No dia 18 de julho, ocorreu em Duque de Caxias, Baixada Fluminense, uma manifestação contra a intolerância religiosa, no local em que se situava o terreiro de Joãozinho da Gomeia, babalorixá do Candomblé. O ato foi organizado porque o prefeito da cidade, Washington Reis, anunciou a construção de uma creche no local, deixando de lado o resgate da memória histórica e a importância religiosa do lugar. A reivindicação de quem esteve presente era que o espaço fosse preservado como patrimônio da cidade. Atualmente, o local é visto como insalubre e está abandonado.
No dia 27 de julho, quase dez dias depois, as reivindicações feitas pelo movimento negro e por movimentos religiosos foram atendidas pela Prefeitura de Duque de Caxias: o local será preservado, será mantida a memória sacra do terreno. O governo municipal resolveu alterar o endereço da obra da nova unidade escolar, realizar o cercamento e a limpeza local.
Entenda o Caso e Sua Importância para a Cultura Afro-Brasileira
Quem foi João da Gomeia?
Considerado o babalorixá mais famoso do Brasil—babalorixás são os principais sacerdotes das religiões brasileiras de matriz africana—o baiano João Alves Torres Filho, mais conhecido como João da Gomeia, foi um importante pai de santo nos anos 1950 e 1960. Em 1946, mudou-se para o Rio de Janeiro, estabelecendo seu terreiro em Duque de Caxias, onde atendia políticos e artistas. No boca a boca, dizem que o religioso teria recebido, em seu terreiro, a visita dos presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Sobre sua bibliografia, já teve dois livros publicados, uma peça teatral, estudos acadêmicos e, recentemente, foi enredo da maior festa popular do mundo: o carnaval. Em 2020, a escola de samba Grande Rio, que fica situada no mesmo município que o consagrou, levou a história para o sambódromo. A homenagem contemplou a alma artística e a vida religiosa do pai de santo.
Além de ter sua espiritualidade reconhecida e respeitada, o pai de santo também era artista e levou as danças do terreiro para os palcos dos teatros de Salvador e do Rio de Janeiro. A comunidade religiosa não recebeu muito bem as performances, mas o babalorixá de personalidade irreverente e marcante, manteve sua arte viva apesar das críticas.
Atualmente, há uma comissão com objetivo de manter viva a memória e o trabalho do babalorixá. A Comissão da Gomeia é liderada pela filha de santo de Pai João, Seci Caxi (nome sagrado dado a Sandra Seci Reis), que desde 2015 tem o intuito de construir o “Memorial Joãozinho da Gomeia”. O Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC) também iniciou um processo de tombamento do terreno, que ainda está em curso. “Eu não sou contra, ninguém aqui é contra a construção da creche. Mas aqui é um local sagrado e temos que respeitar Pai João, e a importância do nome dele dentro da cultura afro-brasileira”, disse Seci de Caxi, durante o ato do 18 de julho.
O terreiro de Pai João marcou a história do Brasil, sem dúvidas. Mas mais profundamente ainda, marcou a vida de muitos moradores da Baixada Fluminense. Como a da jornalista Sílvia Mendonça, Ekedi (cargo espiritual na religião de Candomblé), moradora de Duque de Caxias e ativista do movimento negro: “Eu nasci aqui perto, a minha família vinha para as festas. Eu sou a mais nova, mas meu irmão mais velho teria 97 anos, meu pai nasceu em 1900. Todo mundo conhecia as histórias de Pai João aqui, porque ninguém conhecia ele como Joãozinho da Gomeia, era Pai João. E qual seria a importância de construir aqui? Não é só preservar a memória dele, não era só isso que ele queria, não. Ele queria empoderar a população. A população negra em especial”.
A importância do espaço sagrado onde ficam os terreiros
Os espaços onde são construídos terreiros, templos das religiões de matriz africana, têm importância para além de ofertar a estrutura dos encontros dos que professam a mesma fé. Os locais são consagrados ainda nas primeiras fundações. As firmezas ou assentamentos, como são chamados, são feitos para santificar o lugar e proteger espiritualmente os que ali frequentam, segundo os ritos desta religião.
Estes rituais sagrados e toda importância que Joãozinho da Gomeia teve e tem não foram levados em consideração durante a decisão do poder público local em projetar um equipamento social que não tem relação com a memória do lugar. A história do Brasil e de suas periferias sempre foi contada pelo viés dos colonizadores europeus e estas narrativas vêm sendo contestadas pelo movimento negro há alguns anos.
Intolerância e racismo religioso
A intolerância religiosa acontece quando há preconceito a ritos sagrados de uma determinada religião. Diversas religiões são atacadas em suas especificidades e cultos. Contudo, são as religiões de matriz africana que sofrem os ataques mais incisivos e recorrentes. E por que estes ataques são tão específicos? Pois junto com a intolerância vem o racismo religioso. Os dados não deixam mentir: a perseguição religiosa aparece no relatório de intolerância religiosa produzido pelo Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) conduzido pelo Professor Doutor Babalawo Ivanir do Santos. Estes levantamentos apontam que entre abril de 2012 e agosto de 2015, 71% dos ataques religiosos no Brasil foram contra as religiões afro-brasileiras, enquanto os evangélicos são a segunda religião mais atacada, aparecendo, no entanto, com apenas 8% dos casos. Até setembro de 2019, foram registrados 200 casos de racismo religioso no estado do Rio de Janeiro. Desses, 35% aconteceram na Baixada Fluminense. Estes números, no entanto, podem ser ainda maiores, pois há uma grande subnotificação dessas denúncias.
Os representantes da religião afirmam que posturas como as da administração municipal de Duque de Caxias devem ser questionadas sempre que necessário, porque um espaço sagrado é importante, não só para a preservação da memória espiritual, bem como legado da cultura afro-brasileira. Líderes religiosos enfatizam ainda que a luta contribui para o não-apagamento de histórias relevantes para a comunidade negra e para o Brasil. A decisão municipal foi o primeiro passo desta vitória. Agora é preciso garantir que no local sejam realizados os projetos idealizados pelos movimentos religiosos, que são: a criação de um espaço cultural com atividades que valorizem a cultura negra e um memorial para a história de João da Gomeia. Ações como essa são uma forma não só de homenagear o legado do babalorixá, mas também uma importante política afirmativa no âmbito das questões raciais.
Por isso, é urgente a necessidade de cada vez mais haver políticas afirmativas para o combate ao racismo, em todas as esferas. O debate sobre onde e como a estrutura racista interfere na vida da população negra contribui para o estudo e para ampliação de políticas públicas verdadeiramente democráticas. Ataques simbólicos e concretos às religiões de matriz africana minam a possibilidade de livre exercício na profissão da fé de maneira plural e, ao mesmo tempo, individual. Este é um debate político e fundamental, uma vez que, manter viva a memória religiosa é dever de um país que se professe laico. A preservação da memória e da história negra são é só uma questão de justiça, mas também uma questão democrática.
Carla Souza é pedagoga por formação e professora de educação infantil apaixonada pela profissão. Cria da Rocinha, entende sua existência em ser negra e favelada, como um foco de luta e de resistência no mundo.