Na manhã de sexta-feira, 19 de junho, milhares de trabalhadores e manifestantes tomaram o Porto de Oakland, na Califórnia, para demonstrarem solidariedade à comunidade afro-americana e clamarem pelo fim do racismo sistêmico e da violência policial. A ação foi liderada pela International Longshore and Warehouse Union (ILWU – Sindicato Internacional dos Estivadores Portuários e Trabalhadores de Armazéns), um dos grupos sindicais mais atuantes da história dos Estados Unidos e que conta hoje com 42.000 membros nos EUA e no Canadá.
A paralisação de todas as atividades portuárias na costa oeste americana e canadense coincidiu com o Juneteenth, que celebra os 155 anos da data em que a Proclamação de Emancipação chegou ao Texas, libertando assim o último grupo de escravos, mais de dois anos após a assinatura oficial da Proclamação. O protesto somou-se também à onda de revolta devido aos recentes assassinatos cometidos por policiais, especialmente os casos de George Floyd, morto aos 46 anos em Minneapolis, no estado de Minnesota, e também da paramédica Breonna Taylor, 26 anos, assassinada no dia 13 de março enquanto dormia em seu apartamento em Louisville, estado do Kentucky. Os três policiais que mataram Breonna Taylor ainda estão soltos.
O protesto contou com a presença de Angela Davis, celebrada professora e ex-membro do Partido dos Panteras Negras, organização que nasceu em 1966, justamente na cidade de Oakland. Ela mencionou a data especial e acrescentou: “Obrigada por fechar os portos nesse Juneteenth, o dia em que celebramos o fim da escravidão, o dia em que nós renovamos nosso compromisso com a luta pela liberdade. Vocês representam o potencial e o poder do movimento trabalhista. Eu espero que essa ação influencie outros sindicatos a se levantarem e dizerem ‘não’ ao racismo e ‘sim’ à abolição da polícia como a temos hoje. Precisamos reimaginar o significado do que é segurança pública”, completou ela.
Já Willie Adams, presidente da ILWU e primeiro afro-americano a ocupar a função, ressaltou o caráter internacional do protesto e compartilhou que trabalhadores portuários da Itália e da África do Sul também decidiram parar suas operações em solidariedade aos colegas norte-americanos. Ele reforçou a importância da continuidade dos protestos: “O que você vai fazer quando sair daqui? Porque a luta continua. Se aquela jovem não tivesse filmado [a morte de George Floyd], aqueles policiais teriam mais um dia normal de trabalho. Tudo isso vem acontecendo há muito tempo. Os olhos do mundo estão voltados para Oakland hoje. Lembre-se de que o mais importante não é o que você diz, é o que você faz”.
Após os discursos iniciais, os milhares de manifestantes seguiram a pé da Zona Portuária até o centro da cidade de Oakland, percorrendo aproximadamente 3,5km. O sol estava forte e a multidão foi seguida por uma carreata. À frente estavam um caminhão de som e motoqueiros uniformizados. Os grupos atravessaram o viaduto que liga o porto à cidade ao som de Get up, stand up: stand up for your rights! Get up, stand up: don’t give up the fight! (Levante, resista: lute pelos seus direitos! / Levante, resista: não desista da luta!), refrão de uma das músicas do cantor jamaicano Bob Marley. Também foram entoados os gritos No Justice, No Peace, Defund the Police! (Sem Justiça, Não Há Paz, Menos Verba pra Polícia!), Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), além dos nomes de diversas pessoas mortas pela polícia norte-americana nos últimos anos.
Veterana em protestos, a aposentada Nickie Kirkland viajou de Long Beach para apoiar os colegas do sindicato. “Vim apoiar o Black Lives Matter e as lutas por justiça social e contra a violência policial.” Ela relembrou como a ILWU foi fundada, em 1934, após dois trabalhadores portuários terem sido baleados por policiais enquanto tentavam criar o sindicato. Um deles faleceu. “Nós continuamos a luta. Temos que ter justiça e não apenas para alguns poucos. Tem que ser para todos. Se eu não tenho justiça, eles não terão paz. Esta luta é para os negros, para as mulheres, para a comunidade LGBTQ. Todos precisam ser tratados com respeito, todos merecem um salário digno e a oportunidade de viverem sem o medo da violência,” concluiu ela.
