Sobrevivência Entre um Gol e uma Ocupação Policial: Relato de um Favelado do Viradouro, em Niterói

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Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas. Também faz parte de uma série gerada por uma parceria, com o Núcleo de Estudos Críticos em Linguagem, Educação e Sociedade (NECLES), da UFF, para produzir matérias que serão utilizadas como recursos pedagógicos em escolas públicas de Niterói.

Há mais de 20 dias, moradores do Complexo do Viradouro, formado pelo Largo da Garganta e os Morros do Africano, da União, do Papagaio, do Viradouro, do Cruz, convivem com a rotina de uma ocupação policial. Iniciada em 19 de agosto, a operação está sendo realizada mesmo diante da ADPF das Favelas, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que restringe operações policiais em meio à pandemia da Covid-19, exceto em caso de “absoluta excepcionalidade”.

Seguindo os trâmites legais, de acordo com a Secretaria de Estado de Polícia Militar, a operação no Complexo do Viradouro foi notificada ao Ministério Público Estadual do Rio de Janeiro. Porém, até o momento não há informação se o MP tinha ou não conhecimento de que se tratava de uma ocupação policial, tampouco, sabe-se a “excepcionalidade” alegada pelo Estado para justificar a ação. 

O que é de conhecimento público, conforme noticiado pelo RioOnWatch, é que a ocupação policial—que prevê a instalação de cabines policiais blindadas para monitorar a região no final de obras de melhorias na comunidade realizadas pela Prefeitura de Niterói—trouxe para os moradores do Complexo do Viradouro, além das comunidades vizinhas do Morro do Zulu e do Atalaia, um cotidiano de medo e militarização com abusos policiais e violações de direitos humanos.

Neste relato, Alessandro Conceição, 37 anos, morador do Morro da União, narra os primeiros dias da ocupação policial e o movimento de resistência organizado pelos moradores, majoritariamente negros, do Complexo do Viradouro, onde residem mais de 6000 pessoas.

Na sexta, 21 de agosto, por voltas das 7h30, me enviam mensagem. Preocupado retornei. Sou informado sobre o agravamento dos abusos pela polícia. Solicito apoio para divulgar a situação que acontece no Viradouro ao jornal El Pais, enfatizando que mesmo com a proibição do STF estava acontecendo uma operação na favela. O repórter ficou de ver com seu editor e estou aguardando até agora. Niterói é uma das cidades mais segregadas racialmente do mundo. É só pesquisar

Depois, passei no Centro do Teatro do Oprimido. Chegando na Pracinha do Viradouro, aquela visão de campo de guerra. Muitos carros e homens do Batalhão de Choque. Tanto os veículos quanto os uniformes do Choque são mais escuros que o da PM comum. Fiquei sabendo que nesses casos, a PM comum não pode intervir muito, mas precisa ficar na retaguarda dando apoio. Percebi um fato curioso: parece não haver diálogo entre essas divisões policiais, e a PM fica um tanto subordinada e de mãos atadas com o choque. Lembrei dos filmes estadunidenses, quando o FBI chega nas policias locais e diz: “Podem sair, agora o FBI chegou!”

A chuva, a coerção e a intimidação policial fizeram com que apenas cerca de 20 pessoas descessem para a Pracinha. A maioria dessas pessoas são as mulheres negras que moram nos picos dos morros do entorno. Ficamos na pracinha sendo observados pelo Choque. Todas e todos com medo de que nos filmassem e o assunto girou em torno de represálias e de como a comunidade é covarde. Temi que esse tipo de discussão nos fizesse sair do foco. Por vários motivos legítimos, naquele momento uma manifestação não aconteceu, mas conversamos sobre estratégias e a possibilidade de fazê-la na manhã de sábado (22/08) com uma roda de conversa num café da manhã comunitário. Colocamos nas portas bilhetes feitos de folhas de caderno e caneta pedindo respeito e para não bagunçarem as casas. Um vídeo de uma moradora que trabalha no posto de saúde, e encontrou sua casa revirada, circulou nas redes.

Fui para casa dormir. Em conversa, soube que a polícia esteve lá em casa por volta das 6h da manhã. Mas, que eles foram educados e pediram para entrar. Ficaram na varanda, revistaram as pessoas da casa e perguntaram se alguém tinha vício de alguma coisa. Como não encontraram nada, foram embora.

Tentei dormir com mais essa. Por volta das 10h da noite, fui acordado. Alguém tinha avisado que a polícia pegou um dos meus vizinhos e fez um “esculacho bonito”. Era de noite, havia muitas viaturas na comunidade, chovia muito. Saí do morro e fui a procura do meu vizinho. Encontrei com outras pessoas que também o procuravam, ninguém tinha notícias dele. Ligamos para todos os contatos, pensamos em ir para as delegacias. Até que decidimos perguntar aos policiais da ocupação se eles haviam abordado alguém com nome Pedro*. 

