tudo, sabe? Isto é muito presente nele, ele fala que o pai levou o tiro [Ravi viu o pai logo depois de ser baleado]. Eu chego lá firme, brinco e rio, mas quando eu saio é martirizante passar onde tudo aconteceu.
RioOnWatch: Como foi que tudo aconteceu?
D. Valéria: Foi em frente, ou quase perto do Bar do Davi, um bar muito famoso. Eu estava sempre lá, um final de semana ou outro, aproveitando [para compensar] o tempo que ele teve que ficar longe de mim. Final de ano passado, fazia três anos que ele estava fora do sistema [prisional]. Ele estava trabalhando, bem e feliz, feliz mesmo. Logo assim que ele saiu, ele arrumou muitos empregos, mas nenhum de carteira assinada. Você sabe como é, para quem sai do sistema é difícil. Este, depois que ele saiu, era o primeiro emprego de carteira assinada. Ele estava hiper feliz em fazer o aniversário de um ano do bebê dele. Pois ele já estava fora do sistema e viu tudo, acompanhou a barriga. E falava disso o tempo todo. Depois do acontecido [sua morte], chegando lá [no trabalho de Rodrigo] o patrão dele começou a falar que todo mundo, até as pessoas que frequentam, gostavam dele.
A festa de aniversário do seu filho aconteceu em novembro, dois meses depois da sua morte, por ser um desejo de Rodrigo.
RioOnWatch: Como a senhora recebeu a notícia?
D. Valéria: Quando eu recebi a notícia eu não morava aqui [no Cesarão]. Eu morava no centro de Santa Cruz. A Thayssa ligou pra mim dizendo que ele tinha sido alvejado. Foi à noite, quando ela me ligou. Eu fiquei nervosa, me arrumando rápido, e pedindo muito a Deus: ‘Cuida do meu menino… não vai acontecer nada com meu menino… olha meu menino, faça com que ele não morra. Me espera, eu estou chegando…’ Eu já estava no carro, indo rápido para chegar no hospital, quando a Thayssa disse pra mim: ‘Sogra, não corre, porque pode acontecer um acidente e ser mais um, e não tem mais o que fazer’. Aí eu me segurei por causa dele [Leandro, irmão de Rodrigo], pois a amizade dos dois era muito grande [e ele e a filha estavam no carro]. Me segurei e fui até lá cantando parabéns para entreter a neném. E segurando meu choro, para não transparecer. Na porta do hospital eu disse: filho, seu irmão não está mais entre nós, não… (choro…).
Encontramos com a Thayssa e conversando com ela, ela me falou que a doutora disse que ele chegou lá com três tiros, e que ela queria o canguru que estava com ele. Era o que os policiais estavam alegando, que ele estava com um fuzil, que era o guarda-chuva, e o colete á prova de balas, que seria o canguru azul do meu neto. Eu rodei o hospital [Miguel Couto] mais de meia hora e saí de lá sem êxito. Não peguei o “colete”. Não peguei o canguru até hoje…
RioOnWatch: Ele estava descendo para buscar a Thayssa?
D. Valéria: Não. Ele trabalhou, saiu do trabalho, pediu R$50 de adiantamento ao patrão e foi lá [no Chapéu Mangueira]. Encontrou a Thayssa em casa, pegou as crianças, e foram buscar o Bolsa-Família [dela]. Foram no mercado, na loteria e no sacolão. Subiriam a pé, mas começou a garoar. Ele voltou com ela e colocou ela na Kombi. Colocou as bolsas [na Kombi] e só levou o guarda-chuva e uma bolsinha de frutas, e subiu na frente. Tirou o neném do canguru e subiu com o canguru e a bolsinha e o chapéu. Daí ele subiu a pé. Como ele era atleta, ele chegou primeiro, [antes] da Kombi [pois tem de esperar a Kombi encher pra subir]. Como ele chegou primeiro ele ficou escorado entre a caçamba de lixo e o táxi, fumando o cigarro dele e segurando o guarda-chuva dele. Não tinha operação naquele dia. A Thayssa ouviu os tiros e falou: ‘Meu marido! Meu Marido! Ele está aqui me esperando…’
Testemunhas disseram para D. Valéria, que Rodrigo ainda ficou preocupado com a mulher e os filhos que estavam subindo.