Estudo realizado em 2018 pelo American Journal of Public Health, publicação acadêmica de pesquisa especializada em saúde pública, revelou que homens negros têm quase três vez mais chances de morrerem do que homens brancos em situações de encontro com a polícia. “Raça é um fator preponderante para explicar a morte pelas mãos de policiais nos Estados Unidos. A violência rotineira cometida contra negros é uma característica definidora do sistema criminal e jurídico dos Estados Unidos”, apontam os autores do estudo.
Este é um dos motivos pelos quais Rhonda Johnson, 50 anos, também se juntou ao protesto. “Tenho dois filhos negros, eles têm 20 e 22 anos, são dois homens adoráveis, mas a polícia os vê como uma ameaça. Estou aqui hoje por eles, porque toda vez que saem de casa eu tenho medo do que pode acontecer, e o medo dura da hora em que eles saem até o momento em que voltam para casa à noite”, disse emocionada. Na opinião de Rhonda, “as pessoas estão reconhecendo que temos um problema institucionalizado no sistema e que muitas dessas instituições nasceram por causa da supremacia branca”.
Muitos jovens também participaram da manifestação. Carregando cartazes e entoando palavras de ordem, eles se mesclavam junto aos trabalhadores mais velhos e membros de diversos sindicatos que estavam presentes. No cartaz da professora Yesenia Rubio, 24 anos, os dizeres, “A América é para os Dreamers e para as vidas negras. A libertação negra é liberdade para todxs!” (Dreamers em referência aos jovens imigrantes que foram levados aos Estados Unidos sem a documentação legal ainda pequenos e, hoje, têm algumas garantias para que possam estudar e trabalhar no país, mas que podem vir ainda a ser revogadas apesar de terem vivido nos EUA quase suas vidas inteiras). “Lutar contra a violência policial é um assunto global. Na América Latina, se a cor da sua pele é mais escura, isso é razão para preconceito e discriminação. Racismo é um problema em todos os lugares e precisa acabar”, refletiu ela.
Antes de chegar ao seu destino final, a carreata parou em frente ao prédio central do Departamento de Polícia de Oakland. Do carro de som, Gerald Smith, ex-membro do Partido dos Panteras Negras de Nova York e organizador atuante junto ao movimento Black Lives Matter, mandou uma mensagem clara e direta: “A polícia de Oakland consome 40% do orçamento desta cidade, muito mais do que eles merecem. Nós precisamos trabalhar juntos para transformar a sociedade por completo, de uma sociedade capitalista para uma sociedade socialista. As prisões, as polícias e os tribunais de justiça são o núcleo essencial do estado capitalista”, sublinhou Gerald.
Após caminharem mais alguns quarteirões até a prefeitura de Oakland, os manifestantes ainda estavam energizados para ouvirem os últimos discursos do dia. O que se viu foram pessoas de todas as idades e cores compartilhando falas de empoderamento que estão indo além dos usuais pedidos de reformas e mudanças pela via política. O tom dos discursos e as vozes da rua clamaram por mudanças estruturais e pela abolição da polícia, das prisões e do sistema econômico que têm deixado muitos para trás. Segundo economistas do Federal Reserve Bank of Minneapolis, nos últimos 70 anos houve pouco avanço para os negros nos Estados Unidos em termos de diminuição de desigualdade de renda e distribuição das riquezas. Quando comparada, a disparidade econômica entre brancos e negros nos Estados Unidos é a mesma em 2020 do que era em 1968, ano em que a Lei de Direitos Civis expandiu garantias constitucionais aos negros norte-americanos e outras minorias após o assassinato do Reverendo Martin Luther King Jr.
Horas depois do protesto, a professora Angela Davis participou de uma live em que recebeu um prêmio por suas contribuições aos direitos civis e humanos. Ela mencionou o Brasil e criticou a militarização da polícia brasileira, “A violência policial no Brasil é ainda maior [quando comparada aos Estados Unidos]. Ao total, 4.000 negros foram mortos no Brasil no ano passado pela polícia. Precisamos aprender com as experiências de outros países e oferecer nossa solidariedade.” Sobre este último tema, ela concluiu: “Todo ser humano, toda mulher, todo homem, toda pessoa transgênero, toda pessoa não-binária nesse planeta merece que seus direitos humanos sejam reconhecidos e defendidos. Ninguém pode ser excluído desse abraço humano planetário. Nem os povos indígenas do Brasil, nem os muçulmanos na Índia, nem os Curdos em Rojava (Síria) e certamente nem os Palestinos nos territórios ocupados por Israel”.