No dia 22 de julho, o Núcleo de Orientação e Pesquisa Histórica de Santa Cruz (NOPH), através do seu projeto Histórias Conectadas, realizou a live interativa, “Sub-bairros de Santa Cruz: comunidades faveladas?” Os seis palestrantes do evento falaram de como é imprescindível o ato de “parar e conversar” para refletir sobre as histórias de pessoas, lugares e momentos do bairro de Santa Cruz, Zona Oeste.
O debate—mediado pelo professor, historiador e coordenador geral do NOPH, Bruno Almeida—reuniu: o ativista sociocultural e roteirista, Thiago de Jesus, que está à frente de projetos sociais para impactar positivamente as favelas do Rollas e de Antares; o artista plástico e mobilizador social, Ricardo Rodrigues, membro do Cerro Corá Moradores em Movimento; a fundadora da Coosturart e do Espaço Cultural Zona Oeste, Cláudia Pereira; a professora de artes, Dayane Medeiros, que é coordenadora do projeto Missão Arte e Educação realizado pelo Coletivo Artístico Sustentável e Alternativo (CASA), na Favela do Aço; o professor e historiador, Guaraci Rosa, coordenador de pesquisa da Casa de Memória Paciente (Camempa); e o vice-presidente da Associação de Moradores de Antares, Leonardo Ribeiro. Na plateia estavam ativistas, agitadores culturais e moradores de Santa Cruz e adjacências.
História, Empatia e Reconhecimento
A roda de conversa trouxe falas de mobilizadores locais sobre as comunidades faveladas de Santa Cruz e de convidados de outras zonas da cidade, criando um rico mosaico de iniciativas comunitárias, histórias e memórias.
Para abrir a noite, o primeiro palestrante Thiago de Jesus—que durante a pandemia do coronavírus tem feito diversas ações sociais e projetos dentro das favelas do Rollas e do Dreno—destacou o documentário que realizou, As Márcias. O documentário conta a história de duas moradoras, das favelas do Rollas e de Antares, que têm em comum não só o nome Márcia, mas também a vontade de ajudar e promover o desenvolvimento de suas comunidades. As Márcias atuaram incansavelmente para ajudar as vítimas da enchente, em suas comunidades, em 2019. Thiago explicou que o documentário As Márcias tem o objetivo de trazer visibilidade a essas pessoas guerreiras e heroínas que muitas vezes não estavam sendo visibilizadas dentro e fora da comunidade. “Fui mostrar a realidade das pessoas da comunidade, e o que a gente passou naquele momento”, finalizou.
Ricardo Rodrigues ajudou a abrir o evento e seu debate central sobre a denominação ‘favela’ no contexto de Santa Cruz. O artista da favela do Cerro Corá no Cosme Velho, na Zona Sul, deixa claro a importância do termo favela para ele: “Eu sou a favela! Eu vivo a favela. A minha vivência é lá e não sei como seria viver fora do espaço. Porque todos me conhecem e eu conheço todo mundo. Mesmo que eu saísse de lá para morar em outra favela me sentiria abraçado, recebido e bem recepcionado”. Ricardo completa dizendo que as definições de favela e comunidade são as mesmas assim como os problemas sociais, “entre os termos favela e comunidade eu prefiro me autodeclarar como favelado, pois não muda nada… Apesar de eu morar na Zona Sul temos todas as mazelas de qualquer favela do Brasil, da Zona Oeste ou de qualquer outro lugar. Falta água, falta luz, às vezes lixo abandonado, esgoto a céu aberto”.
Ricardo trouxe para a conversa a sua experiência no projeto Memórias do Cerro Corá. Ele contou que na sua comunidade “havia uma menina que o irmão morreu no tráfico. Antes de falecer, ele se desfez de todas as fotos que tinha. Mas nós achamos e colocamos na exposição que realizamos. A emoção dela foi contagiante”. Ricardo descreve como projetos de memória como o Memórias do Cerro Corá e os “ecomuseus não são só espaços quadrados [em áreas fechadas], pois envolvem todo o lugar desde o começo da ladeira Cerro Corá até os Guararapes. Nosso maior acervo são os moradores”. O artista plástico iria trazer para o NOPH a sua exposição “Favelando”, que foi adiada devido à pandemia. Na opinião de Ricardo a união das comunidades faveladas locais é importante para todos que habitam em Santa Cruz e adjacências.