RioOnWatch: Qual o seu desejo em relação ao caso do Rodrigo?
D. Valéria: Eu procurei saber e ainda não tem nenhuma investigação feita contra os PMs. Gostaria que eles agilizassem e olhassem isto com mais atenção, porque conforme vai passando o tempo, vai caindo no esquecimento, para eles. Para mim, não! Gostaria que mostrassem mais serviço em relação a isto. Eu quero que eles vão ao júri que provem que eles erraram. Ainda não teve uma denúncia formal. A denúncia foi feita por mim e pela Thayssa. Levamos para o Ministério Público. O caso foi para a Divisão de Homicídios na Barra. Mas até agora não temos respostas. Faz um ano e não teve nada concluído. Eu quero continuar na luta e provar que meu filho é inocente, e quero ajudar outras mães a não perderem a esperança.
RioOnWatch: A senhora tem vontade de entrar em um grupo de mães que tiveram seus filhos vitimados pelo Estado? Se sim, o que a senhora deseja ‘gritar’?
D. Valéria: Sim, eu quero entrar nessa luta. Eu quero tentar dizer—mas o nosso Rio está cada vez pior—mas eu quero tentar que não aconteça outros Rodrigos, outros Amarildos. A gente precisa tentar alguma coisa. Não podemos deixar as coisas acontecerem como estão acontecendo, tirarem nossos filhos assim, brutalmente, dos nossos seios. Não dá para ficar calada com estas coisas acontecendo. Além do Rodrigo tiveram outros. Tem ele (apontando para o irmão de Rodrigo), os meus netos, minhas netas. A gente fica à mercê dessa violência, desse descaso. Eu desejo honrar o nome do meu filho. Ele errou, ele pagou, mas quando ele morreu ele não estava errado. Eu não quero que ele saia como um bandido, só porque ele teve uma passagem. Falar do Rodrigo só porque ele teve uma passagem durante três anos é fácil, mas e o restante da vida dele? Que ele jogou futebol, viajou, morou em outro país,… jogou no Corinthians.
RioOnWatch: Qual é sua opinião sobre a abordagem policial em favelas e periferias?
D. Valéria: Aquela coisa que aconteceu na Cidade de Deus foi horrível. O caveirão entrar assim derrubando as casas de algumas pessoas. Falaram pra mim: ‘Mas ali tem bandido!’ Mesmo que tem bandido, todo lugar tem! Não é para entrar assim na casa das pessoas, uma criança pode estar lá dentro. Na favela tem muita gente boa, pessoas que acordam cedo para trabalhar e honram sua família. Eu lembro do caso da furadeira, do rapaz que estava com um macaco [hidráulico] e este caso do rapaz de Deodoro [onde o Exército atirou 80 vezes contra um carro de uma família e matou Evaldo Rosa]. Quando a gente vê essas coisas na televisão a gente fica barbarizada e acha que nunca vai acontecer com a gente. Até hoje eu tenho medo pelos meus netos. Eu acho que o governo precisaria de mais experiência para lidar com isso. Parece que eles não sabem lidar, não sabem abordar. Conforme nosso governador falou que tem que sair atirando. Como que vai sair atirando? Existem moradores e crianças ali, não é para sair atirando. Tem que prender, colocar na cadeia, mas também não é só colocar na cadeia. Colocar para ter profissão, fazer cursos. Pagar sua sentença com trabalho, trabalhar numa fábrica. Mas tudo hoje é matar e matar por qualquer coisa.