Vamos começar essa história uma semana antes das Olimpíadas Rio 2016.
27 de julho de 2016: Misako Ichimura, ativista anti-Olímpica baseada em Tóquio, chega à Cidade Maravilhosa. Sua visita de 14 dias está repleta de reuniões, apresentações públicas e protestos na semana de ação dos “Jogos da Exclusão”, além de viagens pela cidade para ver as áreas impactadas pelos Jogos. Documentando sua viagem em um zine, Misako relata conselhos que recebeu das lideranças na luta contra as remoções Maria da Penha e Inalva Mendes Brito, da Vila Autódromo, e as experiências de ocupações militares e mídias comunitárias relatadas por Gizele Martins, da Maré. Ela também se inspirou nas táticas de resistência que viu por toda a cidade. Em uma ida à praia de Copacabana, Misako vê faixas de protesto contra as mortes de negros e favelados colocadas ao lado de esculturas de areia com o logotipo Olímpico. Misako escreve em seu zine: “Estabelecer um monumento anti-Olímpico e faixas ao lado do logotipo Olímpico, é magnífico! […] Sim!! Tóquio também pode fazer isso!”.
Avance exatamente três anos.
27 de julho de 2019: No nono andar da Biblioteca Central da Universidade Sophia, em Tóquio, Misako e outros mobilizadores anti-Olímpicos dos grupos Hangorin no Kai e Okotowalink estão em discussão com aliados do Rio, Pyeongchang, Paris e Los Angeles. É o último dia de uma cúpula transnacional anti-Olímpica—a primeira desse tipo em qualquer lugar do mundo. Anne Orchier, da NOlympics LA, enfatiza que os grupos participantes devem identificar como suas análises e princípios se sobrepõem a fim de compreender as oportunidades para a organização coletiva avançar. Ela observa que todos os grupos nomeiam as mesmas forças ideológicas por trás do “sintoma” das Olimpíadas: capitalismo, neoliberalismo, nacionalismo. Todos os grupos rejeitam propostas de reforma das Olimpíadas, recusando-se a negociar com o Comitê Olímpico Internacional ou com os comitês organizadores das Olimpíadas locais. Tetsuo Ogawa, do Hangorin no Kai, e Jonny Coleman, do NOlympics LA, vão para a frente da sala para ler um comunicado conjunto, concluindo em termos inequívocos:
“Exigimos o fim do Comitê Olímpico Internacional. Até que as forças corruptas que impulsionam esses eventos parasitários renunciem ao controle, nos opomos aos Jogos Olímpicos em todas as localidades”.
Historicamente, as elites globais que organizaram os Jogos Olímpicos tiveram muitas vantagens sobre seus críticos. Uma vantagem tem sido os recursos—dinheiro e capacidade estrutural—de viajar, permitir que eles formem relacionamentos transnacionais e movam o conhecimento em todo o mundo. Além das estruturas pré-existentes para que o Comitê Olímpico Internacional (COI) e comitês organizadores de ex-cidades-sede compartilhem informações com aspirantes a anfitriões, uma indústria de empresas de consultoria e relações públicas, empresas de segurança, gigantes da mídia e outros patrocinadores corporativos também transitam de sede para sede e de ano para ano. A resistência às Olimpíadas, em contraste, tem até então permanecido local. Além disso, os grupos anti-Olímpicos tendem a se desmobilizar quando o circo deixa a cidade, com os participantes voltando sua atenção para o fluxo constante de questões urgentes que a cidade enfrenta no rastro da destruição Olímpica.
Mas as coisas começaram a mudar. Agora, as histórias, estratégias e agentes de resistência também estão circulando.
Graças à mídia digital, as comunidades que resistem às Olimpíadas estão se conectando com mais frequência e facilidade do que nunca. Assim como na viagem de Misako ao Rio em 2016, os críticos internacionais estiveram presentes em Vancouver 2010, Londres 2012 e Pyeongchang 2018. Mas o protesto transnacional deste verão em Tóquio elevou o padrão para uma organização global anti-Olímpica. Além dos anfitriões sediados em Tóquio e do NOlympics LA, o evento recebeu representantes do NON aux JO2024 à Paris, da Aliança Olímpica Anti Pyeongchang e do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio.