Cláudia Pereira, moradora do Conjunto Liberdade na Avenida João XXIII, em Santa Cruz, discorreu sobre a nostalgia que o bairro proporciona para quem é cria da Zona Oeste. “Meus avôs e meus pais trabalharam na Rádio Brás, meu avô recebeu de indenização um sítio na Rua Primeira, onde passei minha infância. Meu pai foi o primeiro negro a ser bancário do BANERJ, estudei no Colégio Delta. Eu conheço cada ruela de Sepetiba“. Com o olhar cultural sempre atento, após a separação dos pais, a ativista social conta que passou a frequentar o sub-bairro João XXIII: “Minhas tias sempre diziam: ‘Não vai para lá! [O outro lado da] linha do trem não presta, não senta do outro lado. O pessoal de Antares leva farofa para o carnaval'”.
Sobre a nomeação das comunidades na região, Cláudia dá o seu posicionamento: “cada comunidade tem que se entitular da maneira que ela achar bom e como ela se vê. Tem que se basear na liberdade [essa decisão].” E completa suas reflexões sobre o amadurecimento da região: “estamos conseguindo sair do eixo político que é o que mais afundou a Zona Oeste. Eram grandes faroestes dos que queriam se eleger, e sumiam. Eu lembro quando íamos para Famerj, ônibus lotado, para lutar pelos direitos”.
Cultura, Arte e Educação
Para Dayane Medeiros este amadurecimento e o papel de quem é “cria” também foi um foco da sua fala: “Como [nós, mobilizadores da região] estamos fazendo para as crianças sentirem o pertencimento do local? O quanto podemos como educadores reverter essa história de crescer [com estigma] que é favelado da Zona Oeste? A gente tem que parar e pensar nisso. A união coletiva da Zona Oeste surgiu na pandemia porque a gente sabe que vai ter um caos, que se chegar ajuda para favelas no Rio, vai chegar só no Centro e Zona Sul. Então a urgência de fazer esse movimento do coletivo, é se juntar e ganhar voz para dizer, ‘Olha pra gente aqui’… Agora é a hora de chegar[mos]. Somos crias, hoje trabalhando com jovens crias de Santa Cruz.”
Sobre como tomou decisão de se engajar, Dayane conta: “Em 2018, com a morte da Marielle Franco, e eu me colocando como pessoa que pensa em políticas públicas, sendo semente de Marielle pensei: ‘O que estou fazendo pela minha periferia? O que os oito anos de luta para me formar numa universidade federal estão contribuindo aqui?'” refletiu.
Perceber as diferenças locais entre favelas fora do eixo Zona Norte e Zona Sul, levou a professora a fundar em 2017 o coletivo CASA na favela do Aço, grupo que surgiu dentro da UFRJ, formado por artistas fora do circuito tradicional, com o objetivo de criar suas próprias exposições. A história de resistência e ocupação da favela do Aço pode ser contada a partir das remoções e ocupações das casas antes mesmo de serem inauguradas. Dayane explica que, “tem essa questão de como a favela do Aço aqui do eixo Zona Oeste foi a primeira favela trazida pela remoção. Depois foram a Cidade De Deus e Vila Kennedy. Então era a primeira surpresa, a primeira cultura favelada que chegou em Santa Cruz foi a favela do Aço. Tem essa questão de choque cultural que era zona rural e agora chegava a galera da remoção, e com o preconceito foi gerando uma baixa autoestima na comunidade e no entorno”.
E Dayane ainda diz que, “temos que pensar como estamos criando uma história com as nossas crianças. Quem cresce na favela do Aço, não pode dizer no shopping que é da favela do Aço. É nosso terceiro ano [da CASA] e vamos falar de conhecer os espaços, as favelas, da Zona Oeste. Precisamos mudar como falamos da nossa história.. A gente tem que reconstruir essa história de maneira que a gente conte, essa história de Santa Cruz”.
Nessa mesma linha de pensamento, a professora de artes fala como o preconceito afeta a mobilidade urbana: “Eu moro em Campo Grande e se eu pego um Uber aqui da minha casa para favela do Aço o Uber vai, mas do centro de Santa Cruz para favela do Aço o Uber não entra. Os próprios moradores de Santa Cruz têm um preconceito absurdo”.
Para Guaraci Rosa, coordenador de pesquisa da Camempa, entender a cultura local deveria fazer parte da grade curricular de ensino. “Nos livros de história encontramos algo factual, parece livro de turismo com o Cristo Redentor, Antigo Egito, daqui e dali e acabou. A criança não sabe o nome do rio que passa ao lado da casa dela. Essa ausência [de memória local] em Santa Cruz é muito grande. Temos um passado jesuítico, mas quando entrou o período republicano Santa Cruz morreu.”
