Essa matéria oriunda da Maré, é a quinta de uma série sobre o impacto da pandemia do coronavírus no dia a dia das favelas, em parceria com o Centro Behner Stiefel de Estudos Brasileiros da Universidade Estadual de San Diego.
Falta de políticas públicas e desinformação evidenciam vulnerabilidade das favelas cariocas em meio à pandemia de Covid-19; comunicadores e ONGs locais se mobilizam para tentar ajudar as famílias.
A Realidade Favelada e a Necessidade da Informação
Desde quando começaram as recomendações do Ministério da Saúde e da Organização Mundial da Saúde (OMS) para que toda a população brasileira ficasse em suas casas, respeitando o isolamento social para a não propagação do novo coronavírus, os moradores de favelas e periferias se viram com grandes desafios pela frente. Parte das orientações não contemplava a realidade dos favelados e periféricos, afinal, não são em todas as favelas que existem, por exemplo, abastecimento regular de água. Outro problema é a questão da aglomeração, já que as casas destes locais têm, frequentemente, apenas um ou dois cômodos.
Por essas razões, o cenário que se vê nas favelas é bem diferente daquele observado em áreas de classe média e alta da cidade do Rio de Janeiro. Se, nestas áreas, há pouca circulação de pessoas, no Conjunto de Favelas da Maré, Zona Norte, a movimentação não parou.
“Não é uma coisa só. Criança quer espaço, a rua é a extensão da casa do jovem. Outros são obrigados a trabalhar. As coisas estão difíceis, e em épocas de medo e solidão ficamos fragilizados. Tecnologia não substitui o contato e a conversa da esquina”, explica Bira Carvalho, fotógrafo e morador da Nova Holanda há mais de 45 anos.
As falas do Presidente da República, Jair Bolsonaro, aliadas a de grandes empresários, de que a população poderia voltar à rotina normalmente, adicionada a intensa troca de fake news, fizeram aumentar o número de moradores pelas ruas. Esta diretriz dificultou ainda mais a conscientização das pessoas quanto a gravidade da pandemia. Com isso, a população começou a desacreditar nos dados da OMS e do Ministério da Saúde, aumentando os desafios para os comunicadores da Maré devido à a contra-informação.
Além disso, muitas mensagens passadas pelas mídias comerciais têm um caráter sensacionalista e não informativo. Ou seja, não são só as fake news que circulam sempre de forma rápida pelos grupos de WhatsApp que têm de ser combatidas, mas também esse tipo de conteúdo das mídias comerciais. Comunicadores comunitários e moradores das favelas da Maré se viram num grande desafio e começaram a pensar em como adaptar tais informações para a realidade da favelas.
Na última quinzena de março, comunicadores da Maré iniciaram uma campanha virtual Complexo da Maré Contra o Coronavírus convocando não somente os moradores da Maré, mas também os de outras localidades para a construção de um plano de comunicação que os contemplassem. Desde da última semana de março, estão sendo espalhados pelas ruas faixas, imagens, vídeos, carro de som e cartazes com mensagens produzidas e aprovadas pelos profissionais de saúde do local.
Políticas Públicas para Garantir Direitos Básicos
A falta de ações governamentais que resolvam as questões mais urgentes impede que o mareense cuide da própria saúde. Muitos moradores continuam tendo que trabalhar para garantir seus empregos. Aqueles que ficaram sem ter como manter sua remuneração, tais como trabalhadores autônomos, empregados domésticos, trabalhadores informais e outros grupos, não conseguem sustentar suas famílias.
Passado quase um mês de isolamento social, o Auxílio Emergencial, prometido pelo presidente, foi pago primeiramente aos cadastrados no programa Cadastro Único. Os outros grupos começaram a receber o auxílio ontem, no dia 14 de abril. Aqueles que não conseguiram se cadastrar on-line—é o caso de muitos moradores de favelas que não têm acesso à internet ou pessoas em situação de rua—para receber os R$600 foram orientados a comparecer a uma agência da Caixa Econômica Federal, e acabam colocando a saúde em risco por gerar aglomerações.
A constante falta d’água, más condições de moradia e os mantimentos e itens de higiene estão se esgotando nas casas do moradores da Maré, assim como em várias outras favelas cariocas. Mais uma vez, comunicadores e membros de organizações locais organizam doações de cestas básicas, denunciam as condições adversas às grandes mídias e reportam os casos às autoridades competentes.
Para que o número de casos do novo coronavírus não aumente na favela, lideranças comunitárias, comunicadores e organizações sociais estão se mobilizando, mas isso não é suficiente. Não são as organizações nem os movimentos sociais que vão resolver os problemas de saneamento e moradia, melhorar o sistema de saúde ou a questão financeira dos trabalhadores. Tampouco essas são adversidades novas para os favelados e periféricos, que só estão ainda mais invisibilizados e negados de seus direitos em meio à pandemia.
É preciso políticas públicas que garantam o direito mínimo para a população favelada. É necessário ainda que governantes e a sociedade apoie movimentos sociais que de forma independente vêm se organizando para conseguir doações de alimentos e higiene, além de trabalharem uma comunicação que seja voltada para a realidade local.
Flávia Veloso é moradora da favela Águia de Ouro, atua como comunicadora comunitária no jornal Maré de Notícias e estuda jornalismo pela Unisuam.
Gizele Martins é moradora e comunicadora comunitária da Maré, mestre em educação, comunicação e cultura pela UERJ-FEBF e formada em jornalismo pela PUC-Rio.