Como o NOlympics LA escreveu durante a campanha de arrecadação de fundos para enviar membros ao Japão: “As Olimpíadas são um projeto global liderado e financiado por pessoas atuantes de várias nacionalidades que viajam de cidade em cidade e de país para país sem consequências ou responsabilidades. Para combater as Olimpíadas em Los Angeles, precisamos estar armados com conhecimento e unidos para combater as Olimpíadas globalmente”. Mais do que apenas uma ocasião para os participantes aprenderem uns com os outros, o intercâmbio de uma semana foi uma excelente oportunidade de construir aliados, aprimorar uma crítica global unida às Olimpíadas e às forças que as conduzem—em suma, para construir um movimento.
Uma semana de ação
Enquanto a semana culminou em um protesto de alta visibilidade pelas ruas do distrito de Shinjuku, em Tóquio, eventos igualmente importantes ocorreram em toda a cidade. Uma conferência de imprensa no Clube dos Correspondentes Estrangeiros permitiu que Misako, Anne e o estudioso das Olimpíadas Jules Boykoff apresentassem suas críticas às Olimpíadas um dia antes do COI, do Primeiro Ministro Shinzo Abe e do Comitê Organizador de Tóquio realizarem seu ofuscante evento para a imprensa. Houve uma excursão de ônibus aos recém-construídos locais esportivos de Tóquio e outra em Fukushima; ao contrário das narrativas oficiais, os críticos argumentam que a reconstrução de Fukushima após as devastações por terremoto, tsunami e desastre nuclear em 2011 foi retardada pela implantação de muitos recursos para as obras Olímpicos em Tóquio. Três sessões com oficinas sobre lutas pela moradia, destruição ambiental e estratégias de mídia ofereceram uma plataforma para representantes das cidades participantes discutirem os desafios que enfrentam e compartilharem suas táticas de resistência. Uma série de apresentações acadêmicas cobriu tópicos desde o capitalismo de celebração ao ataque à habitação pública no Japão, o fenômeno de ‘apoiadores relutantes’ das Olimpíadas e o relacionamento de acadêmicas feministas críticas aos Jogos. O evento final de solidariedade em 27 de julho se concentrou na construção do movimento à frente. Todos os eventos foram meticulosamente documentados nas anotações dos participantes, fotos e postagens nas mídias sociais, além de imagens gravadas pela equipe de filmagem do NOlympics LA, o que apoiou o objetivo de compartilhar as lições aprendidas com as comunidades das suas cidades e ao redor do mundo.
Grupos anti-Olímpicos de várias cidades surgiram pelo direito à moradia e pela luta contra a gentrificação. Como tal, para muitos participantes, a oficina de habitação “Homes not Games” (“Moradias não Jogos”) foi particularmente importante. Com o objetivo de incentivar a participação do maior número possível de pessoas, os facilitadores dividiram o grupo de cerca de 60 participantes em três seções, levando-os a compartilhar seu entendimento do termo “gentrificação”. As discussões mostraram que, apesar das diferenças específicas nas políticas e contextos locais, as semelhanças entre as cidades são significativas: os governos estão priorizando o desenvolvimento direcionado pelo capital acima do direito básico à moradia das pessoas. Em todo o mundo, o deslocamento está ligado ao policiamento e à criminalização das economias informais e das soluções informais de moradia.
Ao discutir soluções, os participantes enfatizaram a construção de poder dentro das comunidades locais e o foco naqueles que são mais afetados pelo desenvolvimento direcionado para as Olimpíadas. Considerando que especuladores e governos vendem uma certa imagem de uma “vida melhor”, vários palestrantes comentaram que as comunidades devem construir sua própria visão coletiva do futuro que desejam e usar proativamente essa visão para fundamentar sua luta. No Rio, o Plano Popular dos moradores da Vila Autódromo é um forte exemplo dessa estratégia, refutando as alegações do governo de que novos conjuntos habitacionais oferecem uma vida melhor e que a remoção da maior parte da comunidade é a única opção viável.
Ao longo da semana, algumas das conexões mais significativas surgiram em contextos menos estruturados. O piquenique de boas-vindas no Yoyogi Park, por exemplo, foi um espaço para os participantes se encontrarem—muitos pela primeira vez—e terem conversas mais informais. Mobilizadores de Pyeongchang e de Los Angeles entraram em uma discussão profunda sobre os méritos dos sindicatos de inquilinos. Na noite final da semana, vários participantes espontaneamente criaram uma nova versão multilíngue da música tema do NOlympics LA. Durante toda a semana, representantes de cada cidade podiam ser vistos com sorrisos estampados em seus rostos enquanto seguravam itens recém-adquiridos de seus aliados transnacionais, de camisas e adesivos a pôsteres e zines. Por toda a importância da análise e do debate, os momentos de leveza pareciam essenciais para formar as relações que sustentarão o movimento no futuro.
