Comunidade Centenária na Tijuca é Vítima de Ataques Preconceituosos e Passa por Incêndio

Casa da comunidade à esquerda e condomínio à direita.

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A comunidade Trapicheiros, uma pequena favela de 52 famílias situada perto do Morro do Salgueiro na Tijuca, Zona Norte do Rio, foi quase atingida por um incêndio de grandes proporções descido do mato logo acima da comunidade. De origem desconhecida, o fogo começou por volta das 8h do dia 2 de agosto e só foi controlado pelos bombeiros ao redor das 22h.

Paulo Roberto da Silva Machado, presidente da Associação de Moradores do Trapicheiros, diz que este é o terceiro ano seguido que o fogo acontece em circunstâncias semelhantes: começa de manhã cedo na parte alta da mata e vem descendo a encosta. A diferença deste ano foi a demora do corpo de bombeiros em responder ao chamado e apagar as chamas.

Segundo as informações oficiais do Corpo de Bombeiros, o chamado para o combate ao fogo foi registrado pela central da corporação somente às 17h57m. No entanto, os moradores do Trapicheiros afirmam que desde às 8h o fogo já ocorria e ameaçava a comunidade. A partir daí eles, parentes e amigos ligaram incansavelmente para os bombeiros e relataram terem recebido um tratamento agressivo e impaciente. Segundo o presidente da Associação de Moradores, foi somente após moradores de dois condomínios de alta renda vizinhos da comunidade ligarem e denunciarem o incêndio nas redes sociais que os bombeiros se mobilizaram.

Uma moradora conta do desespero e da tristeza sentida ao perceber o fogo chegando próximo às residências e ver amigos e vizinhos tendo que rapidamente tirar seus pertences e documentos de fora de suas casas. Ela também demonstra preocupação pelas crianças da comunidade: “Até terça-feira ainda estava uma fumaça terrível, as crianças aqui estão gripadas porque têm problema de bronquite e tiveram que respirar essa fumaça toda”.

A comunidade Trapicheiros é um território histórico e centenário. Alguns moradores afirmam que suas famílias vivem lá há cinco gerações e têm laços de mais de 90 anos com o local. Os historiadores Lilian Vaz e Maurício Abreu demonstram que a história de ocupação da área é ainda mais antiga: em 1881 no Código Sanitário Municipal do Rio de Janeiro (publicamente acessível no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro) já era documentado pelas autoridades a existência de doze casebres no Morro dos Trapicheiros, na Tijuca.

Tal história com H maiúsculo, comprovada por relatos, documentos e pela força da mobilização comunitária não impedem que a ignorância e o preconceito ameacem a comunidade. Segundo Ailton Gonçalves Lopes, segundo secretário da Associação de Moradores do Trapicheiros, no domingo, dia do incêndio relatado acima, além da ameaça imposta pelo incêndio, os moradores tiveram que ouvir de varandas dos condomínios de luxo situados na frente da comunidade, gritos incentivando o incêndio e torcendo: “tomara que queime todos os barracos!”.

O condomínio Atrium Residences e Loft, na Rua Bom Pastor, e condomínio Jardins de Debret, na Rua Ângelo Agostini, foram construídos há sete anos na frente do Trapicheiros. A partir da existência destes condomínios, a rotina da comunidade, sempre tranquila desde sua fundação, foi alterada: episódios de ameaças, desrespeito e ataques preconceituosos por parte dos moradores contra o Trapicheiros se tornaram cada vez mais comuns.

A gente tá vivendo um momento muito constrangedor, uma falta de respeito. A gente não tem liberdade pra nada”, diz outra moradora. A mesma exprime o seu descontentamento com os ataques preconceituosos que vêm sofrendo: “Não se pode ouvir uma música aqui que eles reclamam. Eles jogam laranja, jogam pedra, ovo, não tem limite. Agora com esse incêndio o morador do prédio gritou que a gente tem que morrer, que tomara que o fogo atinja as casas… É um desrespeito isso, não sei em que mundo eles estão vivendo. Nós somos pretos, também somos pobres, mas nós temos direitos. Eles falam que aqui tem bandido, não sei desde quando trabalhar é bandidagem”.

