Sim, Nós Queremos Dizer Literalmente: Abolir a Polícia [OPINIÃO]

Porque a Reforma Não Acontecerá

Click Here for English

Leia a matéria original por Mariame Kaba, em inglês, no The New York Times aquiO RioOnWatch traduz matérias do inglês para que brasileiros possam ter acesso e acompanhar temas ou análises cobertos fora do país que nem sempre são cobertos no Brasil. 

Os congressistas democratas querem facilitar a identificação e acusação da má conduta policial; Joe Biden quer dar $300 milhões de dólares ao departamento de polícia. Mas os esforços em tentar solucionar a questão da violência policial, através de reformas liberais como essas têm falhado por quase um século.

Chega. Não podemos reformar a polícia. A única forma de diminuir a violência policial é reduzir o contato entre ela e o público.

Não há um período sequer na história dos Estados Unidos em que a polícia não foi um instrumento de violência contra a população negra. O policiamento do Sul surgiu das patrulhas de escravos nos séculos 18 e 19, que capturavam e devolviam escravos fugitivos. No Norte, os primeiros departamentos policiais municipais em meados do século 19 ajudaram a suprimir greves trabalhistas e revoltas contra os ricos. Por toda parte, eles têm reprimido populações marginalizadas para proteger o status quo.

Então, quando você vê um agente policial pressionando o próprio joelho contra o pescoço de um homem negro até ele morrer, este é o resultado lógico do policiamento dos Estados Unidos. Quando um agente policial tortura uma pessoa negra, ele está fazendo o que considera ser seu trabalho.

Agora, após semanas de protestos em todo o país levaram alguns a apelar para que cortem as verbas da polícia, enquanto outros argumentam que, ao fazê-lo, ficaremos menos seguros.

A primeira questão a ser tratada é que agentes policiais não fazem o que você pensa que fazem. Eles passam a maioria do tempo atendendo a chamadas que reclamam do excesso de barulho, distribuindo multas de trânsito e estacionamento, lidando com outras questões não criminais. Fomos ensinados a pensar que eles “enfrentam os bandidos; que perseguem ladrões de banco; que capturam os serial killers,” disse Alex Vitale, coordenador do Projeto de Policiamento e Justiça Social na Brooklyn College numa entrevista no Jacobin. Mas isso é “um grande mito”, ele disse. “A grande maioria dos policiais fazem apenas uma prisão por delito grave por ano. Se forem duas, eles viram policial do ano.”

Nós não podemos simplesmente mudar a sua dinâmica de trabalho para que foquem nos piores criminosos. Não é para isso que eles foram treinados.

Em segundo lugar, um mundo “seguro” não é um lugar em que a polícia mantém pessoas negras e marginalizadas sob controle, através de ameaças de prisão, encarceramento, violência e morte.

Tenho defendido a abolição da polícia há anos. Independentemente de sua opinião sobre a força policial—se você quer eliminar a polícia ou simplesmente torná-la menos violenta—aqui vai um pedido imediato que todos nós podemos cumprir: cortar o número de policiais pela metade e cortar sua verba pela metade. Menos agentes policiais significa menos oportunidades para eles violentarem e matarem as pessoas. A ideia vem ganhando força em Mineápolis, Dallas, Los Angeles e outras cidades.

A história é didática, não porque oferece um modelo para como agir no tempo presente, e sim porque pode nos ajudar fazer perguntas melhores ao futuro.

O Comitê Lexow realizou a primeira grande investigação das improbidades policiais em Nova Iorque, em 1894. Na época, a reclamação mais comum a respeito da polícia eram as “baladas”—“o rotineiro espancamento de cidadãos por patrulheiros armados de cassetetes e porretes”, conta a historiadora Marilynn Johnson em seus textos.

A Comissão Wickersham, convocada para estudar o sistema de justiça criminal e examinar a questão da imposição da Lei Seca, forneceu uma acusação contundente em 1931, incluindo evidências de estratégias brutais de interrogação. A falta de profissionalismo dos policiais foi culpabilizada por essas críticas.

Depois das revoltas urbanas de 1967, a Comissão Kerner descobriu que “as ações policiais foram os incidentes ‘finais’ que precederam surtos de violência em 12 das 24 desordens no levantamento”. O relatório listava um conjunto de recomendações bem conhecidas atualmente, como o “apoio comunitário ao cumprimento das leis” e avaliava operações policiais “no gueto, para assegurar uma conduta correta por parte dos policiais”.