“Do Rio a Skid Row, de Paris a Tóquio, dizemos NÃO aos Jogos Olímpicos”
27 de julho de 2019: Em um refeitório popular em um terreno público concretado em Tóquio, M (que pediu anonimato para este matéria) conta aos mobilizadores Anti-Olímpicos de Los Angeles sua história. Ela conta como se mudou para uma barraca em um parque quando não podia mais pagar o aluguel de seu apartamento; como o governo a removeu daquele parque e depois de um segundo parque, pressionando-a a se mudar para fora da cidade. Mas na época de sua segunda remoção, ela lembra, ouviu Misako contar a história da Vila Autódromo. Inspirada pela luta da Vila contra todas as probabilidades, M lutou com o governo para deixá-la se mudar para uma vila de barracas em um terceiro parque, onde vive até hoje. Os mobilizadores de Los Angeles e Misako mostram a M um vídeo de solidariedade que os moradores da Vila Autódromo recentemente gravaram para os moradores de Tóquio que enfrentam o deslocamento. No local, M grava uma mensagem de vídeo em resposta. No vídeo, ela diz que, com todas as pessoas torcendo por aqueles que estão lutando contra as Olimpíadas de Tóquio, ela se sente motivada a continuar lutando; que ver o vídeo da Vila Autódromo lembra que ela tem aliados não apenas no Japão, mas em todo o mundo.
Em seu vídeo, M se refere a aliados “em todo o mundo”. E quando o faz, está falando mais do que Rio, Pyeongchang, Paris e Los Angeles. Dentre os participantes da cúpula de Tóquio estavam uma urbanista de Jacarta, que está considerando uma candidatura para os Jogos de 2032; um mobilizador da Counter Olympics Network de Londres cuja visita a Tóquio se sobrepôs à cúpula de Tóquio por acidente, mas que entrou em ação; um crítico das Olimpíadas de inverno de Nagano, em 1998, que falou na oficina de destruição ambiental sobre desmatamento e corrupção; e um representante de Los Angeles que participou dos protestos estudantis de 1968 na Cidade do México, onde forças do governo massacraram manifestantes apenas dez dias antes das Olimpíadas daquele ano. Outro membro do contingente de Los Angeles já foi deslocado de sua casa, perto de instalações esportivas, para dar lugar a um conjunto de uso misto, incluindo quartos de hotel—quartos que um membro da Câmara Municipal argumentou serem necessários para as Olimpíadas de 2028.
Está claro que os Jogos Olímpicos estão criando um problema para si mesmos. À medida que continuam percorrendo comunidades e cidades ao redor do mundo, eles estão produzindo um grupo cada vez maior de pessoas cujas próprias experiências dos Jogos contradizem diretamente as mensagens grandiosas divulgadas pelas máquinas de relações públicas Olímpicas.
A pergunta que os mobilizadores anti-Olímpicos enfrentam agora é: como traduzir sua crítica coletiva e novos vínculos cimentados em um movimento que efetivamente gere poder para além dos oceanos, fusos horários e idiomas. Coordenar um movimento leva mais do que apenas uma semana, mas a cúpula de Tóquio fez progressos históricos na construção de consenso e os grupos participantes concordaram em avançar juntos. Na véspera da chegada dos vários delegados em Tóquio, Misako refletiu: “Muitas vezes nos perguntamos se um grupo tão pequeno como [Hangorin no Kai] pode fazer uma coisa tão importante” quanto lutar contra as Olimpíadas. Mas, ela acrescentou, “é realmente possível através do poder coletivo com os outros”.
Dizendo “não” para as Olimpíadas, na verdade, é sobre dizer “sim” para imaginar alternativas. Formar um movimento para lutar por essas alternativas é acreditar em um “nós” com o poder de torná-los possíveis.
Cerianne Robertson é participante do NOlympics LA e doutoranda em Comunicação na University of Southern California. Anteriormente, ela foi editora do RioOnWatch.