Engolimos nossos medos, orgulhos e raivas. Eu, rodeado de quatro mulheres negras dos picos, estava ali, bem mansinho. Uma delas segurou na minha mão e disse: “Deixa que eu pergunto”, com um leve sorriso e dois olhões bem abertos, arregalados me repreendendo. Entendi o recado. Ela fez a pergunta ao policial e nós informamos o nome completo dele. O policial respondeu que abordou sim, mas que o havia liberado. Nós nos entreolhamos, acreditamos e nos perguntamos: “Onde essa criatura pode estar?”. Lembrei do Amarildo! Decidimos então voltar para nossas casas, para nossos morros e esperar. Assim que cheguei em casa, fui avisado por mensagem dizendo que Pedro apareceu na casa de Maria*. Imediatamente, e aliviada, Maria me liga para me dar a boa nova. Eu então voltei a dormir para poder sonhar com o amanhã.

No sábado (22/08), a roda de conversa também não aconteceu. A diretoria da associação de moradores está temendo que o povo fique mais doente por conta da chuva forte que seguia caindo. “E nessa pandemia é a gente pobre que mais sofre, né?”, disse por áudio uma pessoa da diretoria para mim. Argumento plausível. Eu quase bati palmas. Mas, junto com amigas estamos pensando em como estimular mais para que a manifestação ocorra, pois a ocupação policial ficará por aqui um bom tempo.

No domingo (23/08), o sol apareceu. Recebi aquelas mensagens de bom dia, com flores e mensagens positivas de uma das integrantes da diretoria da associação. Que bom! Decidi andar pela comunidade para comprar fita isolante. A fiação aqui de casa está com problemas. Desci pelo campo e vi duas viaturas e muitos homens do Choque. O jogo entre Flamengo e Botafogo se caminhava para o fim (o campeonato brasileiro voltou sem torcida e esta partida começou às 11h da manhã). Botafogo vencia por 1 a 0. O Alemão, o moço da barraca não me atendeu, pois ele é botafoguense e disse que não podia tirar os olhos da TV, pois senão vão inventar um pênalti para o Flamengo. Em frente à loja dele, no bar, um monte de homens, moradores da comunidade também não tirava os olhos da TV. Estavam desolados, são flamenguistas.

Na loja peguei o que precisava e deixei o dinheiro no balcão. Mais à frente, em outro bar, duas viaturas do Choque. Pelo rádio, os policiais escutavam o jogo. Um deles, também flamenguista dizia: “Não é possível que o Flamengo vai perder esse jogo!” O outro apenas estava focado no rádio. Andei mais um pouco e num outro bar, mais homens. “Oi, Gugu!”, disseram me cumprimentando. Quando acenei de volta, pênalti! Para o Flamengo. Gol! Para o Flamengo. Olhei em volta e todos os homens (moradores e policiais) ou celebravam (a maioria) ou lamentavam aquele empate. Olhei novamente em volta e pensei: ‘Neste momento, provavelmente nenhuma troca de tiro aconteceria’. E não aconteceu. O jogo acabou! Deu empate! 

Antes do jogo, os policiais foram até a casa de um familiar meu no Morro do Africano. Segundo ele, foram educados e pediram para meu sobrinho de 13 anos, que estava no sofá, se levantar. Eles não chegaram a entrar. Mas, ficaram zanzando pelo arredores. 

Fui comprar jornais. Quando retornei para a comunidade, mais viaturas do Choque e a tensão de volta. O jogo continua!

Amanhã tem mais estratégias de sobrevivência. 

*Pedro e Maria são nomes fictícios usados para resguardar a segurança dos moradores.

Fotos do #LarDeMoradorRespeite por Gabriel Horsth

Alessandro Conceição é morador do Morro da União, jornalista e Mestre em Relações Étnico-Raciais. Artivista negro, Alessandro é curinga do Centro de Teatro do Oprimido. Sua caminhada com o Teatro do Oprimido vem de 2001 com o GTO Pirei na Cenna, projetos em Saúde Mental, Pontos de Cultura e de formação de grupos populares, além de experiências na Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Estados Unidos, Guatemala, Nicarágua, Espanha, Moçambique, Zâmbia, Senegal e Uruguai. Na luta antirracista é artista-ativista do grupo Cor do Brasil e do coletivo Siyanda Cinema Experimental do Negro. Nas artes da vida Alessandro já foi camelô, jovem aprendiz de banco, atendente em loja de chocolate e educador social.


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