Essas comissões não deram um fim à violência; elas só tiveram uma função contrarrevolucionária nas vezes em que a violência policial levou a protestos. Alguns pedidos por reformas parecidas foram desencadeados numa resposta ao brutal espancamento de Rodney King por um policial em 1991, na rebelião seguinte, e então novamente depois dos assassinatos de Michael Brown e Eric Garner. O relatório final da Força Tarefa Presidencial do governo Obama sobre Policiamento no Século 21 resultou em ajustes nos procedimentos, como o treinamento de redução de preconceitos implícitos, sessões em que policiais ouvem a comunidade, pequenas alterações nas políticas de uso da força própria e sistemas para identificar agentes potencialmente problemáticos desde cedo.

Porém, até mesmo um membro da força tarefa, Tracey Meares, notou em 2017 que “o policiamento que nós conhecemos precisa ser abolido antes que se transforme.”

A filosofia subscrita a essas reformas implica que mais regras resultam em menos violência. Mas os policiais quebram regras o tempo todo. Veja o que já aconteceu ao longo das semanas de protesto—policiais furando pneus, empurrando idosos frente à câmera, prendendo e ferindo jornalistas e manifestantes. Estes policiais não estão mais preocupados com as repercussões do que Daniel Pantaleo, ex-policial nova-iorquino cuja gravata levou à morte de Garner: ele acenou para a câmera ao filmar o incidente. Ele sabia que o sindicato da polícia o apoiaria e estava certo. Ele permaneceu no emprego durante mais cinco anos. 

Mineápolis instituiu várias dessas “boas práticas” mas não conseguiu retirar Derek Chauvin do departamento apesar de 17 reclamações de má conduta ao longo de quase duas décadas, culminando no momento em que o mundo inteiro o assistiu se ajoelhar sob o pescoço de George Floyd por quase nove minutos.

Por que raios acharíamos que as mesmas reformas funcionariam agora? Precisamos mudar nossas exigências. O jeito mais certo de reduzir a violência policial é reduzindo o poder da polícia, cortando verbas e o número de oficiais.

Mas não me leve a mal. Não estamos deixando nossas comunidades à mercê da violência. Nós não queremos simplesmente fechar delegacias. Nós queremos fazê-las obsoletas.

Devemos redirecionar os bilhões destinados às delegacias de polícia para o fornecimento de assistência básica, moradia, educação e bons empregos. Se fizéssemos assim, haveria desde o princípio uma menor necessidade de policiamento.

Nós conseguimos construir outros meios de responder aos males da sociedade. Os “assistentes comunitários” poderiam fazer check-ups de saúde mental caso alguém precisasse de ajuda. As cidades poderiam se beneficiar a partir de modelos a favor da justiça restaurativa, ao invés de mandar pessoas às prisões.

E o estupro? A abordagem atual ainda não acabou com ele. Aliás, a maioria dos estupradores sequer sabe como é estar dentro de um tribunal. Dois terços de quem já passou por violência sexual nunca reportou a ninguém. Os que prestam queixas frequentemente ficam insatisfeitos com os resultados.

Além do mais, os próprios policiais cometem assédio sexual com frequência e em escala preocupante. Um estudo de 2010 revelou que o comportamento sexual impróprio foi a segunda forma de improbidade policial mais relatada. Em 2015, o jornal The Buffalo News revelou que [nos EUA] a cada cinco dias um policial é flagrado cometendo assédio.

Quando pessoas, especialmente as brancas, imaginam um mundo sem polícia, elas enxergam uma sociedade tão violenta quanto a dos dias de hoje, simplesmente sem segurança pública—e se arrepiam. Como parte da sociedade, fomos tão doutrinados a pensar que os problemas se resolvem com a força policial e o encarceramento de pessoas, que a maioria mal consegue imaginar qualquer outro meio, além de prisões e da polícia, para solucionar a violência e o mau. 

Pessoas como eu que querem abolir as prisões e a polícia, no entanto, têm uma visão diferente da sociedade, baseada na cooperação no lugar de individualismo, na ajuda recíproca no lugar de autopreservação. Como seria um país que tivesse bilhões de dólares a mais para gastar em moradia, alimentação e educação a todos? Essa mudança dentro da sociedade não aconteceria de imediato, mas os protestos mostram que muitos estão prontos para abraçar uma visão diferente acerca da segurança e justiça.

Quando o clamor das ruas se acalmarem e as pessoas sugerirem novamente que contratemos mais policiais negros ou que criemos mais comitês de avaliação civil, eu espero que possamos todos nos lembrar de todas as vezes que tais esforços falharam.

Mariame Kaba (@prisonculture) é uma mobilizadora contra a criminalização. Ela é diretora do Projeto NIA, um grupo de base que trabalha para acabar com o encarceramento de jovens.


Apoie nossos esforços para fornecer assistência estratégica às favelas do Rio durante a pandemia de Covid-19, incluindo o jornalismo hiperlocal, crítico, inovador e incansável do RioOnWatch — doe aqui.