Em outro episódio, no mês de julho, quando os moradores da comunidade, após numerosas tentativas, conseguiram solicitar o apoio técnico da Comlurb para podar uma árvore que ameaçava uma casa e fios da rede elétrica da região, para surpresa de todos um carro da Guarda Florestal chegou ao local. Ao se informar sobre a situação o Guarda explicou ter recebido denúncias anônimas da ocorrência de um crime ambiental de desmatamento no local. Ao verem se tratar de uma ação legítima e legal feita pela Comlurb, se desculparam pelo incômodo e deram meia volta.  

A ironia desta demonstração de vigilância constante é que tal árvore foi também podada há poucos meses pelo condomínio Atrium, pois seus galhos também ameaçavam suas instalações. E que o mesmo condomínio só existe no local porque foi liberado o desmatamento, em sua construção, de árvores frutíferas bem conhecidas pelos moradores do Trapicheiros, do pomar atrás do Convento Bom Pastor que até então ocupava o terreno.

Ainda em outras diversas ocasiões recentes, um drone invadiu a privacidade dos moradores da comunidade, gerando medo, raiva e indignação.

Os xingamentos das varandas e denúncias equivocadas são apenas alguns dos abusos cometidos por moradores do condomínio. Como publicado em 2018 pelo jornal O Globo e contestado aqui no RioOnWatch o interesse de remover a comunidade Trapicheiros começou justamente quando os condomínios chegaram ao local. Os mesmos utilizam argumentos sem embasamento de que a comunidade é fruto de invasão, se tratando de crime ambiental e “poluição visual”. Entretanto, essas ameaças virtuais infelizmente trazem consequências reais. 

Conforme coberto acima, existem estudos extensos realizados por pesquisadores individuais e também órgãos públicos, desmentindo a informação de que a comunidade Trapicheiros é área de ocupação recente ou construída em área de proteção ambiental. 

Ainda outra moradora que trabalha com crianças na sua igreja, explicita a indignação dos moradores do Trapicheiros: “Estou muito triste, muito indignada. Quanto mais eu fico perto das pessoas mais fico com vontade de ficar perto das crianças. Estou assustada, não tenho nem vontade de descer à rua e dar bom dia às pessoas. Sempre penso que vou encontrar alguém do condomínio que vai me agredir, que vai me xingar. Não consigo entender como o ser humano pode ser tão agressivo, ter esse espírito de ódio”.

Para outra, a verdadeira intenção dos tantos ataques é clara: a remoção da comunidade Trapicheiros: “fui criada no Buraco da Lacraia, antiga favela aqui perto, também na Tijuca. Lembro bem quando começaram a construir um condomínio de prédios do nosso lado, começaram a fazer de tudo pra tirar a gente dali, e conseguiram. Fomos removidos por eles porque eles tinham dinheiro, tenho medo disso acontecer novamente aqui”.

Pela lei, no caso do Trapicheiros esta moradora poderia se tranquilizar, pois pela sua história no local, a comunidade tem direito claro à usucapião para se regularizar, ferramenta garantida pela Constituição de 1988 (usucapião é oriundo originalmente da Lei Romana no século VI com rica história e utilidade até hoje em diversos países pelo mundo). Registros históricos e legais demonstram que a ocupação do Morro dos Trapicheiros já tem 139 anos, cumprindo os requisitos legais para o direito de todos os moradores à propriedade de suas casas. Logo, eles têm o mesmo direito à terra quanto os condomínios vizinhos.

Além do mais, a comunidade atua de forma unida internamente, e também com outras comunidades e movimentos de direito à moradia pela cidade, e está sendo assessorada na realização do seu direito à terra pela Defensoria Pública do Estado a partir do seu Núcleo de Terras e Habitação (NUTH).

Uma última moradora entrevistada para esta matéria resume de forma brilhante o momento, a história e os desafios da comunidade: “o Trapicheiros carrega uma ancestralidade e uma força coletiva de imenso potencial. São gerações das mesmas famílias que vivem nesse território—que a partir do medo e do caos, onde seus direitos foram colocados em risco, enxergaram que a única saída é pela organização”.


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