A Luta da Rede de Mães de Vítimas e Sobreviventes da Violência Policial, em Mathare no Quênia

'Assassinatos, recuem! Estamos avançando!'

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Esta matéria faz parte das reportagens contínuas do RioOnWatch sobre lutas sociais em todo o mundo que dialogam com a realidade local do Rio de Janeiro e oferecem pontos importantes de comparação internacional. Analisar paralelos e mostrar solidariedade às comunidades de pares nos permite estabelecer conexões, compartilhar conhecimento, construir redes de apoio e estabelecer um senso de experiência e propósito comuns.

No início de 2020, no dia 15 de fevereiro, quase dois anos após o início de seus trabalhos, a Rede de Mães de Vítimas e Sobreviventes lançou sua iniciativa no Centro de Justiça Social de Mathare (MSJC) em Mathare, Nairóbi, Quênia.

A Rede é composta por cerca de cinquenta membros de todos os assentamentos informais da cidade—de Kayole, Mathare, Dandora, Mukuru, Kibera e outros lugares—que se reunem para buscar justiça pela morte ou vitimização brutal de membros de suaa famílias, geralmente homens jovens, pela polícia.

Ecoando as lutas das mães de presos políticos no Quênia no início dos anos 1990 e mobilizações inspiradoras semelhantes de madres e mães na Argentina e no Brasil, a Rede é composta principalmente por mulheres. Estas são as mães e esposas de vítimas de assassinatos extrajudiciais.

Desde 2017, membros da Rede de Mães de Vítimas e Sobreviventes se reúnem para apoiar-se mutuamente, oferecer solidariedade no sistema judicial para as mães que tiveram a sorte de seus casos chegarem a um tribunal, documentar novas vítimas e traçar estratégias coletivas. Embora durante todo esse tempo elas tenham testemunhado e continuem experimentando os desequilíbrios e preconceitos do sistema legal queniano, o lançamento do dia foi uma celebração do trabalho fatigante, doloroso e meticuloso da Rede: do que realizaram e do que continuarão a fazer para garantir justiça às suas comunidades.

Em 2017, o MSJC, uma organização de base comunitária na favela queniana de Mathare, divulgou um relatório de ação participativa sobre assassinatos extrajudiciais no Quênia entre 2013-2016. O relatório, intitulado “Quem Será o Próximo? Um Relatório de Pesquisa e Ação Participativa Contra a Normalização de Execuções Extrajudiciais in Mathare”, registrou a morte de pelo menos 50 jovens em Mathare e 803 em âmbito nacional no período de três anos. Embora ilustrem a força sinistra da polícia no país, a maioria dos cidadãos reconhece que esta documentação é apenas o começo. O número representa uma minoria daqueles que foram mortos no passado recente e arquivados como “bandidos” ou “suspeitos de terrorismo”.

Algumas das famílias dos jovens mortos e documentados neste relatório e outras documentações em andamento da MSJC estão representadas na Rede.

Mama Victor, atual coordenadora da Rede de Mães de Vítimas e Sobreviventes, perdeu seus dois filhos, Victor e Bernard, no mesmo dia em 2017. Eles foram mortos, a metros de distância um do outro, por policiais que invadiram Mathare, ostensivamente para reprimir protestos provocados pelos resultados das eleições divulgados um dia antes.

No caso de Lucy Wambui, outra co-liderança da Rede, seu marido, Christopher Maina, foi morto quando ela estava com oito meses de gravidez do primeiro filho. Ele foi arrastado de um canteiro de obras onde trabalhava e morto às 14h em uma rua pública. Seu assassino, um notório policial chamado Rashid, executou uma das testemunhas do assassinato de Maina um ano depois. Tendo também sido filmado matando dois jovens em Eastleigh dois meses depois de matar Maina, Rashid continua trabalhando como policial. Indevidamente justificado em um documentário irresponsável e tendencioso da BBC, esse tipo de policiamento reflete o que a Relatora Especial da ONU sobre Execuções Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias Agnes Callamard chamou, durante sua visita a Mathare em fevereiro de 2020, típica de “serial killers de uniforme”.

Outro membro da Rede é Mama Stella, cujo filho foi um dos oito jovens mortos pela polícia em abril de 2016 em Mukuru. Embora a mídia tenha relatado que eles eram “suspeitos de serem bandidos”, dois deles tinham apenas 16 anos e um tinha 17 anos. O grupo planejava iniciar um negócio comunitário de coleta de lixo.

Um dos membros mais jovens da Rede é Mso, de 19 anos, de Mathare, que teve dois parceiros mortos pela polícia no mesmo ano. Agora ela tem que cuidar de dois filhos pequenos no mesmo local em que seus maridos foram mortos.

Enquanto seus familiares são mortos por capricho, essas mulheres são incapazes de buscar justiça em organizações governamentais como a Autoridade Independente de Supervisão de Policiamento (IPOA). De acordo com o seu próprio “Relatório do Conselho de Final de Mandato 2012-2018”, o IPOA conseguiu apenas três condenações dos 9878 casos recebidos durante esse período—assim como no Brasil, a grande maioria desses casos permanece sob investigação sem fim. E, no entanto, contra a injustiça dessas condições, a Rede continuou a crescer.

Essas mulheres sabem que o assassinato de seus familiares é apenas um resultado extremo em um continuum de violência estrutural que apresenta, entre outras coisas: falta de acesso à água, escolas precárias, assistência médica inadequada e a militarização de suas casas. “Crianças sendo mortas como kukus [galinhas]”, disse uma mãe.

Eles também sabem que a política informal de “atirar para matar” do governo é reservada a espaços como o deles. As áreas ricas da cidade não vêem esse tipo de policiamento.

Por esse motivo, essas mães se reuniram em 15 de fevereiro vestindo camisas vermelhas para representar o “sangue derramado”. Na parte de trás dessas camisas havia apenas três palavras: “Justiça para as vítimas”.

Juntas, cantaram, dançaram e marcharam com determinação, expressando como o “fogo havia sido aceso” [moto imewaka], enquanto dedicavam tempo para plantar árvores em memória daqueles que haviam perdido.

À medida que essas árvores crescem e são cuidadas em uma comunidade que é governada pelo apartheid ambiental, elas permanecerão como símbolos da luta dos moradores por justiça. Elas existirão em oposição a um status quo, plantadas em um momento de mudança co-catalisada quando essas mães se levantaram e disseram: “assassinatos, recuem! Estamos avançando”.

Wangui Kimari trabalha como coordenadora de Pesquisa e Ação Participativa do Centro de Justiça Social Mathare em Nairobi, Quênia, uma organização comunitária no assentamento urbano informal de Mathare. A organização busca a justiça social por meio do engajamento da comunidade e do uso de plataformas de movimento social.


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