Guaraci explica como olhar o passado e pensar no futuro são fundamentais para se pensar políticas públicas educacionais eficazes para a região: “a gente tem uma carência muito grande com estudos na história local… Minha avó era uma das primeiras, tinha um terreno que era um sítio nos anos 1960. Escola só [chegou] nos anos 1980, posto de saúde nos anos 1990, posto policial não entrava mesmo, então você tem uma ausência do poder público… e todas essas áreas eram rurais. A pessoa critica seu igual que jogou lixo no chão, mas ela não entende porque espera isso dele. A pessoa que cresce sem educação, sem infraestrurura, você vai esperar o quê? Um engenheiro, um médico?”.
“No passado podemos entender a questão educacional. Até a década de 1960 não existia uma escola pública com o ensino médio do eixo Inhoaíba e Sepetiba. A primeira escola foi o Colégio Barão do Rio Branco. Nos anos 1980, tínhamos que fazer prova para entrar na escola porque o que os governantes queriam era massa para trabalhar”, continuou.
Finalmente, Guaraci descreve a força do empreendedorismo periférico: “hoje estão surgindo os empreendedores, os autônomos. O jovem com 15, 16 anos que já tá abandonando o colégio porque ele quer trabalhar para ele porque é ali que ele vê o futuro… Tudo isso você só entende quando conhece a história do seu bairro. Precisa entender o processo de desenvolvimento da favela do Aço, do Rollas. As remoções. Na verdade, as pessoas foram jogadas aqui. O governo em 1961 queria tirar a favela. Eles mostraram as pessoas mudando para Fazenda Botafogo que tinha alguma estrutura, não para a Vila Paciência, onde tinha prostituição infantil. As pessoas andavam dali até Paciência para pegar condução. A pessoa se mudou [para cá] de Inhauma, ela mudou da Zona Sul. E continuou trabalhando lá. As pessoas têm fotos ali dos anos 1960. Você se pergunta: como é que pode deixar o ser humano ficar de forma tão degradante?”.
Já para Leonardo Ribeiro a indagação sobre a cultura de Santa Cruz veio quando notou que seus amigos e familiares não faziam parte da história local. Os pais de Léo eram moradores da Maré nos anos 1970, onde viveram em casas de palafitas e tinham empregos dentro da própria favela. Há cinco anos na Associação de Moradores de Antares, o jovem busca conhecer e mostrar para todos o que a região tem de melhor. “Apesar de não ser acadêmico na área de história, sempre procuro pesquisar sobre as favelas daqui. Quando o poder público cria remoções enfraquece toda uma comunidade e sua tradição no local, pois juntam todos [de origens distintas] dentro de uma comunidade e forma outra diferente”, analisou.
O carnaval e as indústrias como a Gerdau são alguns pontos da livre pesquisa feita por Leonardo para entender um pouco mais da formação de Antares. Antes do isolamento social, o articulador cultural iniciou um projeto sobre blocos carnavalescos na Zona Oeste. “Eu venho pesquisando que existia um bloco carnavalesco no Morro Azul, na Zona Sul. Em 1979 esse bloco desfilava em Bonsucesso. Era um bloco registrado que tinha toda uma organização. Achei este registro no Museu Nacional, na parte de blocos aqui de Antares. Criei uma exposição sobre o bloco Unidos de Antares para comemorar os 45 anos da região porque estava muito próximo ao carnaval”, contou.
Resistência
Por fim, a ativista Sheila Luiza abordou a importância da história da África, para entendermos a chegada da população negra em Santa Cruz e seu entorno. “A família vem morar aqui e não se sente parte do todo. No processo de empoderamento nem todo mundo gosta ou se interessa pela a história da África. São vários desafios e eu mesma não sei muito sobre negritude. O desafio é reunir todos os membros do NOPH para termos mais identificação com os nossos. Vamos conseguir!”
Reunir e conectar o bairro de Santa Cruz com ausência de políticas públicas é um desafio enfrentado pelos ativistas locais. Para fomentar esse processo de união e conexões o NOPH participa do Grupo de Trabalho Memória e Cultura da Rede Favela Sustentável (RFS)*. O mesmo GT promoverá uma live essa noite, 27 de julho, ‘O Povo Brasileiro é Sem Memória? A Memória da Pandemia na Favela‘, às 18h. Será transmitida pela página da Rede no Facebook.
*Tanto o RioOnWatch quanto a Rede Favela Sustentável são iniciativas da Comunidades Catalisadoras.